Régis Jolivet

Teodicéia: demonstração da existência de Deus

Régis Jolivet (1891-1966)

Professor de Filosofia

Decano da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica de Lyon

Extraído e adaptado de:

Tratado de Filosofia; vol. III: Metafísica;

e Curso de Filosofia, de Régis Jolivet.

III. PROVA PELA CONTINGÊNCIA

A via precedente, como a do movimento, fundara-se sobre a realidade de um encadeamento de movimentos e de causas ordenados entre si. Mas a consi­deração destas hierarquias não é essencial à prova de Deus. Podemos, se o quisermos, considerar o universo como um fenômeno único, isto é, como um Todo no qual não procuramos de nenhum modo determinar as ligações fenomenais. Este universo, por sua própria natureza, apresenta-se também como uma realidade finita e contingente que exige necessariamente, para ser inteligível, uma Causa primeira de sua existência. Assim deveríamos raciocinar, sem consideração de intermediários, se partíssemos, por exemplo, do espírito finito: dele a Deus, a relação causal não admite nenhum intermediário, porque a criação é imediata.

Com efeito, como vamos ver, é a própria natureza do ser finito que nos obriga a recorrer a uma causa do ser, isto é, no presente caso, a um primeiro ser necessário. Para esta de­monstração, nenhum recurso se impõe à hipótese das hierar­quias causais no seio do universo. É o que há de mais intrín­seco no ser finito, a saber, sua própria contingência, que firma a exigência absoluta de um ser necessário por sua própria essência.

 

A. O ARGUMENTO

1. Exposição. — Esta nova prova parte do fato de ser o universo composto por seres contingentes, isto é, seres que são, mas que poderiam não ser, porque estes seres, ou bem nós os vemos nascerem, transformarem-se e morrerem, ou a ciên­cia nos mostra que foram formados e que estão sujeitos a um processo permanente de dissociação, ou bem a sua própria com­posição os revela como dependentes de um princípio de unidade interna. — Ora, os seres contingentes não têm em si mesmos a razão de sua existência. Com efeito, um ser que tivesse em si mesmo, isto é, na sua própria natureza, a razão de sua existência, existiria sempre e necessariamente e não poderia sofrer nenhuma mudança. Os seres contingentes devem, pois, ter em outro a razão de sua existência, e este outro, se tam­bém é contingente, a tem também em outro. Mas não podemos ir assim até o infinito; de ser em ser, devemos chegar, no final das contas, a um ser que tenha em si mesmo a razão de sua existência, isto é, a um ser necessário, que exista por si mesmo, e pelo qual todos os outros existem. — Este ser necessário, que existe por sua própria natureza e não pode não existir, é Deus.

 

B. ELEMENTOS DA DEMONSTRAÇÃO

Nesta prova, temos que examinar três pontos. O fato da contingência, o princípio de que o contingente não pode se explicar a não ser pelo necessário e, enfim, a conclusão de que o ser necessário por si mesmo é Deus. 

1. O fato da contigência

a) Os sinais da contingência. Como estabelecer de uma maneira absolutamente certa a contingência de um ser e a de todo o universo? Santo Tomás dá como sinal certo da con­tingência o fato de não existir sempre, de nascer e de morrer. É, com efeito, o sinal mais seguro da contingência e basta para sustentar o argumento, porque é evidente que tais seres exis­tem na mundo. — Podemos acrescentar o fato de ser composto em partes, porque toda composição ou união de diversos não pode se explicar de uma maneira adequada senão e apenas pelos elementos do composto, assim também como o fato de ser sujeito ao devir, porque o que muda não é necessário. 

b) Objeção. Objetou-se que esta noção do contingente implicaria uma petição de princípio. Com efeito, diz-se, o fato de nascer e de morrer não significa necessariamente a contingência, porque é possível que o nascimento e a morte de um ser sejam absolutamente necessários, por exemplo, em função do Todo. Da mesma maneira, o composto não é mais contin­gente se admitirmos que os elementos do qual ele resulta foram determinados necessariamente para formar o todo.

Esta objeção está fora do problema. Por um lado, com efeito, procuramos o necessário não na ordem do devir (subordinação acidental), mas na ordem do ser (subordina­ção essencial na existência): o ser necessário na ordem do devir permanece essencialmente contingente do ponto de vista da existência atual, porque o fato de nascer e de morrer significa que ele não é necessário em si, em razão de si mesmo. Por outro lado, não se trata de negar que haja necessário no mundo, que a hipótese da contingência universal é um absurdo: se todos os seres fossem contingentes, nada teria resultado jamais desta indiferença universal à existência. Atualmente, absolutamente nada existiria. — Portanto, existe o necessário no mundo. Ora, este necessário, pelo qual se explica a reali­dade atual dos seres contingentes, é necessário ou em razão de si mesmo ou na de outro. Se ele o é em razão de si mesmo, este necessário é Deus. Se ele o é em razão de outro, este o é, por sua vez, em razão de si mesmo ou de outro. De qualquer maneira é impossível ir-se nesta ordem até o infinito, porque aí não haveria mais princípio primeiro do ser. É preciso, pois, colocar um primeiro ser necessário por si mesmo, princípio do ser universal. Este ser necessário é Deus. 

2. Contingente e necessário. — O princípio de que o con­tingente não se pode explicar de uma maneira adequada se­não e apenas pelo necessário parece gozar de uma evidência imediata, porque ele é apenas a forma do princípio da razão de ser. O contingente sendo, com efeito, o que não tem em si a razão de sua existência, deve, para ser inteligível, ter sua razão em outro, e, como não podemos ir até o infinito nesta ordem, é imprescindível, portanto, afirmar a existência de um necessário. 

3. O necessário por si mesmo. — A prova conclui pela afirmação de que o ser necessário por si mesmo é Deus. A conclusão é rigorosa, mas pede algumas explicações. Com efei­to, poderíamos dizer: a prova afirma gratuitamente que o ser necessário é Deus, isto é, um ser distinto do mundo e infini­tamente perfeito. Tudo que foi estabelecido é apenas que existe um ser necessário. Mas não poderíamos admitir que o neces­sário é o conjunto de seres contingentes, considerados como um todo, ou sua lei imanente, ou ainda o devir subjacente aos fenômenos? — Por outro lado, não deveremos revelar uma volta ao argumento ontológico na identificação do necessário e do perfeito? Tais são as dificuldades que temos que examinar. 

a) O Todo contingente. É claro que uma coleção ou soma de seres contingentes não poderia ser tomada como necessária (suposição panteísta): porque, por hipótese, a soma ou coleção depende dos elementos que a compõem, sendo contingente como eles. Para lhe con­ceder o caráter de necessidade, seria necessário no mínimo fazer dela um todo real e supor um princípio imanente de unidade (lei, ideia ou devir), distinto dos elementos que domina.

Contra isto, podemos objetar, como o faz E. Boutroux (A Contingência das Leis da Natureza), que não conhecemos nenhuma lei, nem mesmo a da conservação da energia, que tenha em si o sinal da necessidade. Mas esta observação não tem valor suficiente: ela é de fato, não de direito. — É preciso ir mais adiante e mostrar que o Todo como tal está afetado de uma contingência radical. Esta resulta, com efeito, de uma multi­plicidade interna do Todo: vimos que é metafisicamente impossível explicar a unidade do diverso e do múltiplo sem uma causa distinta do Todo como tal. É que se, por um lado, o que é diferente de si próprio não pode ser uno ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, — por outro, a razão da unidade não pode ser dada numa lei imanente idêntica ao Todo: porque isto equivaleria a explicar o Todo pelo Todo, o que é um círculo vicioso evidente, ou pelos elementos, o que é excluído como sendo contraditório. — Quanto a supor, à maneira de Espinoza, uma substância única unificando o devir, que ela gera e sustém, isto apenas faz recuar o problema sem o resolver. Porque trata-se de saber se esta Substância se distingue realmente do devir ou se ela mesma está em ação de devir. No primeiro caso, existe fora do devir um ser necessário que explica os seres contingentes da experiência. No último caso, a Substância não poderá mais (em virtude da primeira prova pelo movimento) ser concebida como estando perfeitamente em ato e requererá, por sua vez, para se explicar, uma causa transcendente estranha ao devir, Ato puro, Ser necessário por si mesmo. Portanto, é necessário concluir que o Todo, por causa mesmo de sua multiplicidade e diversidade interna, está marcado pelo sinal da potencialidade e, por isto, da contingência radical

b) Devir e contingência. Alguns filósofos pensa­ram que o devir podia conferir às coisas tudo o que lhes é necessário para ser. O mundo, nesta concepção, estaria sujeito a um devir permanente, que seria a sua lei mais profunda e que até mesmo definiria a essência do ser universal. Bastaria, pois, para explicar de uma maneira adequada tudo o que se produz sucessivamente na duração, sem exigir nenhum prin­cípio distinto de si mesmo.

Não vemos como poderíamos nos satisfazer com tal ex­plicação. O devir, como tal, é apenas uma passagem, a saber, passagem da potência ao ato. Isto supõe de um modo absoluto, no próprio princípio do devir, um ser em ato, porque senão o devir ficaria suspenso no vazio e procederia do nada. Podemos, sem dúvida, para lhe fazer explicar o universo e sua organização, atuá-lo de algum modo e supor que ele contém implicitamente tudo o que deve produzir. Mas evidentemente isto não é senão uma petição de princípio É, portanto, impossível colocar o devir na origem, ou, se o preferirmos, considerar o devir como o princípio primeiro. Isto, no fundo, é a mesma coisa que explicar o ser pelo nada. 

c) Conclusão do argumento. Constatamos, portanto, ain­da aqui, que o aspecto sob o qual nos é revelada a causa pri­meira pela terceira via implica todos os atributos que resultam das outras provas. O Ser necessário se nos apresenta, com efeito, como sendo o Ser perfeito: se ele tem em Si mesmo toda sua razão de ser, ele existe por si mesmo: ele é, portanto, seu próprio ser; sua essência e sua existência não fazem senão uma só coisa e nada limita ou restringe a amplitude do ser ou da existência. — Por isto mesmo, é preciso chamá-lo de Infinito, porque, sendo aquele que é por essência, ele possui necessariamente tudo que é do ser: o nome Infinito lhe convém, portanto, no sentido de plenitude do ser, e não no sentido negativo de indeterminação, de inacabamento e de poten­cialidade, todas coisas contraditórias ao infinito divino que é o Ato puro. — Enfim, um tal Infinito está necessariamente acima da ordem material e corporal, que é limitada, finita, múltipla e potencial por natureza. Ele é, portanto, Espírito.

 

 

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