Pierre-Joseph Proudhon

Contradições da propriedade e do direito de lucro

Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865)

Extraído de:

O que é a propriedade, de Proudhon

DEMONSTRAÇÃO

Axioma A propriedade é o direito que o proprietário se atribui sobre uma coisa marcada com seu selo

Essa proposição é um verdadeiro axioma. Pois:

1.º − Não se trata de uma definição, já que não exprime tudo o que envolve o direito de propriedade: direito de vender, trocar, dar; direito de transformar, alterar, consumir, destruir, usar e abusar, etc. Todos esses direitos são outros tantos efeitos da propriedade, que podemos considerar separadamente, mas que aqui negligenciamos para só nos ocuparmos de um, o direito de ganho.

2.º − Essa proposição é universalmente admitida; ninguém pode negá-la sem negar os fatos, sem ser imediatamente desmentido pela prática universal.

3.º − Essa proposição é de uma evidência imediata, já que o fato que exprime acompanha sempre, seja realmente, seja facultativamente, a propriedade; é por ele sobretudo que ela se manifesta, se constitui, se coloca.

4.º − Enfim, a negação dessa proposição implica contradição: o direito de ganho é realmente inerente à propriedade, e de maneira tão íntima que onde ele não existe a propriedade é nula.

Observações. O ganho recebe diferentes nomes, segundo as coisas que o produzem: arrendamento, para as terras; aluguel, para as casas e móveis; renda, para os fundos aplicados de modo perpétuo; juros, para o dinheiro; benefício, ganho, lucro (três coisas que é preciso não confundir com o salário ou preço legítimo do trabalho), para as trocas.

O ganho, espécie de regalia, de homenagem tangível e consumível, compete ao proprietário em virtude de sua ocupação nominal e metafísica: sua chancela está aposta sobre a coisa; basta isso para que ninguém possa ocupar essa coisa sem sua permissão.

A permissão de ocupar sua coisa, pode o proprietário outorgá-la por nada: geralmente a vende. Na verdade, essa venda é um estelionato e uma concussão; mas, segundo a ficção legal do domínio da propriedade, essa mesma venda, severamente punida em outros casos, não se sabe bem por que, torna-se para o proprietário uma fonte de lucro e consideração.

O reconhecimento que o proprietário exige para a prestação de seu direito exprime-se, seja em símbolos monetários, seja por um dividendo em gêneros do produto presumido. De sorte que, pelo direito de ganho,o proprietário guarda mas não trabalha, colhe mas não planta, consome mas não produz, goza mas não age. Bem diversos dos ídolos do salmista são os deuses da propriedade: aqueles tinham mãos e não podiam apalpar; estes, ao contrário, manus habent et palpabunt.

Tudo é misterioso e sobrenatural na colação do direito de ganho. Cerimônias terríveis acompanham o advento de um proprietário, como outrora a recepção de um iniciado. Vem primeiro a consagração da coisa, consagração pela qual faz-se saber a todos que devem trazer uma oferenda conveniente ao proprietário sempre que quiserem, mediante outorga assinada por ele, usar de sua coisa.

Depois vem o anátema que, fora o caso citado, proíbe que se toque na coisa, mesmo na ausência do proprietário, e declara sacrílego, infame, condenável, digno de ser entregue ao braço secular, todo violador da propriedade.

Em terceiro lugar vem a dedicatória, pela qual o proprietário ou o santo designado, deus protetor da coisa, aí passa a habitar mentalmente como uma divindade em seu santuário. Graças a essa dedicatória, a substância da coisa é, por assim dizer, convertida na pessoa do proprietário, sempre presente sob as espécies ou aparências da dita coisa.

Eis a doutrina pura dos jurisconsultos: “A propriedade”, diz Toullier, “é uma qualidade moral inerente à coisa, um laço real que a liga ao proprietário e que só pode ser rompido por ele”. Locke duvidava respeitosamente que Deus pudesse tornar a matéria pensante; Toullier afirma que o proprietário a torna moral; o que falta para que seja divinizada? Certamente que não são as adorações.

A propriedade é o direito de ganho, quer dizer, o poder de produzir sem trabalhar; ora, produzir sem trabalhar é fazer do nada alguma coisa, numa palavra, criar: tarefa que não deve ser mais difícil que a de moralizar a matéria. Os jurisconsultos logo têm razão em aplicar aos proprietários este versículo da Escritura: Ego dixi: Dii estis et filii Excelsi omnes (“Tenho dito: Sois deuses e todos filhos do Altíssimo”).

A propriedade é o direito de ganho: esse axioma será para nós como o nome da besta do Apocalipse, nome que encerra todo o mistério da besta. Sabe-se que quem penetrasse o mistério desse nome obteria o conhecimento de toda a profecia e venceria a besta. Pois bem! É pela interpretação aprofundada de nosso axioma que mataremos a esfinge da propriedade. A partir desse fato eminentemente característico, o direito de ganho, seguiremos em seus recônditos a velha serpente, contaremos os enroscamentos homicidas dessa tênia assustadora, cuja cabeça com seus mil sugadores sempre escapou ao gládio de seus mais ardentes inimigos, abandonando-lhes imensos bocados de seu cadáver. É que, para vencer o monstro, era preciso mais que coragem: estava escrito que só pereceria quando um proletário, armado de uma varinha mágica, o medisse.

Corolários. 1.º − A quota do ganho é proporcional à coisa. Qualquer que seja a taxa de juros, quer a elevemos a 3%, 5% ou 10%, quer a rebaixemos para 0,5%, 0,25%, 0,1%, não importa, sua lei de crescimento permanece a mesma. Eis aqui qual é essa lei.

Todo capital avaliado em numerário pode ser considerado um termo da progressão aritmética que tem por razão 100, e a renda desse capital funciona como o termo correspondente de uma outra progressão aritmética que teria por razão a taxa de juros. Assim, um capital de 500 francos, sendo o quinto termo da progressão aritmética cuja razão é 100, terá a 3% uma renda indicada pelo quinto termo da progressão aritmética cuja razão é 3:

100        .         200       .         300       .         400       .         500       .

  3          .           6         .           9         .          12        .          15        .

É o conhecimento dessa espécie de logaritmos, da qual os proprietários conservam em casa tábuas traçadas e calculadas a um grau muito elevado, que nos dará a chave dos enigmas mais curiosos e nos levará de surpresa em surpresa.

Segundo essa teoria logarítmica do direito de ganho, uma propriedade com sua renda pode ser definida como um número cujo logaritmo é igual à soma de suas unidades dividida por 100 e multiplicada pela taxa de juros. Por exemplo, uma casa estimada em 100.000 francos e alugada à razão de 5% traz 5.000 francos de renda, segundo a fórmula:

(100.000 × 5)/100 = 5.000

Reciprocamente, uma terra de 3.000 francos de renda, avaliada a 2,5%, vale 120.000 francos, segundo esta outra fórmula:

(3.000 × 100)/2,5 = 120.000

No primeiro caso, a progressão que designa o crescimento do juro tem por razão 5, no segundo, 2,5.

Observação. O ganho conhecido pelos nomes de arrendamento, renda, juro, é pago todos os anos; os aluguéis vencem na semana, no mês, no ano; os lucros e benefícios ocorrem sempre que haja troca. De forma que o ganho está ao mesmo tampo na razão do tempo e da coisa, circunstância que levou a dizer que a usura cresce como um câncer, faenus serpit sicut cancer.

2.º − O ganho pago ao proprietário pelo detentor é coisa perdida para este. Pois, se o proprietário devesse, em troca do ganho que recebe, algo mais que a permissão que concede, seu direito de propriedade não seria perfeito; não possuiria jure optimo, jure perfecto, ou seja, não seria realmente proprietário. Portanto, tudo o que passa das mãos do ocupante para as do proprietário a título de ganho e como preço pela permissão de ocupar é irrevogavelmente adjudicado ao segundo, perdido, anulado para o primeiro, a quem nada pode retornar, a não ser em caráter de doação, esmola, salário por serviços prestados ou preço de mercadorias por ele entregues. Numa palavra, o ganho perece para o que toma emprestado, ou, como diria energicamente o latim, res perit solventi.

3.º − O direito de ganho ocorre tanto contra o proprietário como contra o estranho. O dono da coisa, distinguindo em si o possuidor do proprietário, impõe-se a si mesmo, para usufruto de sua propriedade, uma taxa igual à que poderia receber de um terceiro; de modo que um capital acarreta juros tanto nas mãos do capitalista como nas do que toma empréstimos e do comanditário. De fato, se em lugar de aceitar 500 francos de aluguel por meu apartamento eu preferir ocupá-lo e usufrui-lo, é claro que fico devendo a mim mesmo uma renda igual à que recuso: esse princípio é universalmente seguido no comércio e visto como um axioma pelos economistas. Também os industriais que têm a vantagem de ser donos de seus capitais de giro, embora não devam juros a ninguém, só calculam seus lucros depois de deduzir, com seus salários e despesas, os juros de seu capital. Pela mesma razão, os que emprestam dinheiro mantêm consigo a menor quantidade que podem; pois, como todo capital gera necessariamente juros, se ninguém os paga, recaem sobre o capital e o diminuem. Assim, pelo direito de ganho, o capital lesa-se a si mesmo: é o que Papiniano sem dúvida exprimiria por esta fórmula tão elegante quão enérgica: Faenus mordet solidum. Peço desculpas por empregar tão frequentemente o latim neste assunto: trata-se de uma homenagem que presto ao povo mais usurário que jamais houve.

PIERRE-JOSEPH PROUDHON

O que é a propriedade.