Sócrates e Platão

Resumo da doutrina de Sócrates e de Platão, com referências

RESUMO DA DOUTRINA DE SÓCRATES E DE PLATÃO

Seleção de trechos por Allan Kardec (Cf. O Evangelho segundo o Espiritismo, “Introdução”, traduzido literalmente de modo a manter a escrita da versão original constante desta obra).

Foram acrescentadas as referências às obras de Platão de onde os trechos foram retirados. 

 

I. O homem é uma alma encarnada. Antes de sua encarnação, ela existia unida aos tipos primordiais, às ideias do verdadeiro, do bem e do belo; deles se separa em se encarnando e, recordando seu passado, ela é mais ou menos atormentada pelo desejo de aí voltar. [Platão, Fédon, síntese de XXI-XXII.]

 

II. A alma se desgarra e se perturba quando se serve do corpo para considerar algum objeto; ela tem vertigens como se estivesse ébria, porque se liga a coisas que são, por sua natureza, sujeitas a mudanças; ao passo que, quando contempla sua própria essência, ela se dirige para o que é puro, eterno, imortal, e, sendo da mesma natureza, aí permanece ligada por tão longo tempo quanto o possa; então seus desgarramentos cessam, porque ela está unida ao que é imutável, e esse estado da alma é o que se chama sabedoria. [Platão, Fédon, XXVII.] 

 

III. Enquanto nós tivermos nosso corpo e a alma se encontrar mergulhada nesta corrupção, jamais possuiremos o objeto de nossos desejos: a verdade. Com efeito, o corpo nos suscita mil obstáculos pela necessidade em que estamos de tomar cuidado dele; ademais, ele nos enche de desejos, de apetites, de temores, de mil quimeras e de mil tolices, de maneira que com ele é impossível ser sábio um instante. Mas, se é possível nada conhecer puramente enquanto a alma está unida ao corpo, é preciso de duas coisas uma, ou que não se conheça jamais a verdade, ou que se a conheça depois da morte. Libertados da loucura do corpo, nós conversaremos então, é de se esperar, com homens igualmente livres, e conheceremos por nós mesmos a essência das coisas. É por isso que os verdadeiros filósofos se exercitam para morrer, e a morte não lhes parece de nenhum modo temível. [Platão, Fédon, XI.] 

 

IV. A alma impura, nesse estado, é pesada e arrastada de novo para o mundo visível pelo horror do que é invisível e imaterial; ela erra então, diz-se, em torno dos monumentos e dos túmulos, perto dos quais se têm visto por vezes fantasmas tenebrosos, como devem ser as imagens das almas que deixaram o corpo sem estar inteiramente puras, e que retêm alguma coisa da forma material, o que faz com que o olho possa percebê-las. Não são as almas dos bons, mas dos maldosos, que são forçadas a errar nesses lugares, aonde levam a pena de sua primeira vida, e onde continuam a errar até que os apetites inerentes à forma material que elas se deram as reconduzam a um corpo; e então elas retomam, sem dúvida, os mesmos costumes que, durante sua primeira vida, eram o objeto de suas predileções. [Platão, Fédon, XXX.] 

 

V. Após nossa morte, o gênio (daimon1, demônio) que nos fora assinalado durante nossa vida nos leva a um lugar onde se reúnem todos aqueles que devem ser conduzidos ao Hades2 para aí ser julgados. As almas, após ter permanecido no Hades o tempo necessário, são reconduzidas a esta vida em numerosos e longos períodos. [Platão, Fédon, LVII.]

1 Daimon: no latim daemon, no árabe djinn; literalmente, um “gênio”. Não detinha o sentido teológico carregado que atualmente tem a palavra “demônio”. Deidade, espírito, podendo o termo servir tanto para um espírito bom (eudaimon) como mau (kakodaimon).

2 Hades: literalmente, o “Invisível”; mundo dos mortos, o Além. 

 

VI. Os demônios preenchem o intervalo que separa o céu da terra; eles são o laço que une o Grande Todo consigo mesmo. A divindade não entrando jamais em comunicação direta com o homem, é pelo intermédio dos demônios que os deuses comerciam e se entretêm com ele, seja durante a vigília, seja durante o sono. [Platão, Banquete, 202b-203.] 

 

VII. A preocupação constante do filósofo (tal como o compreendiam Sócrates e Platão) é de tomar o maior cuidado da alma, menos por esta vida, que não é senão um instante, do que em vista da eternidade. Se a alma é imortal, não é sábio viver em vista da eternidade? [Platão, Fédon, síntese de XXIX.]

 

VIII. Se a alma é imaterial, ela deve ir, após esta vida, a um mundo igualmente invisível e imaterial, da mesma forma que o corpo, em se decompondo, retorna à matéria. Somente importa bem distinguir a alma pura, verdadeiramente imaterial, que se nutre, como Deus, de ciência e de pensamentos, da alma mais ou menos manchada de impurezas materiais que a impedem de se elevar para o divino, e a retêm nos lugares de sua morada terrestre. [Platão, Fédon, síntese de XXIX (final).] 

 

IX. Se a morte fosse a dissolução do homem todo inteiro, seria um grande ganho para os maldosos, após sua morte, ser libertos ao mesmo tempo de seu corpo, de sua alma e de seus vícios. Aquele que ornou sua alma, não de um enfeite estranho, mas do que lhe é próprio, só este poderá esperar tranquilamente a hora de sua partida para o outro mundo. [Platão, Fédon, excertos de LVII e LXIII.] 

 

X. O corpo conserva os vestígios bem marcados dos cuidados que se tomou com ele ou dos acidentes que provou; é da mesma forma com a alma; quando ela é despojada do corpo, leva os traços evidentes de seu caráter, de suas afeições e as impressões que cada um dos atos de sua vida aí deixou. Assim, a maior infelicidade que possa acontecer ao homem é ir para o outro mundo com uma alma carregada de crimes. Vês, Cálicles, que nem tu, nem Pólus, nem Górgias saberíeis provar que se deve levar uma outra vida que nos será útil quando estivermos lá embaixo. De tantas opiniões diversas, a única que permanece inabalável é que vale mais receber do que cometer uma injustiça, e que, antes de todas as coisas, deve-se aplicar, não em parecer homem de bem, mas em sê-lo. (Diálogos de Sócrates com seus discípulos em sua prisão). [Platão, Górgias, síntese de LXXX e LXXXIII.] 

 

XI. De duas coisas uma: ou a morte é uma destruição absoluta, ou ela é a passagem de uma alma a um outro lugar. Se tudo deve se extinguir, a morte será como uma dessas raras noites que nós passamos sem sonho e sem nenhuma consciência de nós mesmos. Mas se a morte não é senão uma mudança de morada, a passagem a um lugar onde os mortos devem se reunir, que bem-aventurança de aí reencontrar aqueles que se conheceu! Meu maior prazer seria examinar de perto os habitantes dessa morada e aí distinguir, como aqui, aqueles que são sábios daqueles que creem sê-lo e não o são. Mas é tempo de nos deixarmos, eu para morrer, vós para viver. (Sócrates a seus juízes). [Platão, Apologia de Sócrates, excertos de XXIX e XXX.] 

 

XII. Não é preciso jamais retribuir injustiça por injustiça, nem fazer mal a ninguém, por mais mal que se nos tenha feito. Poucas pessoas, entretanto, admitirão esse princípio, e as gentes que estão divididas sobre isso não devem senão se desprezar umas às outras. [Platão, Críton, X.] 

 

XIII. É pelos frutos que se reconhece a árvore*. É preciso qualificar cada ação segundo o que ela produz: chamá-la má quando dela provém o mal, boa quando dela nasce o bem. [Platão, Primeiro Alcibíades, XI (116a).]

 

XIV. A riqueza é um grande perigo. Todo homem que ama a riqueza não ama nem a ele nem ao que está nele, mas a uma coisa que lhe é ainda mais estranha do que o que está nele. [Platão, Primeiro Alcibíades, XXVI.] 

 

XV. As mais belas preces e os mais belos sacrifícios aprazem menos à Divindade do que uma alma virtuosa que se esforça por se lhe assemelhar. Seria uma coisa grave que os deuses tivessem mais consideração por nossas oferendas do que por nossa alma; por esse meio, os mais culpados poderiam se lhe tornar propícios. Mas não, não há de verdadeiramente justos e sábios senão aqueles que, por suas palavras e por seus atos, quitam-se do que devem aos deuses e aos homens. [Platão, Segundo Alcibíades, XIII (150a).] 

 

XVI. Eu chamo homem vicioso a esse amante vulgar que ama o corpo antes que a alma. O amor está por toda parte na natureza que nos convida a exercitar nossa inteligência; é encontrado até no movimento dos astros. É o amor que orna a natureza de seus ricos tapetes; ele se enfeita e fixa sua morada lá onde encontra flores e perfumes. É ainda o amor que dá a paz aos homens, a calma ao mar, o silêncio aos ventos e o sono à dor. [Platão, Banquete, excertos 183e, 186a, 188b, 196b, 197c.] 

 

XVII. A virtude não pode ser ensinada; ela vem por um dom de Deus àqueles que a possuem. [Platão, Mênon, 94e = 96c = 99a, 100b.] 

 

XVIII. É uma disposição natural a cada um de nós, é de se aperceber bem menos dos nossos defeitos que dos de outrem. [Platão, Laques, 200b.] 

 

XIX. Se os médicos fracassam na maior parte das doenças, é que eles tratam o corpo sem a alma, e que, o todo não estando em bom estado, é impossível que a parte se porte bem. [Platão, Cármides, síntese de 156d-157a.] 

 

XX. Todos os homens, a começar desde a infância, fazem muito mais mal do que bem. [Platão, Hípias Maior, 296c.] 

 

XXI. Há a sabedoria em não acreditar saber o que tu não sabes. [Platão, Teeteto, XLIV.] 

 

Tentemos torná-los, de início, se é possível, mais honestos em palavras; se não, não nos importemos com eles, e não busquemos senão a verdade. Tentemos nos instruir, mas não nos injuriemos. [Platão, O Sofista, XXXIII (246d); Laques, 195a.] 

—  Platão,

Primeiro e Segundo Alcibíades, Apologia de Sócrates, O Banquete, Cármides, Críton, Fédon, Górgias, Hípias Maior, Laques, Mênon, O Sofista, Teeteto.

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Nota:

 * Embora não haja ainda encontrado a referência platônica desta frase, ao menos da maneira como está escrita, o sentido próximo da passagem, associado às imagens da árvore e dos frutos, encontra-se em Xenofonte (Memoráveis, 4:6) e Platão (Fedro, 260c; República, livro X). 

Prof. Luiz Gustavo Oliveira dos Santos, 2011.

Depois de anos de pesquisa em documentos digitais franceses, concluí que Allan Kardec, na Introdução do seu Evangelho segundo o Espiritismo, no "Resumo da doutrina de Sócrates e Platão", utilizou a exposição da vida e obra de Platão que consta da Nova biografia geral: desde os tempos mais recuados até nossos dias [Nouvelle biographie générale depuis les temps les plus reculés jusqu'a nos jours], tomo 40, organizada por Jean Chrétien Ferdinand Hoefer, publicada pela Firmin Didot Frères, em Paris, 1862. O verbete “Platão”, escrito pelo próprio Hoefer, traz exatamente os trechos platônicos citados por Kardec (que Hoefer tirou da edição das obras platônicas de Stallbaum). Mas, entre as citações de Platão, Kardec incluiu alguns comentários do próprio Hoefer e neles se inspirou para escrever certas ideias sobre a filosofia antiga. A frase “É pelos frutos que se reconhece a árvore” se encontra no mesmo local, logo antes da citação do 1º. Alcibíades, na obra de Hoefer, mas como comentário dele a essa citação. A meu ver, Kardec provavelmente incluiu o comentário de Hoefer, tanto pela pertinência dele, quanto pela perfeita ocasião de conciliação da doutrina platônica com a cristã (e, consequentemente, com a espírita, objetivo de sua obra Evangelho segundo o Espiritismo). A partir de agora, parece-me despropositado continuar procurando de qual obra platônica Kardec tirou esta frase cristã, pois é suficiente descobrir sua bem provável fonte de pesquisa e nela encontrar a famosa frase. 

A contento, fiz uma tradução de todo o enorme verbete sobre Platão na Nova Biografia Geral de Hoefer, a partir do original francês digitalizado e livremente disponibilizado pela Gallica - site da Bibliothèque nationale de France. Divulgo, portanto, aqui (link) o texto completo do verbete “Platão”, de F. Hoefer, traduzido para o português. Também aí coloco o link para o original francês. Convido os leitores a constatar a muito provável fonte de consulta de Kardec, que, aliás, é uma excelente leitura sobre a vida e obra do grande filósofo ateniense.

Prof. Luiz Gustavo Oliveira dos Santos, 2017.

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