Léon Denis

Léon Denis (1846-1927)

Extraído e adaptado de:

Depois da Morte, de Léon Denis. (Tradução literal, direto do francês.)

O Universo e Deus 

Mais alto que os problemas da vida e do destino, ergue-se a questão de Deus.

Se nós estudamos as leis da natureza, se perseguimos a beleza ideal em que todas as artes se inspiram, por toda parte e sempre, acima e além de tudo, encontramos a ideia de um Ser superior, necessário e perfeito, fonte eterna do bem, do belo e do verdadeiro, em quem se identificam a lei, a justiça, a suprema razão.

O mundo, físico e moral, é governado por leis, e essas leis, estabelecidas segundo um plano, denotam uma inteligência profunda das coisas que elas regem. Elas não procedem de uma causa cega: o caos, o acaso não poderiam produzir a ordem e a harmonia. Elas não emanam dos homens: seres passageiros, limitados no tempo e no es­paço, não poderiam criar leis permanentes e universais. Para explicá-las, logicamente, é preciso remontar até o Ser gerador de todas as coisas. Não se poderia conceber a inteligência sem personificá-la em um ser, mas esse ser não vem se juntar à cadeia dos seres. Ele é o Pai de todos, a fonte mesma da vida.

A personalidade não deve ser entendida aqui no sentido de um ser possuindo uma forma, mas antes como o conjunto das faculdades constituindo um todo conscien­te. A personalidade, na mais alta acepção dessa palavra, é a consciência, e é nesse sentido que Deus é uma pessoa, ou antes a personalidade absoluta, e não um ser tendo uma forma e limites. Deus é infinito e não pode ser individuali­zado, isto é, separado do mundo, nem subsistir à parte.

Quanto a se desinteressar do estudo da causa primeira como inútil e incognoscível, seguindo a expressão dos positivistas, nós nos perguntamos se é realmente possível a um espírito sério se comprazer na ignorância das leis que regulam as condições de sua existência. A pesquisa de Deus se impõe. Ela não é outra que o estudo da grande Alma, do princípio de vida que anima o universo e se reflete em cada um de nós. Tudo se torna secundário quando se trata do princípio das coisas. A ideia de Deus é inseparável da ideia de lei e, sobretudo, de lei moral, e nenhuma sociedade pode viver, nem se desenvolver sem o conhecimento da lei moral. A crença em um ideal superior de justiça fortifica a consciência e sustenta o homem em suas provas. Ela é a consolação, a esperança daqueles que sofrem, o supremo refúgio dos aflitos, dos abandonados. Como uma aurora, ela esclarece com suas brandas claridades a alma dos infelizes.

Sem dúvida, não se pode demonstrar a existência de Deus por provas diretas e sensíveis; Deus não cai sob os sentidos. A Divindade se furtou sob um véu misterioso, talvez para nos constranger a procurá-la, o que é bem o exercício mais nobre e mais fecundo de nossa faculdade de pensar, e também para nos deixar o mérito de descobri-la. Mas está em nós uma força, um instinto seguro, que nos leva para ela e nos afirma sua existência com mais autoridade do que todas as demonstrações e todas as análises.

Em todos os tempos, sob todos os climas, ― e está aí a razão de ser de todas as religiões, ― o espírito humano sentiu a necessidade de se elevar acima de todas as coisas móveis, perecíveis, que constituem a vida material e não podem lhe dar uma completa satisfação, para se prender ao que é fixo, permanente, imutável no universo, a alguma coisa de absoluto e de perfeito, em quem ele identifica todas as potências intelectuais e morais, e que seja seu ponto de apoio na marcha para adiante. Ele encontrou tudo isso em Deus, e nada fora dele pode nos proporcionar essa segurança, essa certeza, essa confiança no porvir, sem as quais nós flutuamos em todos os ventos da dúvida e da paixão.

Objetar-se-nos-á talvez o funesto uso que as religiões fizeram da ideia de Deus. Mas que importam as formas variadas que os homens emprestaram à Divindade? Não são mais, para nós, que deuses quiméricos, criados pela razão débil na infância das sociedades, essas formas poéticas, graciosas ou terríveis, sendo apropriadas às inteligências que as conceberam. O pensamento humano, mais maduro, distanciou-se dessas concepções envelhe­cidas; esqueceu esses fantasmas e os abusos cometidos em seu nome, para se transportar com um ímpeto possante para a Razão eterna, para Deus, Alma do mundo, foco uni­versal de vida e de amor, em quem nos sentimos viver como o pássaro vive no ar, como o peixe vive no Oceano, e por quem nós estamos ligados a tudo o que é, foi e será.

A ideia que as religiões fizeram de Deus se apoiava sobre uma revelação pretendida sobrenatural. Nós admitimos ainda hoje uma revelação das leis superiores, mas esta é racional e progressiva; ela se faz ao nosso pensamento pela lógica das coisas e pelo espetáculo do mundo. Ela está escrita em dois livros incessantemente abertos sob nossos olhos: o livro do universo, onde as obras divinas aparecem em caracteres grandiosos; o livro da consciência, no qual estão gravados os preceitos da moral. As indicações dos Espíritos, recolhidas sobre todos os pontos do globo por procedimentos simples e naturais, não fizeram senão confirmá-la. É por meio desse duplo ensinamento que a razão humana se comunica com a razão divina no seio da natureza universal, que a compreende, que dela degusta as harmonias e as belezas.

 

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Na hora em que o silêncio e a noite se estendem sobre a Terra, quando tudo repousa nas moradas humanas, se nós dirigimos nossos olhares para o infinito dos céus, vê-lo-emos semeado de fogos inumeráveis. Astros radiosos, sóis deslumbrantes, seguidos de seus cortejos de planetas, evoluem por milhares nas profundezas. Até nas regiões mais recuadas, grupos estelares se desdobram como faixas luminosas. Em vão o telescópio sonda os céus, em nenhuma parte ele encontra limites para o universo; por toda parte os mun­dos sucedem aos mundos, os sóis aos sóis; por toda parte legiões de astros se multiplicam a ponto de se confundir em uma brilhante poeira nos abismos sem fundo do espaço.

Que fala humana poderia vos descrever, mara­vilhosos diamantes do escrínio celeste? Sírius, vinte vezes maior que nosso Sol, ele mesmo igual a mais de um milhão de globos terrestres reunidos; Aldebaran, Vega, Prócion, sóis rosas, azuis, escarlates, astros de opala e de safira, que despejais na extensão vossos raios multicores, raios que, apesar de uma rapidez de setenta mil léguas por segundo, não chegam a nós senão depois de centenas e de milhares de anos! E vós, nebulosas longínquas, que dais à luz sóis, uni­versos em formação, trêmulas estrelas dificilmente perceptíveis, que sois focos gigantescos de calor, de luz, de eletricidade e de vida, mundos cintilantes, esferas imensas! E vós, povos inumeráveis, raças, humanidades siderais que os habitais! Nossa fraca voz se ensaia em vão para proclamar vosso esplendor; impotente, ela se cala, enquanto que nosso olhar deslumbrado contempla o desfile dos astros.

E quando esse olhar abandona os vertiginosos espaços para observar os mundos mais vizinhos, as esferas, filhas do Sol, que gravitam como nós em torno do foco comum, o que ele observa em sua superfície? Continentes e mares, montes e planícies, espessas nuvens expulsas pelos ventos, neves e bancos de gelo acumulados em torno dos pólos. Nós aprendemos que esses mundos possuem o ar, a água, o calor, a luz, estações, climas, dias, noites, numa palavra, todas as condições da vida terrestre, o que nos permite ver neles a estadia de outras famílias humanas, acreditar, com a ciência, que eles são habitados, já o foram ou o serão um dia. Tudo isso, astros flamejantes, chefes de sistemas, planetas secundários, satélites, cometas vagabundos, tudo isso, suspenso no vazio, se agita, se distancia, se aproxima, percorre órbitas determinadas, levado por velocidades assustadoras através das regiões sem fim da imensidade. Por toda parte o movimento, a atividade, a vida se manifestam no espetáculo do universo, povoado de mundos inumeráveis, rolando sem repouso na profundeza dos céus.

Uma lei regula essa circulação formidável, a lei univer­sal de gravitação. Só ela sustenta, faz mover os corpos celestes, dirige em torno dos sóis luminosos os planetas obedientes. Essa lei rege tudo na natureza, desde o átomo até o astro. A mesma força que, sob o nome de atração, re­tém os mundos em suas órbitas, sob o de coesão, agrupa as moléculas e preside à formação dos corpos químicos.

Se, depois desse olhar rápido lançado sobre os céus, nós comparamos a Terra que habitamos com os poderosos sóis que se balançam no éter, perto deles, ela nos pareceria apenas como um grão de areia, como um átomo flutuando no infinito. A Terra é um dos menores astros do céu. E, entretanto, que harmonia em sua forma, que variedade em seu adorno! Vede seus continentes recortados, suas penínsulas desfiadas e as guirlandas de ilhas que os rodeiam; vede seus mares im­ponentes, seus lagos, suas florestas, seus vegetais, desde o cedro que se ergue no flanco dos montes até a humilde flor semi-escondida na verdura; enumerai os seres vivos que a povo­am; pássaros, insetos, plantas, e reconhecereis que cada uma dessas coisas é uma obra admirável, uma maravilha de arte e de precisão.

E o corpo humano, não é ele um vivo laboratório, um instrumento cujo mecanismo toca à perfeição? Estudemos nele a circulação do sangue, esse conjunto de válvulas e pistões semelhantes às de uma máquina a vapor. Examine­mos a estrutura do olho, esse aparelho tão complicado que ultrapassa tudo o que a indústria do homem pode sonhar; a construção do ouvido, tão admiravelmente disposto para re­colher as ondas sonoras; o cérebro, cujas circunvoluções internas se assemelham ao desabrochar de uma flor. Consideremos tudo isso; depois, deixando o mundo visível, desçamos mais abaixo na escala dos seres, penetremos nesses domínios que o microscópio nos revela; observemos esse formigamento de espécies e de raças que confunde o pensamento. Cada gota de água, cada grão de poeira é um mundo, e os infinitamente pequenos que o povoam são governados por leis tão precisas quanto os gigantes do espaço. Tudo é pleno de seres, de embriões, de germes. Milhões de infusórios se agitam nas gotas de nosso sangue, nas células dos corpos organizados. A asa de uma mosca, o menor átomo de matéria, são povoa­dos de legiões de parasitas. E todos esses animálculos são providos de aparelhos de movimento, de sistemas nervosos, de órgãos de sensibilidade que fazem deles seres completos, armados para a luta e as necessidades da existência. Até no seio do Oceano, nas profundezas de oito mil metros, vivem seres frágeis, delicados, fosforescentes, que fabricam a luz e têm olhos para vê-la.

Assim, em todos os meios, uma fecundidade sem limites preside à formação dos seres. A natureza está em um parto perpétuo. Da mesma forma que a espiga está em germe no grão, o carvalho na glande e a rosa em seu botão, assim gêneses de mundo se elaboram na profundeza dos céus estrelados. Por toda parte a vida engendra a vida. De escalões em escalões, de espécies em espécies, por um encadeamento contínuo, ela se eleva dos organismos mais simples, mais rudi­mentares, até o ser pensante e consciente, numa palavra, até o homem.

Uma poderosa unidade rege o mundo. Uma só substância, o éter ou fluido universal, constitui em suas trans­formações infinitas a inumerável variedade dos corpos. Esse elemento vibra sob a ação das forças cósmicas. Segundo a rapidez e o número de suas vibrações, ele produz o calor, a luz, a eletricidade ou o fluido magnético. Que essas vibrações se condensem, e logo os corpos aparecem.

E todas essas formas se ligam, todas essas forças se equilibram, se casam em perpétuas trocas, em uma estreita solidariedade. Do mineral à planta, da planta ao animal e ao homem, do homem aos seres superiores, o afinamento da matéria, a ascensão da força e do pensamento se produzem num ritmo harmônico. Uma lei soberana regula num plano uniforme as manifestações da vida, enquanto que um laço invisível vincula todos os universos e todas as almas.

Do trabalho dos seres e das coisas, uma aspiração se desprende, a aspiração para o infinito, para o perfeito. Todos os efeitos, divergentes em aparência, convergem, na realidade, para um mesmo centro, todos os fins se coordenam, formam um conjunto, evoluem para um mesmo objetivo: Deus! Deus, centro de toda atividade, fim último de todo pensa­mento e de todo amor.

O estudo da natureza nos mostra em todos os luga­res a ação de uma vontade escondida. Por toda parte a matéria obedece a uma força que a domina, a organiza e a dirige. Todas as forças cósmicas se reduzem ao movimento, e o movimento é o Ser, a Vida. O materialismo explica a for­mação do mundo pela dança cega e a aproximação fortuita dos átomos. Mas já se viu o lance ao acaso das letras do alfabeto produzir um poema? E que poema o da vida universal! Já se viu uma mistura de materiais produzir por si mesma um edifício de proporções imponentes ou uma máquina com engrenagens numerosas e complicadas? Entregue a si mesma, a matéria não pode nada. Inconscientes e cegos, os átomos não poderiam se dirigir para um objetivo. A harmonia do mundo não se explica senão pela intervenção de uma vontade. É pela ação das forças sobre a matéria, é pela existência de leis sábias e profundas que essa vontade se manifesta na ordem do universo.

Objeta-se frequentemente que nem tudo é harmôni­co na natureza. Se ela produz maravilhas, diz-se, ela dá à luz também monstros. O mal por toda parte ladeia o bem. Se a lenta evolução das coisas parece preparar o mundo para se tornar o teatro da vida, é preciso não perder de vista o desperdício das existências e a luta ardente dos seres. É preciso não esquecer que tremores de terra, erupções de vulcões desolam por vezes nosso planeta e destroem em alguns instantes os trabalhos de várias gerações.

Sim, sem dúvida, há acidentes na obra da natureza, mas esses acidentes não excluem a ideia de ordem, de finalidade; ao contrário, eles vêm em apoio de nossa tese, pois poderíamos nos perguntar por que tudo não é acidente.

A apropriação das causas aos efeitos, dos meios ao objetivo, a dos órgãos entre si, sua adaptação aos meios, às condições da vida, são manifestas. A indústria da natureza, análoga em muitos pontos e superior à do homem, prova a existência de um plano, e a operação dos elementos que concorrem para sua realização denota uma causa oculta, infinitamente sábia e poderosa.

Quanto à objeção dos monstros, ela provém de um defeito de observação. Os monstros não são senão germes desviados. Se um homem caindo quebra a perna, por isso se fará remontar a responsabilidade à natureza e a Deus? Da mesma forma, em consequência de acidentes, de desordens sobrevindas durante a gestação, os germes podem sofrer desvios no seio da mãe. Nós estamos habituados a datar a vida do nascimento, da aparição do ser à luz, mas a vida tem seu ponto de partida muito mais longe.

O argumento tirado da existência dos flagelos tem por origem uma falsa interpretação do objetivo da vida. Esta não deve somente nos proporcionar agrados: é útil, é necessário que ela nos apresente também dificuldades. Somos todos nascidos para morrer, e nos espantamos de que certos homens morram por acidente! Seres passageiros neste mundo, do qual nada levaremos para o além, lamentamo-nos pela perda de bens que se perderiam por si mesmos em virtude das leis naturais! Esses acontecimentos assustadores, essas catástrofes, esses flagelos trazem neles um ensinamento. Eles nos recordam de que não temos somente a esperar da natureza coisas agradáveis, mas, sobretudo, coisas propícias a nossa educação e a nosso adiantamento; de que não estamos aqui embaixo para gozar e adormecer na quietude, mas para lutar, trabalhar, combater. Eles nos dizem que o homem não é feito unicamente para a Terra, que deve olhar mais alto, não se prender às coisas materiais senão numa justa medida e pensar que seu ser não é destruído pela morte.

A doutrina da evolução não exclui a das causas primei­ras e das causas finais. A mais alta ideia que se possa fazer de um ordenador é supô-lo formando um mundo capaz de se desenvolver por suas próprias forças, e não por uma intervenção incessante e contínuos milagres.

A ciência, à medida que avança no conhecimento da natureza, pôde fazer recuar Deus, mas Deus engrandeceu em recuando. O Ser eterno, do ponto de vista teórico da evolução, tornou-se majestoso de modo diferente do Deus fantasioso da Bíblia. O que a ciência arruinou para sempre é a noção de um Deus antropomorfo, feito à imagem do homem e exterior ao mundo físico. Uma noção mais alta veio se substituir a essa: a de um Deus imanente, sempre presente no seio das coisas. A ideia de Deus não exprime mais hoje, para nós, a de um ser qualquer, mas a ideia do Ser, o qual contém todos os seres.

O universo não é mais essa criação1, essa obra tirada do nada, de que falam as religiões. O universo é um orga­nismo imenso, animado de uma vida eterna. Da mesma forma que nosso próprio corpo é dirigido por uma vontade central que comanda seus atos e regula seus movimentos; da mesma forma que cada um de nós, através das modificações de sua carne, sente-se viver em uma unidade permanente que denominamos a alma, a consciência, o eu, assim o universo, sob suas formas cambiantes, variadas, múltiplas, conhece-se, reflete-se, pos­sui-se em uma unidade viva, em uma razão consciente que é Deus.

O Ser supremo não existe fora do mundo; ele é parte integrante, essencial deste. Ele é a unidade central, onde vêm terminar e se harmonizar todas as relações, o princípio de solidariedade e de amor pelo qual todos os seres são irmãos. Ele é o foco de onde irradiam e se espalham no infinito todas as potências morais: a sabedoria, a justiça, a bondade!

Não há, portanto, criação espontânea, miraculosa; a criação é contínua, sem começo nem fim. O universo sempre existiu; ele possui em si seu princípio de força, de movimento; traz seu objetivo em si mesmo. O mundo se renova incessantemente em suas partes; em seu conjunto, ele é eterno. Tudo se transforma e evolui pelo jogo contínuo da vida e da morte, mas nada perece. Enquanto que, nos céus, sóis se obscurecem e se extinguem, enquanto que mundos envelheci­dos se desagregam e se esvanecem, em outros pontos, sistemas novos se elaboram, astros se acendem, mundos nascem para a luz. Ao lado da decrepitude e da morte, humanidades novas se desabrocham em um rejuvenescimento eterno.

A obra grandiosa prossegue através dos tempos sem fronteiras e dos espaços sem limites, pelo trabalho de todos os seres, solidários uns aos outros, e em proveito de cada um deles. O universo nos oferece o espetáculo de uma evolução in­cessante, na qual todos participam. Um princípio imutável preside a essa obra: é a unidade universal, a unidade divina, a qual abraça, liga, dirige todas as individualidades, todas as atividades particulares, em fazendo-as convergir para um obje­tivo comum, que é a perfeição na plenitude da existência2.

 

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Ao mesmo tempo que as leis do mundo físico nos mostram a ação de um sublime ordenador, as leis morais, pelo intermédio da consciência e da razão, nos falam eloquentemente de um princípio de justiça, de uma providência universal.

O espetáculo da natureza, a vista dos céus, das mon­tanhas, do mar, apresentam a nosso espírito a ideia de um Deus escondido no universo.

A consciência o mostra em nós, ou antes, ela mos­tra em nós alguma coisa dele: é o sentimento do dever e do bem; é um ideal moral para o qual tendem as faculdades do espírito e os sentimentos do coração. O dever ordena impe­riosamente; ele se impõe; sua voz comanda a todas as potências da alma. Há nele uma força que impele os homens até o sacrifício. Só ele dá à existência sua grandeza, sua dignidade. A consciência é a manifestação em nós de uma potência superior à matéria, de uma realidade viva e ativa.

A razão nos fala igualmente de Deus. Os sentidos nos fazem conhecer o mundo material, o mundo dos efei­tos; a razão nos revela o mundo das causas; ela é superior à experiência. Esta constata os fatos, a razão os agrupa e deles deduz as leis. Só ela nos demonstra que na origem do movimento e da vida se encontra a inteligência, que o me­nos não pode conter o mais, nem o inconsciente produzir o consciente, o que resultaria, entretanto, da concepção de um universo se ignorando a si mesmo. A razão descobriu as leis universais antes da experiência; esta não fez senão confirmar suas vistas e delas fornecer a prova. Mas há graus na razão; essa faculdade não é igualmente desenvolvida entre todos os homens. Daí, a desigualdade e a variedade de suas opiniões.

Se o homem soubesse se recolher e se estudar, se afas­tasse da sua alma toda a sombra que aí acumulam as paixões; se, rasgando o véu espesso em que os preconceitos, a ig­norância, os sofismas o envolveram, descesse ao fundo de sua consciência e de sua razão, ele aí encontraria o princípio de uma vida interior toda oposta à vida de fora. Por ela, ele poderia entrar em relações com a natureza inteira, com o universo e Deus, e essa vida lhe daria como um antegosto daquela que lhe reservam o porvir de além-túmulo e os mundos superiores. Ali também está o livro misterioso onde todos os seus atos, bons ou maus, se inscrevem, onde todos os fatos de sua vida se gravam em caracteres inapagáveis, para reaparecer em uma deslumbrante claridade na hora da morte.

Por vezes uma voz poderosa, um canto grave e severo se eleva dessas profundezas do ser, ressoa no meio das ocupações frívolas e das preocupações de nossa vida para nos recordar do dever. Infeliz daquele que se recusa a ouvi-la! Dia virá em que os remorsos lhe ensinarão que não se repelem em vão as advertências da consciência.

Há em cada um de nós fontes escondidas de onde podem jorrar ondas de vida e de amor, virtudes, potências sem número. É aí, nesse santuário íntimo, que é preciso procurar Deus. Deus está em nós, ou, pelo menos, há em nós um reflexo dele. Ora, o que não existe não poderia ser refletido. As almas refletem Deus como as gotas do orvalho da manhã refletem os fogos do sol, cada uma segundo seu grau de pureza.

É por essa percepção interior, e não pela expe­riência dos sentidos, que os homens de gênio, os grandes missionários, os profetas conheceram Deus e suas leis e os revelaram aos povos da Terra.

 

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Pode-se levar mais longe do que o fizemos a definição de Deus? Definir é limitar. Em face desse grande problema, a humana fraqueza aparece. Deus se impõe a nosso espírito, mas escapa a toda análise. O Ser que preenche o tempo e o espaço não será jamais medido por seres que o tempo e o espaço limitam. Querer definir Deus seria circunscrevê-lo e quase negá-lo.

As causas secundárias da vida universal se explicam, mas a causa primeira permanece inapreensível em sua imensidade. Nós não chegaremos a compreendê-la senão depois de ter atravessado muitas vezes a morte.

Tudo o que podemos dizer para resumir é que Deus é a vida, a razão, a consciência, em sua plenitude. Ele é a causa eternamente ativa de tudo o que existe, a comunhão universal onde cada ser vem haurir a existência, para em seguida concorrer, na medida de suas faculdades crescentes e de sua elevação, para a harmonia do conjunto.

Eis-nos bem longe do Deus das religiões, do Deus “forte e ciumento” que se rodeia de relâmpagos, reclama vítimas sangrentas e pune pela eternidade. Os Deuses an­tropomórficos têm vivido. Fala-se muito ainda de um Deus ao qual se atribuem as fraquezas e as paixões humanas, mas esse Deus vê cada dia diminuir seu império.

Até aqui, o homem não viu Deus senão através de seu próprio ser, e a ideia que dele se fez variou segundo ele o contemplava com uma ou outra de suas faculdades. Consi­derado através do prisma dos sentidos, Deus é múltiplo; todas as forças da natureza são deuses; assim nasceu o politeísmo. Visto pela inteligência, Deus é duplo, espírito e matéria, daí o dualismo. Para a razão pura, ele aparece triplo: alma, espírito e corpo. Essa concepção deu nascimento às religiões trinitárias da Índia e ao Cristianismo. Percebido pela vontade, captado pela percepção íntima, propriedade lentamente adquirida, como se adquirem todas as faculdades do gênio, Deus é o Único e o Absoluto. Nele, os três princípios fundamentais do universo se ligam para constituir uma unidade viva.

Assim se explica a diversidade das religiões e dos sis­temas, tanto mais elevados quanto foram concebidos por espíritos mais puros e mais esclarecidos. Quando se considera do alto as coisas, as oposições de ideias, as religiões e os fatos históricos se explicam e se reconciliam em uma síntese superior.

A ideia de Deus, sob as formas diversas que ela re­vestiu, evolui entre dois escolhos, nos quais fracassaram numerosos sistemas. Um é o panteísmo, que concluiu pela absorção final dos seres no Grande Todo. O outro é a noção de infinito, que distancia de tal modo Deus do homem que parece suprimir toda relação entre eles.

A noção de infinito foi combatida por certos filósofos. Embora incompreensível, não se poderia, entretanto, afastá-la, porque ela reaparece em todas as coisas. Por exemplo, o que há de mais sólido que o edifício das ciências exatas? O núme­ro é a sua base; sem ele, não existem mais matemáticas. Ora, é impossível, nisto se empregariam séculos, encontrar o número exprimindo os números infinitos dos quais o pensamento nos demonstra a existência. É o mesmo com o tempo e o espaço. Além dos limites do mundo visível, o pensamento procura outros limites que se furtam incessantemente ao seu alcance.

Uma só filosofia parece ter evitado esse duplo esco­lho e conseguido ligar princípios opostos em aparência. É a dos Druidas gauleses. Eles se exprimiam assim na tríade 483: 

“Três necessidades de Deus: ser infinito em si mesmo, ser finito em relação ao finito, e estar em relação com cada estado das existências no círculo dos mundos.” 

Assim, segundo esse ensinamento ao mesmo tempo simples e racional, o Ser infinito e absoluto por si mes­mo se faz relativo e finito com suas criaturas, desvelando-se sem cessar sob aspectos novos, na medida do adiantamento e da elevação das almas. Deus está em relação com todos os seres. Ele os penetra com seu espírito e os abarca com seu amor, para uni-los em um laço comum e ajudá-los, assim, a realizar suas vistas.

Sua revelação, ou antes, a educação que ele dá às huma­nidades se faz gradual e progressiva, pelo ministério de seus grandes Espíritos. A intervenção providencial se manifesta na história pela aparição, nos tempos desejados, no seio dessas humanidades, de almas de elite encarregadas de aí introduzir as inovações, as descobertas que acelerarão seus progressos, ou de ensinar os princípios de ordem moral necessários à regeneração das sociedades.

Quanto à absorção final dos seres em Deus, o Druidismo escapava disso fazendo de ceugant, círculo superior encerrando todos os outros círculos, a morada exclusiva do Ser divino. A evolução e o progresso das almas, prosseguindo no sentido do infinito, não podiam ter término.

 

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Retomemos o problema do mal, que preocupou tantos pensadores e do qual não falamos senão incidentalmente.

Por que Deus, causa primeira de tudo o que existe, pergun­tam os céticos, deixa subsistir o mal no universo?

Vimos que o mal físico, ou o que é considerado como tal, não é na realidade senão uma ordem de fenômenos naturais. Seu caráter malfazejo está explicado, desde que se conheceu a verda­deira razão das coisas. A erupção de um vulcão não é mais extraordinária que a ebulição de um vaso cheio de água. O raio que derruba os edifícios e as árvores é de mesma natureza que a centelha elétrica, veículo de nosso pensamento. É assim com todos os fenômenos violentos. Resta a dor física; mas sabe-se que ela é a consequência da sensibilidade, e esta é já uma magnífica conquista que o ser não realizou senão depois de longos estágios passados nas formas inferiores da vida. A dor é uma advertência necessária, um estimulante para a atividade do homem. Ela nos obriga a reentrar em nós mesmos e a refletir; ela nos ajuda a domar nossas paixões. A dor é a via do aperfeiçoamento.

Mas o mal moral, dir-se-á, o vício, o crime, a ignorân­cia, o triunfo dos maldosos e o infortúnio dos justos, como os explicareis?

Primeiro, em que ponto de vista se coloca para se julgar essas coisas? Se o homem não vê senão o canto do mundo que habita, se ele não encara senão sua curta passagem sobre a Terra, como poderia conhecer a ordem eterna e universal? Para pesar o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, o justo e o injusto, é preciso se elevar acima dos limites estreitos da vida atual e considerar o conjunto de nossos destinos. Então o mal aparece como um estado transitório, inerente a nosso globo, como uma das fases inferiores da evolução dos seres para o bem. Não é em nosso mundo e em nosso tempo que é preciso buscar o ideal perfeito, mas na imensidade dos mundos e na eternidade dos tempos.

Entretanto, se se observa a lenta evolução das espécies e das raças através das idades; se se considera o homem dos tempos pré-históricos, o antropoide das cavernas, de instintos ferozes, e as condições de sua vida miserável, e que se compare, em seguida, esse ponto de partida com os resultados obtidos pela civilização atual, ver-se-á claramente a tendência constante dos seres e das coisas para um ideal de perfeição. A evidência mesma no-lo demonstra: a vida sempre se melhora, se transforma e se enriquece, a soma do bem aumenta sem cessar e a soma dos males diminui.

E se se percebem tempos de parada e, por vezes, mesmo de recuos nesse encaminhamento para o melhor, é preciso não esque­cer que o homem é livre, que ele pode se determinar a seu grado em um sentido ou em outro. Seu aperfeiçoamento não é possível senão quando sua vontade está de acordo com a lei.

O mal, oposição à lei divina, não pode ser a obra de Deus; é, portanto, a obra do homem, a consequência da sua liberdade. Mas o mal, como a sombra, não tem existência real: é antes um efeito de contraste. As trevas se dissipam diante da luz; da mesma forma, o mal se esvanece logo que o bem aparece. O mal, numa palavra, não é senão a ausência do bem.

Diz-se, por vezes, que Deus poderia criar al­mas perfeitas e poupá-las, assim, das vicissitudes da vida terrestre. Sem pesquisar se Deus poderia formar seres semelhantes a ele, nós responderemos que, desse fato, a vida e a atividade universais, a variedade, o trabalho, o progresso, não teriam mais objetivo; o mundo estaria congelado em sua imóvel perfeição. A magnífica evolução dos seres através dos tempos não é preferível a um morno e eterno repouso? Um bem que não se mereceu nem conquistou seria um bem, e aquele que o obtivesse sem esforço poderia apreciar o seu valor?

Diante da vasta perspectiva de nossas existências na qual cada uma é um combate para a luz; diante dessa ascensão grandiosa do ser se elevando de círculos em círculos para o perfeito, o problema do mal desaparece.

Sair das baixas regiões da matéria e galgar todos os escalões da hierarquia dos Espíritos, libertar-se do jugo das paixões e conquistar uma a uma todas as virtudes, todas as ciências, tal é o fim para o qual a Providência formou as almas e dispôs os mundos, teatros predestinados de nossas lutas e de nossos trabalhos.

Creiamos Nela e bendigamo-la! Creiamos nessa Provi­dência generosa que tudo fez para nosso bem; recordemo-nos de que, se parecem existir lacunas em sua obra, elas não provêm senão de nossa ignorância e de nossa insuficiente razão. Creiamos em Deus, grande Espírito da natureza, que preside ao triunfo definitivo da justiça no universo. Tenhamos confiança em sua sabedoria, que reserva compensações a todos os sofrimentos, alegrias a todas as dores, e avancemos com um coração firme para os destinos que ele nos escolheu.

É belo, consolador e doce poder caminhar na vida, a fronte erguida para os céus, sabendo que, mesmo nas tormen­tas, no meio das provas mais cruéis, no fundo dos calabouços como na beira dos abismos, uma Providência, uma lei divina paira sobre nós, rege nossos atos; que, de nossas lutas, de nossas torturas, de nossas lágrimas, ela faz sair nossa própria glória e nossa felicidade. É nesse pensamento que está toda a força do homem de bem.

—  LÉON DENIS,

Depois da morte, cap. 9.

1 Segundo Eug. Nus (À procura dos destinos, cap. XI), o verbo hebraico que traduzimos pela palavra cria significa fazer passar do princípio à essência. 

2 “Ele é um, procriado de si mesmo, e desse um todas as coisas saíram, e ele está nelas, ele as envolve, e nenhum mortal o viu, mas ele mesmo os vê a todos.” (Hinos órficos.)

         3 Tríades bárdicas. Cyfrinach Beirdd Inys Pryddain.