Régis Jolivet

A relação entre caridade e justiça

Régis Jolivet (1891-1966)

Professor de Filosofia

Decano da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica de Lyon

Extraído e adaptado de:

Tratado de Filosofia; vol. VI: Moral.

JUSTIÇA E CARIDADE

 I. DEVERES DE CARIDADE 

1. Natureza. 

a) Definição. A caridade é a virtude pela qual amamos nossos semelhantes por eles mesmos, sem nenhum interesse para nós, e procuramos proporcionar-lhes todo o bem que está ao nosso alcance. Mais brevemente, poder-se-ia dizer, tomando a palavra amor no seu pleno sentido, afetivo e efetivo, que a caridade consiste no amor ao próximo.

            A caridade vai, pois, além da justiça, tomada na sua concepção jurídica e estrita, pois a justiça ordena somente respeitar os direitos de outrem, ao passo que a caridade é essencialmente a oferta de si e daquilo que nos pertence, por efeito de um amor de benevolência que nos força a querer e fazer bem ao próximo. 

b) Domínio da caridade. Da definição da caridade, ressalta que seu domínio é ilimitado e compreende todas as ordens de necessidades do próximo: corporais, intelectuais e morais. Com efeito, a caridade obriga a socorrer às necessidades corporais de outrem mediante as diferentes formas de assistência material: esmola, cuidados a dispensar em caso de doença ou de miséria física, defesa contra agressões injustas, etc. Manda-nos prover também às necessidades intelectuais do outro, dispensando-lhe os bens superiores que contribuem para a cultura do espírito. Enfim, a caridade deve estar atenta às necessidades morais do próximo, as quais reclamam a cada um de nós o bom exemplo, a paciência, a polidez das maneiras e sobretudo a polidez do coração, e, em geral, todos os socorros que podemos prestar ao próximo para ajudá-lo a praticar a virtude e a alcançar o seu fim último. 

2. Fundamentos dos deveres de caridade. Os deveres de caridade se fundam na humanidade, isto é, no amor natural que os homens devem ter uns aos outros enquanto membros da mesma família humana. Usando um termo ainda mais preciso, digamos que a caridade se funda na fraternidade dos homens entre si. Por isso, vemos que a idéia de caridade progrediu ao mesmo que a da fraternidade humana: foi o cristianismo que, revelando aos homens a sua fraternidade natural e sobrenatural, preparou o advento histórico da caridade universal. 

3. Graus da caridade. As obrigações de caridade comportam diversos graus, conforme os nossos semelhantes nos são mais ou menos próximos. Assim, em igualdade de condições, devemos exercer a nossa caridade para com nossos familiares e amigos antes de exercê-la para com estranhos. Do mesmo modo, devemos amar nossa pátria mais do que aos outros países.

Por outra parte, um provérbio assegura que “a caridade bem ordenada começa por si mesmo”. Mal entendido, este provérbio poderia passar como sendo o código do egoísmo. Contudo, ele tem um sentido perfeitamente aceitável se compreendermos que a ordem natural nos leva, primeiro, a amarmos a nós mesmos. Este amor, praticado segundo a ordem da razão, deve nos conduzir a sacrificar pelo bem dos outros, segundo as exigências da caridade, nosso tempo, nossas comodidades, nossos bens e até nossa vida. Só ama perfeitamente a si mesmo quem sabe esquecer-se de si pelo próximo, porquanto, surdo aos conselhos do egoísmo, caminha no sentido da verdadeira grandeza humana, que é espiritual. Aqui se aplica por excelência a palavra evangélica segundo a qual “todo aquele que ama sua vida perde-a, e todo aquele que perde a sua vida ganha-a” (S. João, cap. 17, v. 33). 

 

II. RELAÇÕES ENTRE A JUSTIÇA E A CARIDADE 

FORMA DO PROBLEMA 

1. Requisitório contra a caridade. Tomada em sua forma mais corrente, que é a da esmola, a caridade tem sido objeto de numerosas críticas que podemos reduzir a duas principais. Criticam-na, de uma parte, por entrevar os progressos da justiça social, quer permitindo ao Estado deixar em mãos dos particulares certos deveres que lhe incumbem para com os pobres, os doentes e os enfermos, quer favorecendo, às expensas dos verdadeiros necessitados, a imprevidência e a preguiça dos mendigos profissionais, que não raro dissimulam sua miséria e seus apertos. De outra parte, diz-se que a caridade contribui para aviltar aquele que recebe a esmola, tornando-o dependente de outrem e aconselhando-lhe atitudes humilhantes incompatíveis com a dignidade pessoal. 

2. Tentativa de redução da caridade à justiça.

a) A caridade, forma imperfeita da justiça. Para responder ao que de injusto parece haver nesse requisitório, certos moralistas pretenderam ser preciso negar positivamente a realidade e a originalidade dos deveres de caridade, e só considerar esta como uma forma imperfeita e provisória da justiça. Tal como se tem exercido no curso da história, a caridade, dizem, constantemente se transmudou em deveres de justiça, segundo o progresso das idéias morais; outrora, libertar um escravo era um ato de caridade; hoje, a escravidão está excluída pela justiça. Assim também, recentemente ainda, os abonos especiais para encargos de família eram deixados às iniciativas caridosas dos patrões; hoje, passaram a ser deveres de estrita justiça, inscritos nas leis. A caridade não é, hoje, senão uma justiça parcialmente ignorada, que aos poucos tende a realizar-se de maneira cada vez mais completa, à medida que a sociedade compreende melhor seus deveres e se esforça em substituir por sua providência, mais justa e mais clarividente, mais bem regulada e menos humilhante, os processos empíricos, cegos e caprichosos da caridade privada.[1] 

b) Discussão. Entretanto, estas idéias são muito discutíveis. Primeiramente, elas cometem o erro de só reconhecerem como forma de caridade a esmola material, quando há também as ofertas do coração, não raro mais estimáveis: estas ofertas do coração, que futura justiça as ordenará e as regulará? Doutra parte, se é verdade que deveres de caridade se hão transformado em deveres de justiça, isto implica uma retificação de certos erros de apreciação moral, porém, de modo algum a eliminação da caridade. Ao contrário, a caridade é que contribui para realizar mais justiça, por exemplo, pela amenização e pela supressão da escravidão e, depois, pela eliminação da servidão e pela melhoria das condições do trabalho. É, portanto, a caridade bem distinta da justiça. Enfim, deve-se admitir que muitas vezes há, para o Estado, o interesse e dever de substituir por sua intervenção regular certas iniciativas incontroladas e aventurosas da caridade privada, afim de realizar uma justiça social que a caridade não consegue assegurar. Mas, sem dúvida, seria uma grande ilusão imaginar que a caridade pública (tornada justiça social) não tenha nenhum dos defeitos que se censuram à livre caridade. Seu automatismo carece de discernimento e, muitas vezes, favorece os espertos em detrimento dos verdadeiros necessitados; seu caráter administrativo priva-a desse calor e dessa amizade que são o encanto e a nobreza da verdadeira caridade. Por isso pode-se crer que, de preferência a monopolizar a caridade a pretexto de justiça social, o Estado deveria, sem descurar seus deveres próprios, conceder ajuda e proteção às obras de assistência e de crédito, às casas de retiro e aos hospitais, onde o exercício da caridade conservaria as delicadas e humanas formas que constituem seu valor.

 

FUNÇÕES RECÍPROCAS DA JUSTIÇA E DA CARIDADE 

            O que acabamos de dizer no tocante à distinção entre a justiça e a caridade mostra, com evidência, que justiça e caridade têm relações estreitas e que, longe de se excluírem, elas mutuamente se sustentam uma à outra. 

            1. A caridade implica o respeito à justiça. Quem ama seu próximo começa, primeiro, por respeitar-lhe os direitos. Um patrão que se dispensasse de pagar a seus operários o justo salário, esperando fazer esmola aos mais necessitados, faltaria, a um tempo, à justiça e à caridade. 

            2. A justiça é temperada pela caridade. Há que distinguir cuidadosamente a legalidade e a equidade. A lei civil permite, por exemplo, a um rico proprietário expulsar um pobre do casebre que ele não pode pagar. Mas isto é contrário à equidade, isto é, ao direito natural. O espírito de caridade é que deverá, portanto, aqui intervir para impedir que, em nome da legalidade, se pratique uma injustiça real. Substituindo pela consideração às pessoas vivas, “em carne e osso”, a consideração aos direitos abstratos e impessoais, a caridade modera constantemente as reivindicações da justiça e, por isso mesmo, trabalha pela paz e concórdia sociais. 

            3. A justiça é a auxiliar da caridade. A justiça, com efeito, contribui para tornar racional e eficaz a prática da caridade. Como o amor de que procede, a caridade deixa-se facilmente cegar e, às vezes, resvala na fraqueza: a esmola, distribuída ao acaso, corre o risco de incentivar a preguiça; os pais hesitam em castigar as faltas dos filhos; um coração demasiado sensível distribui os perdões sem garantia suficiente, etc. Mister se torna, pois, que a justiça acompanhe constantemente o exercício da caridade, porque, se a justiça deve ser caridosa, necessário é também que a caridade seja justa

            4. A caridade é a auxiliar da justiça. Como mostrávamos acima, longe de prejudicar a justiça, como se diz com freqüência, a caridade não cessa de trabalhar, fazendo admitir e praticar os deveres de justiça desconhecidos ou violados pelos indivíduos e pela sociedade. Ela vai sempre à frente para abrir os caminhos de uma justiça mais perfeita. Sem ela, a justiça seria insuficiente e precária, e seu caráter essencialmente litigioso alimentaria entre os homens um estado de perturbação e de azedume que só pode ser dissipado pelo ofício permanente dessa amizade que não é senão outro nome da caridade. 

            Por aí se vê ser impossível imaginar que a caridade possa desaparecer em proveito da justiça. Mesmo supondo, por uma hipótese absolutamente utópica, que as exigências da justiça pudessem ser completamente satisfeitas, a caridade ainda teria um papel imenso a desempenhar aliviando as misérias morais e fazendo reinar nas relações humanas, incessantemente conturbadas pelas desigualdades naturais ou sociais, esse espírito de doçura e de amizade fraterna, sem o qual não há verdadeira sociedade humana. 

[1] Cf. P. GAULTIER. O Ideal Moderno. Paris, 1908.

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