Errol E. Harris

Religião e Ciência

Errol E. Harris (1908-2009)

Filósofo e pesquisador sul-africano

Estudioso de lógica, metafísica e epistemologia

Professor de Filosofia Moral e Intelectual na Northwestern University

Investigador honorário no Centro de Filosofia e História da Ciência, na Boston University

Extraído e adaptado de:

Cosmos e Theos, introdução, por Errol E. Harris

RELIGIÃO E CIÊNCIA

Hegel afirma repetidamente que a diferença entre religião e filosofia é apenas de forma e que, em termos de conteúdo, elas são idênticas; e, para ele, a filosofia é Wissenschaft, ou ciência. O conteúdo idêntico é, evidentemente, a verdade, que, como nos diz na sua Fenomenologia, é o todo. Hoje em dia a sua asserção adquiriu novo significado, a partir do momento em que os físicos descobriram que o universo é um todo uno e indivisível – uma descoberta com enormes implicações (...).

Alguns positivistas lógicos modernos (como A. J. Ayer, na sua juventude) negaram a existência da Verdade, alegando que, embora haja proposições verdadeiras, não existe nada que corresponda a um conceito geral, com V maiúsculo. Aparentemente, esqueceram-se de contemplar a possibilidade de uma totalidade de fato, aquilo a que chamamos realidade, por referência à qual são verdadeiras todas as proposições verdadeiras. É sem dúvida inquestionável que o objetivo da ciência é descobrir a natureza desta realidade, pois, se assim não fosse, os nossos mais eminentes cientistas teriam gasto o seu tempo noutro tipo de procura. A sugestão, feita por alguns céticos, de que aquilo que a ciência faz é organizar a experiência em função de uma conveniência prática não resiste a um exame mais profundo; pois, se não tivéssemos uma noção da natureza da realidade, não poderíamos ter uma ideia daquilo que seria conveniente. Há que aceitar, por conseguinte, que a verdade é o objeto da investigação científica.

O crente considera invariavelmente que a crença religiosa é a verdade: de fato, que é a verdade absoluta. O próprio significado de crença é a aceitação como verdade daquilo em que se acredita. A existência de um conflito entre ciência e religião pareceria, então, impossível, como defendia São Tomás. A condição de compatibilidade seria, contudo, que tanto a ciência como a religião fossem internamente autoconsistentes, pois, de contrário, uma delas, ou ambas, seriam falsas. Poderia existir também alguma discrepância entre ciência e religião se a religião fosse de fato a verdade absoluta e a ciência apenas relativa ou parcialmente verdadeira. De fato, nenhuma delas, enquanto entendidas por mentes finitas, é absoluta, embora ambas devam remeter, se quiserem ter significado, para um critério absoluto pelo qual ambas devem ser julgadas. Este absoluto deverá ser o mesmo para ambas, se nenhuma delas quiser passar por ilusória. Assim, o conflito entre as suas, a ocorrer, só poderá ser consequência do erro, quer numa, quer na outra.

As nossas primeiras investigações mostraram que as formas específicas do universal concreto (do todo sistemático) se sobrepõem1. Dado que a ciência e a filosofia são espécies de conhecimento, não podem, por isso, divorciar-se uma da outra; são simplesmente tipos de conhecimento característicos de diferentes graus de reflexão. O mesmo se aplica à filosofia e à religião, que partilham um conteúdo idêntico (a verdade), embora difiram na forma, uma diferença a que voltaremos agora.

Numa discussão anterior sobre a relação entre religião e ciência, argumentei fortemente a favor desta sobreposição entre as duas, negando a possibilidade de defender com sucesso qualquer critério de demarcação entre elas. A ciência, defendi eu, nunca se libertou totalmente da fé (na inteligibilidade última do seu objeto, por exemplo), enquanto a religião nunca pôde, sem cair na superstição, dispensar o juízo e a crítica da razão. Outros critérios de distinção sugeridos falharam de modo semelhante: por exemplo, o de que a ciência lida com as partes e os pormenores da realidade, ao passo que a religião se preocupa com o todo – esta separação, argumentei, é falsa. Por outro lado, os cientistas estão frequentemente sujeitos a momentos de inspiração inexplicáveis e inescrutáveis (como prova o grande teorema de Fermat), exatamente como a mística. Ao mesmo tempo, cada disciplina faz aos seus adeptos exigências totais e abarcantes, tanto teóricas como práticas, que parece fazerem delas rivais inconciliáveis no que toca a fidelidades, a não ser que se consiga mostrar, como afirmei ser capaz de fazer, que na realidade elas não são, de modo nenhum distintas. Fiz isso afirmando que cada uma delas, quer a ciência, quer a religião, constitui uma visão total da vida, e que, ao longo da história, as duas se mostraram coincidentes, tendo as crenças religiosas sido sempre reinterpretadas e modificadas à luz do pensamento científico e filosófico, de tal modo que a aparência de conflito entre elas só foi criada pela persistência de doutrinas ultrapassadas e obsoletas, nas quais deixara de ser justificável acreditar2.

(...) O procedimento adequado é reconhecer que tanto a ciência como a religião são características, ou aspectos, da fase dialética do universal concreto na qual ele se torna consciente de si próprio na mente humana, a fase a que chamei (na sequência de Teilhard de Chardin) noosfera. (...) Na autoparticularização do universal, as espécies do conceito, o conhecimento ou a verdade, se sobrepõem, embora não devam ser totalmente identificadas; e também que elas constituem uma escala com diversos níveis na qual o nível mais elevado nega, e em certa medida recapitula, as fases anteriores. Existe, de fato, continuidade entre ciência e filosofia, e existe também uma sobreposição entre ambas, vistas em conjunto, e a religião.

O fator idêntico em todas estas formas de experiência é que todas elas têm como meta e objeto a verdade. Este é o conteúdo idêntico de que falava Hegel. A diferença entre elas, afirmava Hegel, era meramente formal. (...)

Como afirmei anteriormente, as últimas fases da dialética do universal concreto recapitulam, num certo sentido, as fases anteriores. Na experiência ingênua, ao nível do senso comum, tendemos a tomar como certo aquilo que nos é apresentado sem questões; mas quando, estimulados por contradições e conflitos nos nossos juízos, investigamos mais de perto, procuramos fundamentos, certezas e provas, embarcando assim na ciência. Entre a aceitação perceptual instintiva daquilo que os nossos sentidos nos oferecem e a procura inquiridora do cientista, existe um estágio intermediário, quando o objeto sensível não é claro e procuramos mais provas perceptuais para obter aquilo a que se chama segurança perceptiva3.

Ao nível intelectual superior, as formas de expressão da verdade são a arte e a filosofia, e a relação entre elas corresponde à relação que existe entre a aceitação perceptiva da atitude natural e a posição mais crítica da ciência. Mas também aqui existe uma fase intermediária, de transição, ocupada pela religião. Em todos os casos o objeto é a mesma verdade, embora a forma como ela é apresentada varie.

A arte apresenta sua visão da verdade através de formas sensíveis, que se destinam a ser contempladas, sem declarar assertivamente a sua verdade. A asserção é feita, mas apenas implicitamente. Por contraste, a religião apresenta a imagem como sendo a própria verdade, exige a sua aceitação e prescreve a crença como um dever de piedade. O meio através do qual a verdade é apresentada em ambos os casos é o mesmo: a imaginação.

No princípio Deus criou o céu e a terra. E a terra não tinha forma e estava vazia; e as trevas cobriam a face do abismo. E o espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas. (Gênesis 1:1-2)

Isto é pura poesia, mas é apresentado como um fato, embora nos seja posteriormente dito que só no segundo dia Deus criou o firmamento, a que chamou Céu, e só no terceiro dia tornou visível a terra, ou porção seca. É devido a estas inconsistências que o chamado racionalista se opõe à aceitação da verdade bíblica, mas a sua objeção erra, simplesmente, o alvo. Confunde linguagem figurativa e afirmação literal, não compreendendo a diferença entre forma e conteúdo. Provavelmente não trataria a poesia deste modo, mas não compreende que a religião expressa as suas verdades, na sua maioria, através de imagens poéticas. Afirma a sua verdade explicitamente, mas não distingue a verdade da imagem. Representa o seu objeto pictoricamente; não o expõe de uma forma conceitual.

Contudo, criticar as afirmações bíblicas por causa da sua inconsistência é como levantar objeções à referência de Milton à “manhã que descerra as pálpebras” (em Lycidas) argumentando que a manhã não é uma cara e não tem olhos. Tomar uma metáfora à letra constitui um erro de apreciação; não impugna a sua verdade. Há que distinguir entre o pensamento e a linguagem que o exprime, pois, contrariamente ao que alguns filósofos procuraram defender, não são a mesma coisa. Collingwood expôs a questão de maneira bastante eficaz: “Qualquer religião”, escreve ele,

corresponde ao pensamento que se desenvolve à superfície da linguagem, mas ainda sem consciência de que a linguagem e o pensamento são coisas diferentes. A diferença entre aquilo que dizemos e aquilo queremos dizer, entre um símbolo ou uma palavra e o seu significado, é a única diferença à luz da qual é possível compreender a religião; mas é uma diferença que se oculta à própria religião. Está implícita na religião, e só se torna explícita quando passamos da religião para a ciência. Na ciência, a linguagem é transparente e atravessamo-la, pomo-la de lado, ao atingirmos o pensamento que ela transmite; na religião, a linguagem é opaca, está fundida com o seu próprio significado numa unidade indiferenciada que não pode ser separada em dois níveis. Na religião, perder o símbolo é perder também o significado, enquanto na ciência apenas temos que procurar outro símbolo que sirva o nosso propósito de forma idêntica4.

A religião fala a linguagem dos símbolos e das imagens. Oferece-nos o seu evangelho sob a forma de parábolas e alegorias, mas isso não faz com que a sua mensagem deixe de corresponder à própria verdade, pelo contrário. Uma grande parte da Bíblia está, evidentemente, escrita sob a forma narrativa histórica, mas, embora lhe seja por vezes atribuída a designação de Crônicas, o seu significado não consiste num puro e simples relato de fatos históricos. A História é, em sentido estrito, um relato dos feitos de seres humanos, mas aquilo que a Bíblia narra é a história dos atos de Deus e da sua providência. A descrição da destruição de Senaqueribe, feita no Segundo livro dos Reis, não é apenas história. É o relato da libertação milagrosa do povo eleito de Deus dos seus inimigos pagãos.

A diferença entre religião e ciência, a diferença de forma, é que a religião apresenta as suas verdades em imagens e símbolos, enquanto a linguagem da ciência deve ser tomada à letra e compreendida de forma precisa. Daqui decorre, pois, que é facilmente possível interpretar a linguagem da religião de forma que a verdade que ela veicula seja consonante com aquilo que a ciência descobre; e pode bem acontecer que as descobertas da ciência sejam capazes de confirmar e de apoiar aquilo que a doutrina religiosa divulga. Não há necessidade de haver um conflito entre elas. E, se ele existe [na forma], pelo contrário, elas convergem para um fim idêntico (...). 

—  ERROL E. HARRIS

“Religião e ciência”.

Cosmos e Theos.

Notas:

1 Ver o meu Cosmos e Anthropos, cap. 2.

2 Cf. o meu Revelação através da razão, cap. 1.

3 Cf. H. H. Price, Percepção, caps. 6 e 7.

4 R. G. Collingwood, Speculum Mentis ou o mapa do conhecimento, p. 125.