Régis Jolivet

Teodicéia: demonstração da existência de Deus

Régis Jolivet (1891-1966)

Professor de Filosofia

Decano da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica de Lyon

Extraído e adaptado de:

Tratado de Filosofia; vol. III: Metafísica;

e Curso de Filosofia, de Régis Jolivet.

IV. O PERFEITO SUBSISTENTE

A quarta via se apresenta à primeira vista sob uma forma que parece colocada à parte das outras, porque parece afastar o ponto de vista da causalidade eficiente para substitui-lo pelo da causalidade exemplar, ou, pelo menos, parece não invocar a eficiência senão a título complementar. Existe aí uma série de dificuldades que devemos examinar. A fim de entender com toda a precisão necessária todo o sentido da quarta via.

 

A. ELEMENTOS DA DEMONSTRAÇÃO

1. Os graus de perfeição. — Constatamos nos seres a existência de perfeições realizadas em graus diversos. Tal é o fato sobre o qual se baseia o argumento. Para lhe dar todo seu sentido, é preciso compreender que as perfeições tratadas aqui são aquelas que são suscetíveis de graus e podem existir sob forma absoluta, e que, por conseguinte, não implicam ne­nhuma imperfeição em sua razão formal. É necessário, por­tanto, excluir as perfeições genéricas e específicas, assim como as perfeições de ordem material, porque as primeiras não podem comportar graus (um homem não é mais animal nem mais ou menos homem do que um outro) e as outras, que implicam a imperfeição essencial, não podem existir num es­tado absoluto (não pode haver nem quantidade perfeita ou absoluta, nem matéria perfeita, nem número que seja o maior de todos, etc.).

As perfeições consideradas não são, portanto, senão per­feições simples, isto é, as propriedades transcendentais (ser, unidade, verdade, bondade) e em geral todas as perfeições (como sabedoria, inteligência, poder, etc.) que, ultrapassando os gêneros e as espécies, são suscetíveis de existir analogicamente, segundo o mais e o menos, e de ser realizadas em estado absoluto, sem nenhum limite.

 

B. O ARGUMENTO

         1. A prova pelos graus dos seres. Santo Tomás enuncia esta prova da seguinte maneira: 

Constatamos que alguns seres são mais ou menos verdadeiros, mais ou menos bons, etc. Ora, diz-se o mais e o menos de coisas diversas se­gundo a sua aproximação diferente de um máximo. Existe, pois, alguma coisa que é o mais verdadeiro, o melhor e, por conseguinte, o mais ser. Ora, o que é o máximo num gênero é a causa de tudo que pertence a este gênero. Existe, portanto, um ser que é para todos os outros causa de ser, de bondade e de toda perfeição, e este ser é Deus. (Suma Teológica, I.ª, q, 2, art. 3). 

2. Natureza da prova. Com efeito, há duas partes distintas no texto da Suma Teológica. A primeira chega a esta con­clusão: “existe, portanto, um ser que é o melhor, o mais verdadeiro e, por conseguinte, o mais ser”. Esta argumentação se baseia sim­plesmente sobre o princípio de que, em todo lugar onde há graus de perfeição, deve haver também um máximo desta perfeição. (...) — A segunda parte se inicia por estas palavras: “Ora, o que é o máximo num gênero é a causa de tudo que pertence a este gênero”, e conclui a existência de uma causa de todas as perfeições que se acham nas coisas. [Esta parte estabelece] que o ser perfeito cujo con­ceito é imposto pela argumentação precedente deve existir a título de causa, eficiente e exemplar ao mesmo tempo, de todos os seres que possuem em graus diversos a perfeição que ele possui por essência. Com efeito, os seres que possuem os graus diferentes de perfeição não têm em si mesmos a razão última desta perfeição, e esta não se pode explicar senão por um ser que a possua de maneira absoluta e por essência e que a comunique aos outros a título de participação finita. 

3. Princípios do argumento. — É a partir destas perfeições simples que se estabelece o argumento dos graus. Ele conclui da existência desses graus à existência de um ser absolu­tamente simples, absolutamente verdadeiro, absolutamente bom, absolutamente sábio e poderoso, etc., que é, por conseguinte, o próprio Ser, a própria Verdade, a própria Bondade, a Sabe­doria e o Poder mesmo, isto é, a Perfeição Suprema. — A passagem se efetua por meio dos princípios seguintes: “quando uma perfeição se encontra em graus diversos em diferentes seres, nenhum destes que a possuem num grau imperfeito é suficiente para explicá-la; é preciso que ela tenha sua causa num ser superior que a possua em estado absoluto e infinito, sem nenhum limite”; — “as perfeições realizadas no estado absoluto e infinito supõem-se mutuamente num ser supremo infinitamente perfeito”. 

a) A perfeição suprema. O primeiro princípio estabe­lece a existência de uma Perfeição suprema e infinita em cada ordem de perfeição, realizada em graus diversos ou possuída por seres distintos.

Do primeiro ponto de vista, em que consideramos uma per­feição realizada, segundo certo grau, num ser qualquer, dize­mos que este ser não pode possuir esta perfeição por si mesmo, isto é, por sua própria essência, porque, se ele a possuísse por essência, ele a teria plena e absolutamente, e não segundo um grau limitado. Ele não é, portanto, esta perfeição e deve, por isto mesmo, obtê-la de um outro, a propósito do qual a mesma pergunta se imporá. Como não se pode ir até o infinito, seria sempre necessário chegar a um ser que possua, por si mesmo, em toda plenitude, a perfeição considerada. O primeiro, com efeito, em todo gênero, é a causa de todos os outros.

Do segundo ponto de vista, consideramos uma mesma per­feição possuída por seres distintos. Neste caso, é preciso dizer que estes seres não podem ter esta perfeição por eles mesmos, isto é, não podem todos possui-la como uma coisa própria, constitutiva de sua essência, senão não haveria mais distinção, eles se identificariam nesta própria perfeição que os definiria. Por exemplo, se Pedro, este passarinho e esta flor estão vivos, isto não é por eles serem Pedro, este passarinho ou esta flor, pois, como tais, são diferentes, mas apenas enquanto participam de uma perfeição, a saber, a vida, que não pertence essencial e absolutamente a nenhum deles. É assim que toda perfeição possuída por seres múltiplos não se pode explicar senão como sendo uma participação finita a uma perfeição suprema, realizada num ser que a possui de uma maneira absoluta e por si mesmo, e que é sua causa primeira universal em todos os seres que participam de sua própria perfeição. 

              Ao princípio geral de que “todo ato puro é perfeito é perfeito e ilimitado em sua ordem” é preciso referir a argumentação que estabelece que um ser, que possui em estado imperfeito um caráter do qual o conceito não implica a imperfeição, não pode possuir este caráter por si mesmo, mas somente por um outro que o possua por si mesmo. Em outras palavras, só o perfeito dá conta do imperfeito. — Sabemos, com efeito, que aquilo que se possui por si mesmo, ou por essência, só se pode possui-lo plenamente (cf. Suma Contra os Gentios, II, C, XV, n. 2), porque todo ato puro é perfeito em sua ordem. Se, portanto, um caráter, que por si mesmo não encerra nenhuma imperfeição, encontra-se num ser em estado imperfeito, é porque está mesclado com alguma potência. Ora, qual pode ser a razão desta composição? Esta razão é necessariamente extrínseca ao ato ou à perfeição, isto é, este ato imperfeito e limitado é causado. É preciso, pois, para dar uma razão do imperfeito, isto é, do composto, chegar a um ser simples, ato puro, isto é, perfeito, causa de todo o resto, seja em sua ordem, seja na ordem total do ser. “O que é máximo é a causa de todos os outros” (cf. Suma Teológica, I.ª, q. 44, art. 1).

  

b) O perfeito subsistente. O princípio precedente, sob seus dois aspectos, nos leva a colocar, em todas as ordens de perfeição, uma perfeição suprema. Mas nós não chegamos, assim, a uma multiplicidade de perfeições infinitas, porque toda perfeição infinita implica toda a perfeição. É o que mos­trava Platão quando reduzia os tipos eternos das coisas à unidade suprema do Bem, como ao princípio de tudo o que há de belo e de bom no universo (República, VI, 109 b).

Desta dialética, é preciso guardar a afirmação da unidade necessária do Princípio primeiro, mas definir este Princípio como Ser infinito. Com efeito, todas as perfeições transcendentais não exprimem senão aspectos do ser, e se implicam mutuamente quando são realizadas em estado absoluto, em que são subsistentes. Elas não são, pois, senão outros tantos as­pectos do Ser infinitamente perfeito que as contém a todas na simplicidade absoluta de sua essência infinita, e que, como tal, é razão e causa universal das perfeições múltiplas e diversas, realizadas nos modos finitos do ser.

O ser infinito realiza, com efeito, no que elas têm de formal, de uma maneira eminente e absolutamente transcendente a todas suas realizações finitas, todas as perfeições cujo conceito não implica nenhuma limitação essencial. — Quanto às outras perfeições, o Ser infinito, que também é sua causa primeira, não pode possui-las senão de uma maneira virtual, porque elas admitem uma imperfeição intrínseca. Nem a quanti­dade, nem a matéria, nem nada do que comporta, por natureza, quantidade e matéria pode se encontrar em Deus. Mas Deus contém, enquanto causa universal, toda a perfeição positiva que possuem as realidades afetadas de uma finitude essencial. 

4. Conclusão do argumento. O Ser infinitamente per­feito ao qual conduz o argumento dos graus é, portanto, a causa exemplar da qual procedem, sob forma de participações finitas, todas as perfeições dos seres da criação; — a causa eficiente de todas estas perfeições, isto é, porque as perfeições não são senão aspectos do ser, a causa primeira do ser uni­versal; — e enfim, a causa final, para a qual tendem todos os seres, como para o princípio mesmo de tudo o que eles têm de perfeição e de ser. 

 

V. O FIM UNIVERSAL