Aristóteles

A definição geral de alma

Aristóteles (384-322 a.C.)

Extraído de:

Sobre a Alma, livro II, cap. 1

De onde se recorre à doutrina exposta na Metafísica para definir a alma como entidade – forma, essência e definição – do vivente

          Foram explicadas já as doutrinas transmitidas por nossos predecessores em torno da alma. Voltemos, pois, de novo desde o princípio e intentemos definir o que é a alma e qual poderia ser sua definição mais geral.

             Costumamos dizer que um dos gêneros dos entes é a entidade, e que esta pode ser entendida, em primeiro lugar, como matéria – aquilo que por si não é algo determinado –, em segundo lugar, como estrutura e forma em virtude da qual se pode dizer da matéria que já é algo determinado e, em terceiro lugar, como o composto de uma e outra. Ademais, a matéria é potência, enquanto a forma é ato1. Esta, por sua vez, pode ser entendida de duas maneiras, segundo seja como a ciência ou como o ato de teorizar.

        Por outra parte e ao que parece, entidades são, de maneira primordial, os corpos e, entre eles, os corpos naturais: estes constituem, com efeito, os princípios de todos os demais. Ora, entre os corpos naturais, há os que têm vida e há os que não a têm; e costumamos chamar vida à autoalimentação, ao crescimento e ao envelhecimento. Donde resulta que todo corpo natural que participa da vida é entidade, mas entidade no sentido de entidade composta. E, posto que se trata de um corpo de tal tipo – a saber, que tem vida –, não é possível que o corpo seja a alma: pois o corpo não é das coisas que se dizem de um sujeito, antes, ao contrário, realiza a função de sujeito e matéria. Logo, a alma é necessariamente entidade enquanto forma específica de um corpo natural que em potência tem vida. Ora, a entidade é ato; logo, a alma é ato de tal corpo.

             Mas a palavra “ato” se entende de duas maneiras: uma, no sentido em que a ciência o é, e outra, no sentido em que o é o teorizar. É, pois, evidente que a alma o é como a ciência: assim é que, tendo alma, pode-se estar em sono ou vigília, e a vigília é análoga ao teorizar, enquanto o sono é análogo a possuir a ciência e não exercitá-la. Ora, tratando-se do mesmo sujeito, a ciência é anterior do ponto de vista da origem; logo, a alma é o ato primeiro de um corpo natural que em potência tem vida. Tal é o caso de um organismo. Também as partes das plantas são órgãos, se bem que absolutamente simples, por exemplo, a folha é envoltório do pericarpo e o pericarpo o é do fruto; as raízes, por sua vez, são análogas à boca, posto que aquelas e esta absorvem o alimento. Portanto, se cabe enunciar algo em geral acerca de toda classe de alma, haveria que dizer que é o ato primeiro de um corpo natural organizado. Daí também que não cabe perguntar se a alma e o corpo são uma única realidade, como não cabe fazer tal pergunta acerca da cera e da figura e, em geral, acerca da matéria de cada coisa e aquilo de que é matéria. Pois, se bem que as palavras “uno” e “ser” têm múltiplas acepções, o ato o é em seu sentido mais primordial.

            Fica exposto, portanto, de maneira geral o que é a alma, a saber, a entidade definitória, isto é, a essência de tal tipo de corpo. Suponhamos que um instrumento qualquer – por exemplo, um machado – fosse um corpo natural: em tal caso, o “ser machado” seria sua entidade e, portanto, sua alma, e, removida esta, já não seria um machado a não ser na palavra. À margem de nossa suposição, é realmente, no entanto, um machado: é que a alma não é essência e definição de um corpo desse tipo, e sim de um corpo natural de tal qualidade que possua em si mesmo o princípio do movimento e do repouso.

             Porém, é necessário também considerar, em relação às distintas partes do corpo, o que acabamos de dizer. Com efeito, se o olho fosse um animal, sua alma seria a visão. Esta é, desde logo, a entidade definidora do olho. O olho, por sua vez, é a matéria da visão, de maneira que, removida esta, aquele não seria em absoluto um olho a não ser na palavra, como é o caso de um olho esculpido em pedra ou pintado. Procede também aplicar à totalidade do corpo vivente o que se aplica às partes, já que na mesma relação em que se encontra a parte a respeito da parte, encontra-se também a totalidade da potência sensitiva a respeito da totalidade do corpo que possui sensibilidade como tal. Ora, o que está em potência de viver não é o corpo que jogou fora a alma, e sim aquele que a possui. A semente e o fruto, por sua vez, são tal tipo de corpo em potência. A vigília é ato da maneira em que o são o ato de cortar e a visão; a alma, pelo contrário, o é da maneira da visão e da potência do instrumento. O corpo, por sua vez, é o que está em potência. E, assim como o olho é a pupila e a visão, no outro caso – e paralelamente –, o animal é a alma e o corpo. É perfeitamente claro que a alma não é separável do corpo ou, ao menos, certas partes da mesma, se é que é por natureza divisível: com efeito, o ato de certas partes da alma pertence às partes mesmas do corpo. Nada se opõe, no entanto, a que certas partes dela sejam separáveis se não for ato de corpo algum. Ademais, não fica claro, todavia, se a alma é ato do corpo como o é o piloto do navio.

            A alma fica, pois, definida e esboçada em grandes traços desta maneira. 

 

—  ARISTÓTELES

Sobre a alma, parte 2, cap. 1.

 

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Nota:

1 Gr. Enteléquia. “Aristóteles forjou este vocábulo apoiando-se na expressão ‘o fato de possuir perfeição’. Enquanto designar isto, o termo enteléquia significa atividade ou perfeição resultante de uma atualização” (cf. FERRATER, Dicionário de Filosofia). Deve ser entendida como “Ato entitativo” (cf. JOLIVET, Tratado de Filosofia, tomo III - Metafísica). Portanto, ato, perfeiçoamento, realização, finalizador.

 

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