Anaxágoras

Sobre a Natureza (reconstrução do livro a partir dos fragmentos doxográficos)

Anaxágoras de Clazômenas (c. 500-428 a.C.)

     O texto, que não chegou até nós, foi compilado a partir dos fragmentos citados por autores antigos (os índices em cada trecho reportam às referências doxográficas listadas nas notas), os quais provavelmente tiveram nas mãos ou conheceram a obra "Sobre a Natureza", de Anaxágoras. Os fragmentos foram extraídos das fontes citadas nas Referências Bibliográficas (listadas no final). 

     A ordem dos assuntos segue o desenvolvimento das ideias do filósofo, conforme o seguinte esquema: 

          1. A mistura infinita original

          2. O Intelecto (Nous) e sua ação ordenadora

          3. As sementes (ou homeomerias, na denominação posterior) como princípios de todas as coisas - "Tudo está em tudo"

          4. Explicação do funcionamento do cosmo (sem usar o Intelecto, conforme a decepção de Sócrates, em PLATÃO, Fédon, 98-c2). 

          5. A sensação e a cena teatral

     Sugestões de organização e fontes são bem-vindas (teociencia@gmail.com).

Luiz Gustavo O. dos Santos

Sobre a Natureza

“Estavam juntas todas as coisas; o Intelecto as separou e ordenou...”

[1. A mistura infinita original]

Estavam juntas todas as coisas, infinitas pela quantidade e pela pequenez; porquanto também a pequenez era infinita. 

Enquanto estavam juntas, nenhuma delas era claramente reconhecível, devido à sua pequenez. 

E o ar e o éter dominaram o todo, sendo ambos infinitos. Pois, entre todas essas coisas, eles são os maiores, em quantidade e tamanho.1 O ar e o éter se distinguem na imensidão circundante, e o circundante é infinito em quantidade.2

E não há um mínimo do pequeno, mas sempre há um menor (pois é impossível que o que é deixe de ser). 

Também do grande há sempre um maior. O grande é igual ao pequeno. Comparada consigo mesma, toda coisa é igualmente grande e pequena.3

As partes do grande e do pequeno são iguais em número; assim, tudo está em todas as coisas. Não há partículas isoladas, mas todas as coisas têm parte de cada uma. E, não sendo possível haver uma que seja a menor, não é possível que se separe e seja por si. Como era no princípio, assim é agora: tudo está junto. Em todas as coisas, estão muitas, ocorrendo a multiplicidade tanto nas coisas menores como nas maiores.4

Definidas assim essas coisas, compreendemos que elas, em conjunto, não perfazem maior nem menor quantidade; não ultrapassam o todo; são sempre iguais ao todo.5

Ocorrendo assim as coisas, precisamos admitir que, em tudo o que se une, há muitos e variados elementos com sementes de todas as coisas, com todas as modalidades de formas, cores, sabores, e que os homens foram formados nelas, e outros seres vivos dotados de alma. Esses homens possuem cidades e campos cultivados, como nós. Têm um sol e uma lua e outros astros, também como nós. A terra deles produz muitas coisas, as melhores das quais eles levam para casa e delas fazem uso. A separação que exponho se dá não só entre nós, mas ainda em outros lugares.

Mas, antes que estas coisas se separassem do todo, não era discernível nenhuma cor, nenhuma sequer. Opunha-se a isso a mistura de tudo, do úmido e do seco, do quente e do frio, do claro e do escuro, da muita terra contida e da infinita multidão de sementes, nada semelhantes entre si. Encontrando-se assim todas as coisas, importa ensinar que todas as coisas se encontram em tudo.6

[2. O Intelecto e sua ação ordenadora]

Em todas as coisas há partículas de tudo, exceto do Intelecto, pois o Intelecto se mantém uno.7

Tudo o mais participa de cada coisa; o Intelecto é, porém, infinito, autônomo e não misturado com nenhuma coisa, mantendo-se sozinho em si mesmo. Porquanto, se não fosse por si mesmo, mas misturado com outra coisa, seria parte de todas as coisas, mesmo quando misturado com uma só. Na verdade, em cada coisa há uma parte de tudo, como anteriormente se disse. As coisas com ele misturadas o estorvariam, de sorte a não poder exercer poder sobre coisa alguma como o poderia estando sozinho em si mesmo. Ele é o mais fino entre todas as coisas; de tudo tem conhecimento e tem o maior poder. Sobre o que só tem alma, seja grande, seja pequeno: sobre todos, o Intelecto tem seu comando. Exerce o comando sobre o conjunto da revolução, desde o início.

Primeiramente, começou com um redemoinho pequeno; depois, transmitiu-se adiante e sempre mais. E o que então se misturou e se distinguiu, tudo o Intelecto reconhecia. E como deveria tornar-se, e como era o que já não é, e tudo o que é agora, e como virá a ser, tudo o Intelecto ordenou. E assim também a revolução que agora exercem os astros, o Sol, a Lua, o ar e o éter, que se diferenciam. Na verdade, esse redemoinho provoca a diferenciação. Distinguem-se o denso do rarefeito, o frio do quente, o escuro do claro, o úmido do seco. As partes são constituídas de multiplicidades. Nada se distingue completamente de outra coisa, exceto o Intelecto. Mas o Intelecto é todo igual, quer no maior, quer no menor, enquanto nenhuma outra coisa é igual a qualquer outra, mas cada corpo simples é e era mais claramente aquilo de que possuía maior quantidade.8

O Intelecto ordenador do mundo é a divindade.9 Nada do que acontece ocorre segundo um destino necessário; mas este é apenas um nome vazio.10 Estando todas as coisas reunidas e em repouso por um tempo infinito, o Intelecto introduziu o movimento e as separou.11

E quando o Intelecto começou a mover as coisas, a separação tomou lugar a partir de tudo o que foi movido, e, assim como o Intelecto pôs em movimento, foi separado. E, à medida que as coisas foram postas em movimento e separadas, a revolução fez com que fossem separadas muito mais.12

Então essas coisas giram e são separadas pela força e a velocidade. E a velocidade produz a força. A sua velocidade não é como a velocidade de qualquer coisa que esteja agora entre os homens, mas, de todas as maneiras, muitas vezes mais rápida.13 O Intelecto inicia o movimento, e os corpos pesados, como a terra, ocupam uma posição inferior; os corpos leves, como o fogo, a superior, enquanto a água e o ar ocupam uma posição intermediária.14

O Intelecto é atributo de todos os animais, grandes e pequenos, superiores e inferiores.15 E o Intelecto, que sempre é, está certamente lá, onde tudo o mais está, na massa circundante, e no que foi unido com ele e separado dele.16

[3. As sementes como princípios de todas as coisas]

Os princípios das coisas são pequenas partículas homogêneas; o ouro é composto de pequenas partículas de pó de ouro, e, assim, todo o universo é composto de partículas mínimas homogêneas.17

Na divisão do infinito, as coisas da mesma espécie tendem a se juntar, e o que era ouro ou terra no todo original se torna ouro e terra, respectivamente.18

Os princípios são em número infinito; pois quase todas as coisas que são compostas de partes semelhantes a elas próprias, como a água ou o fogo, são geradas e destruídas desta maneira, isto é, apenas por agregação e dissociação, não o sendo por qualquer outro sentido e persistindo eternamente.19 As misturas se fazem por justaposição dos elementos.20

Sendo cada coisa caracterizada segundo o que nela predomina, parece, de fato, ouro aquilo em que predominam as partículas de ouro, embora haja nele todas as coisas.21

Cada coisa está misturada com cada coisa, porque de cada coisa se vê gerar cada coisa.22 Como pode o cabelo vir do que não é cabelo, ou a carne do que não é carne?23 As substâncias de partes semelhantes (p. ex., carne, osso, etc.) são os elementos, ao passo que o ar ou o fogo são misturas destas e de todas as outras sementes; cada um deles é um agregado de partículas invisíveis.24 Em consequência, não podemos conhecer com distinção as coisas, seja em palavras ou atos.25

Pois nós nos nutrimos com alimentos de aparência simples e uniforme, como o pão e a água. Desses alimentos, nutrem-se cabelos, veias, artérias, carne, nervos, ossos e todas as outras partes. Forçoso nos é reconhecer que, no alimento que tomamos, existem todas as coisas que se podem desenvolver. Naquele alimento estão contidas partes geradoras de sangue, nervos, ossos e demais partes que só são reconhecíveis pela razão. Pois não se deve reduzir tudo aos sentidos, que nos mostram o pão e a água, mas reconhecer que eles são compostos de partículas somente visíveis pela razão.26

Por causa da debilidade dos nossos sentidos, não somos capazes de discernir o verdadeiro.27 Os fenômenos são uma visão do invisível.28

[4. A formação e o funcionamento do cosmo]

O ar contém as sementes de todas as coisas e são estas sementes que, quando arrastadas para baixo com a chuva, dão origem às plantas.29

Os animais resultaram da umidade, do calor e de uma substância proveniente da terra; posteriormente, as espécies se propagaram mediante a geração dos seres uns pelos outros, os machos do lado direito, as fêmeas, do esquerdo.30 O que é chamado de “leite de pássaros” é a clara do ovo.31

Pela força e ligeireza, assemelhamo-nos aos animais; nós, porém, os aproveitamos; valemo-nos da experiência, da memória, da sabedoria e da nossa arte.32 O homem é o mais inteligente de todos os animais por possuir mãos.33

Com referência ao nascer e ao morrer, os gregos não possuem uma correta opinião. Nenhuma coisa nasce ou perece. Assim, com mais exatidão se denomina ao nascer, reunir-se; ao morrer, separar-se.34

As coisas existentes num só mundo não estão divididas umas das outras, nem cortadas a machado, nem o quente, do frio, nem o frio, do quente.35

O denso, o úmido, o frio e o escuro se uniram onde a Terra está agora, enquanto o raro, o quente, o seco e o brilhante se retiraram para a parte mais afastada do éter.36

Destes, à medida que são separados, a terra é solidificada; da névoa, a água é separada e, da água, a terra. Da terra, as pedras são solidificadas pelo frio, e estas correm para fora mais do que a água.37

A Terra é de forma de plana e se mantém suspensa onde está, devido ao seu tamanho, porque não há vazio e porque o ar, que é muito forte, mantém a terra a flutuar nele.38 Assim, ela não pode soltar o ar que tem embaixo de si, porquanto se apóia sobre ele como uma tampa, como fazem manifestamente os corpos chatos, pois que mesmo os ventos não os podem mover senão dificilmente, em razão da resistência que oferecem. Em consequência, a própria imobilidade é produzida pelo fato de a Terra apresentar uma face chata ao ar situado embaixo dela; o ar, na falta de dispor de lugar suficiente para onde ir, fica em repouso sob a Terra, comprimindo-se em uma só massa, como se observa na água contida por uma clepsidra.39

Da umidade da terra, o mar veio das águas nela existentes, cuja evaporação deu origem a tudo o que emergiu, e dos rios que correm para ele. Os rios devem sua origem, em parte, à chuva, em parte, às águas da terra; pois a terra é oca, e nas suas partes ocas contém água. O Nilo aumenta de caudal no verão graças às águas que para ele correm, procedentes das neves do Sul.40

Os ventos se manifestam quando o ar se torna rarefeito por causa do calor do sol; o trovão é uma colisão de nuvens, e o relâmpago é sua fricção violenta; o terremoto é uma retração de ar no interior da terra.41 Chamamos de arco-íris a reflexão do sol nas nuvens. (Ora, ele é um sinal de tempestade; pois a água que flui ao redor da nuvem provoca vento ou derrama em chuva.)42

O éter que envolve o mundo é de natureza ígnea e, após ter arrancado pedras fora da Terra, por força de sua rotação, ele as incandesceu para transformá-las em estrelas.43

O Sol, a Lua e todos os astros são pedras incandescentes, que a rotação do éter faz girar consigo. Todo o céu é formado de pedra. Esta massa se mantém pela rapidez do movimento e, se cessasse esse movimento, se despencaria imediatamente.44

O Sol é uma massa incandescente ou uma pedra esbraseada.45 É o Sol que coloca brilho na Lua.46 O Sol excede o Peloponeso em tamanho.

A Lua está por baixo do Sol e mais perto de nós. A Lua não tem nenhuma luz própria, mas recebe-a do Sol. A Lua é feita de terra e tem planícies e ravinas.47 É um astro incandescente comportando planícies, montanhas e vales.48 É uma terra incandescente contendo um fogo sólido. Na Lua existem habitantes, rios e tudo o que se encontra na Terra.49

A princípio, os astros se moviam no céu como numa cúpula, de tal maneira que o pólo celeste, sempre visível, estava no vértice da Terra, em posição vertical, porém, mais tarde, inclinou-se.50

Por baixo dos astros, encontram-se certos corpos, invisíveis para nós, que giram com o Sol e a Lua. Nós não sentimos o calor dos astros, porque eles estão muito longe da Terra; além disso, eles não são tão quentes como o Sol, porque ocupam uma região mais fria. Os astros, na sua revolução, passam por baixo da Terra.

Os eclipses da Lua são devidos ao fato de ela ser ocultada pela Terra, ou às vezes pelos corpos que se encontram por baixo da Lua; os do Sol, à interposição da Lua, na fase de lua-nova.51

O solstício se produz pela pressão do ar que o próprio Sol comprime e pressiona contra os pólos, por condensação.52

Com o nascer da estrela Cão, os homens começam a colheita; com o seu poente, eles começam a cultivar os campos. Ela fica escondida por quarenta dias e noites.53

 A Via Láctea é resultado da reflexão da luz solar quando não se interpõe nenhum astro que eclipse a claridade. Os cometas são uma aglomeração de estrelas errantes que expelem chamas. As estrelas cadentes são como faíscas que vibram por causa do ar.54

[5. A sensação e a cena teatral]

 A sensação nasce dos contrários, porque semelhante não afeta semelhante. Vemos isso na imagem da menina dos olhos, que não reflete a imagem da mesma cor, mas a diferente. A cor incide melhor sobre coisas de cor diferente. Do mesmo modo o tato e o paladar discernem. O que tem o mesmo calor e frio que nós não nos aquece nem nos esfria, ao se dar o contato. Nem percebemos o doce e o amargo por meio deles próprios. Sentimos, porém, o frio com o quente; o agradável por meio do desagradável; o doce pelo amargo. Ou seja, pelo que falta em cada um. Efetivamente, dizem que os opostos se encontram em nós desde o início.

Toda sensação é acompanhada de dor, porquanto cada semelhante, pelo seu contato, traz a dor. A dor se torna manifesta com a longa duração e intensidade da sensação. As cores berrantes e os sons excessivos causam sofrimento, sendo-nos impossível ficar muito tempo sob sua ação.55

No cenário [do palco], convém, a partir de um ponto fixo tomado como centro, fazer corresponder à projeção dos raios visuais as linhas [do cenário] segundo uma proporção natural, de forma que as imagens efetivamente vistas (mas correspondendo a uma realidade enganadora aos olhos) possam dar o aspecto de edifícios [em relevo] às pinturas do cenário e que as figuras traçadas sobre uma superfície plana produzam a aparência, seja de recuo, seja de avanço.56

Referências doxográficas:

[1] Frag. 1.

[2] Frag. 2.

[3] Frag. 3.

[4] Frag. 6.

[5] Frag. 5.

[6] Frag. 4.

[7] Frag. 11.

[8] Frag. 12.

[9] Écio, I, 7.

[10] Alexandre de Afrodísia, Do Destino, 2.

[11] Aristóteles, Física, 8.

[12] Frag. 13.

[13] Frag. 9.

[14] Diógenes Laércio, Vidas dos Filósofos Ilustres, II, 8.

[15] Aristóteles, Da Alma, 404.

[16] Frag. 14.

[17] Diógenes Laércio, Vidas, II, 8.

[18] Simplício, Física, 27.

[19] Aristóteles, Metafísica, 984.

[20] Écio, I, 17.

[21] Simplício, Física, 272.

[22] Aristóteles, Física, I, 4.

[23] Frag. 10.

[24] Aristóteles, Do Céu, III.

[25] Frag. 7.

[26] Écio, III, 5.

[27] Frag. 21.

[28] Frag. 21a.

[29] Teofrasto, História das Plantas, III.

[30] Diógenes Laércio, Vidas, II, 9.

[31] Frag. 22.

[32] Frag. 21b.

[33] Aristóteles, Partes dos Animais, 687,

[34] Frag. 17.

[35] Frag. 8.

[36] Frag. 15.

[37] Frag. 16.

[38] Hipólito, Refutação, I.

[39] Aristóteles, Do Céu, II.

[40] Hipólito, Refutação, I.

[41] Diógenes Laércio, Vidas, II, 9.

[42] Frag. 19.

[43] Écio, Opiniões, 2.

[44] Diógenes Laércio, Vidas, II, 12.

[45] Écio, Opiniões, 2.

[46] Frag. 18.

[47] Hipólito, Refutação, I.

[48] Écio, Opiniões, 2.

[49] Aquiles Tácio, Introdução a Aratos, 21.

[50] Diógenes Laércio, Vidas, II, 9.

[51] Hipólito, Refutação, I.

[52] Écio, Opiniões, 2.

[53] Frag. 20.

[54] Diógenes Laércio, Vidas, II, 9.

[55] Teofrasto, Da Sensação, 27-29.

[56] Vitrúvio, Da Arquitetura, 7.

Referências bibliográficas:

BURNET, John. Fragments of Anaxagoras. Disponível em Wikisource: <https://en.wikisource.org/wiki/Fragments_of_Anaxagoras>. Acesso em: 22 jun. 2017. 

 

DUMONT, J. P. Elementos da história da filosofia antiga. Trad. Georgete M. Rodrigues. Brasília: UnB, 2004. 

 

KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os filósofos pré-socráticos. 5. ed. Trad. Carlos Alberto Louro Fonseca. Lisboa-POR: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005. 

 

LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. 2. ed. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora UnB, 2008. 

 

MONDOLFO, R. O pensamento antigo. 3. ed. Vol. 1. Trad. Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1971.

PAULI, Evaldo. Enciclopédia Simpózio. “Anaxágoras de Clazômenas”. Florianópolis, 1997. Disponível em: <http://www.simpozio.ufsc. br/Frame.htm>. Acesso em: 13 mar. 2008.