Régis Jolivet

Teodicéia: demonstração da existência de Deus

Régis Jolivet (1891-1966)

Professor de Filosofia

Decano da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica de Lyon

Extraído e adaptado de:

Tratado de Filosofia; vol. III: Metafísica;

e Curso de Filosofia, de Régis Jolivet.

I. PROVA PELO MOVIMENTO

Santo Tomás considera a prova pelo movimento como a mais clara de todas. Ela exige, entretanto, que tomemos seu sentido exato e em todo o seu alcance as noções metafí­sicas que emprega.

 

A. ELEMENTOS DE DEMONSTRAÇÃO

1. A noção de movimento. — O termo movimento não designa apenas o deslocamento de um lugar para outro, mas em geral toda a passagem da potência ao ato, o que quer aqui dizer, de uma maneira de ser a outra. Com efeito, como o demonstramos em Cosmologia, o que é essencial no movimento é propriamente a passagem como tal, a que faz do movimento uma realidade que participa ao mesmo tempo do ato e da potência: é um ato começado, que continua e que ainda não chegou ao seu termo derradeiro. O movimento é, pois, o sinal e a forma daquilo que geralmente chamamos de vir a ser. 

2. A inteligibilidade do devir. — Estabelecemos em Ontologia que “todo Ser que se move, é movido por um outro”, isto é, que nada passa da potência ao ato senão sob a ação de uma causa já em ato, o que significa que nada pode ser a causa de si mesmo. Não temos que retomar aqui a demonstração deste princípio metafísico nem a discussão das dificuldades que foram propostas para restringir a sua am­plitude. 

3. O fato do movimento. — (...) Ora, as ciências tendem cada vez mais a afastar a hipótese de que as coisas seriam por na­tureza imóveis e que elas receberiam o movimento como su­pérfluo acidental, que deveria ser explicado. As coisas estão essencialmente em movimento e a imobilidade não é senão uma aparência ligada às condições de percepção e de ação.

(...) Com efeito, esta prova não parte da imobi­lidade, mas pura e simplesmente da realidade do movimento considerado como passagem e forma do devir.

 

B. O ARGUMENTO

1. O primeiro motor. — Santo Tomás apresenta nos termos seguintes a prova pelo movimento (Suma Teológica, I. a, q. 2, art. 3): 

É evidente, como atestam os nossos sentidos, que no mundo algumas coisas estão em movimento. Ora, todo ser que está em movimento é movido por outro. Com efeito, é impossível que, sob o mesmo aspecto e da mesma maneira, um ser seja ao mesmo tempo movente e movido, isto é, que ele se mova a si mesmo e passe por si próprio da potência ao ato. Por­tanto, se uma coisa está em movimento, devemos dizer que ela é movida por outra. E, se a coisa que move, move-se por sua vez, é necessário de novo que ela seja movida por outra, e esta por outra ainda. Ora, não podemos ir assim até o infi­nito, porque não haveria então o motor primeiro. Disto se se­guiria que, por outro lado, não haveria também outros motores, porque os motores intermediários não se movem a não ser que sejam movidos pelo primeiro motor, como o bastão só se move quando manejado pela mão. Por conseguinte, é necessário chegar-se a um motor primeiro, que não seja ele mesmo movido por nenhum outro. E este primeiro motor é Deus.  

         

   2. Objeção e resposta. — Certos filósofos julgaram poder fugir a esta conclusão admitindo uma série infinita e eterna de motores e móveis. Se o mundo e o movimento, pensam eles, são eternos, não há por que procurar um primeiro motor.

   Mas Santo Tomás responde que esta objeção não poderia atingir o argumento, porque não o toma no seu verdadeiro sentido. Com efeito, o argumento manteria toda a sua força na hipótese da eternidade do mundo, uma vez que o que se considera não é a série de motores acidentalmente subordinados no tempo, mas a série de motores atualmente e essencialmente subordinados: atualmente, a planta cresce, e seu crescimento depende do Sol; mas o Sol, de que depende? Seu movimento atual, de onde provém? Se o recebe de um outro astro, este astro, por sua vez, de onde recebe atualmente o seu movimento? É impossível prosseguir ao infinito, porque isto seria suprimir o princípio e a fonte do movimento, e, portanto, o próprio movimento. Ora, o movimento existe. Logo, existe um primeiro motor. E se o mundo fosse eterno, seu movimento exigiria eternamente um primeiro motor.

3. O Ser por si. — Segue-se deste argumento um certo número de atributos, que é preciso necessariamente reconhecer no primeiro motor como derivando de sua natureza de causa primeira do movimento. 

a) O primeiro motor imóvel. Sabemos que a causa, como causa, não encerra nenhuma passividade, ela determina um “vir a ser”, mas está, ela própria, fora do devir. Do ponto de vista do movimento, nós deveremos, portanto, dizer que todo primeiro motor é imóvel e que o primeiro motor universal é absolutamente imóvel. Mas vemos que isto significa somente que este primeiro motor não é movido por outro, que ele é absolutamente primeiro em todas as ordens de mo­vimento.

A ideia de imobilidade, aqui, não faz portanto senão negar uma indigência intrínseca e toda passividade em relação a um agente superior, isto é, sob forma positiva, ela afirma, no primeiro motor universal, uma plenitude de ser absoluta, uma perfeição infinita

Eis porque Santo Tomás declara (Phys., VII, lect. 1a.) que a prova pelo movimento nos conduz tanto a um primeiro motor que se move por si próprio, quanto a um primeiro motor absolutamente Imóvel. O primeiro processo é o de Platão, o segundo o de Aristóteles. De fato, acrescenta Santo Tomás, “Platão e Aristóteles no fundo estão de acordo. Diferem apenas pela maneira de se ex­primir”. 

b) O ato puro. As notas que precedem nos levariam talvez a pensar que é gratuitamente que passamos da noção do primeiro motor à do primeiro motor universal. Enquanto a prova pelo movimento não nos levaria, a rigor, senão a um primeiro motor numa ordem dada e imóvel somente nesta ordem. — Mas o problema consiste em saber se é possível nos determos em tal motor sem precisarmos nos elevar, para ex­plicar qualquer movimento, até um motor absolutamente pri­meiro e perfeitamente imóvel. Com efeito, se o motor ao qual conduz o raciocínio não é imóvel senão sob um aspecto, não o podemos considerar como perfeitamente imóvel, ainda que fosse apenas na ordem em que produz o movimento. Porque, se ele é movido sob qualquer aspecto, está em ação de devir e é imperfeito e, por conseguinte, dependendo de outro na sua atividade e no seu ser. Ele não pode ser, pois, realmente, causa absolutamente primeira do movimento em qualquer ordem que seja. Assim, é necessário de qualquer maneira, para explicar o movimento, chegar a um primeiro motor absolutamente imó­vel, isto é, imutável na perfeição que lhe pertence em sua própria essência: Ato puro e que existe por si mesmo (a se).

Daí deduzimos que o primeiro motor é um ser espiritual, porque a matéria é corruptível e, como tal, essencialmente im­perfeita. Sendo espiritual, o primeiro motor deve possuir inteligência e liberdade, que são as propriedades essenciais dos seres espirituais. Também deve ser eterno, pois que ele é absolutamente imutável, como também presente em toda parte, porque, sendo princípio do movimento universal, está presente por seu poder a tudo que se move, isto é, ao universo inteiro e a todos os seres que o compõem. 

 

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