Diotima de Mantineia

Sobre como entender e atingir o Amor perfeito

                 

     Sócrates ouve o discurso da sacerdotisa Diotima de Mantineia (c. 440 a.C.)

Extraído e adaptado de:

O Banquete, de Platão, discurso de Sócrates.

Sócrates reproduz aos presentes o discurso da sacerdotisa Diotima, sobre o Amor

“Aquele que corretamente se encaminha à perfeita contemplação do Amor, com efeito ― disse ela ― deve começar, quando jovem, por se dirigir aos belos corpos; e, em primeiro lugar, se o seu orientador o dirigir corretamente, ele deve amar um só corpo e, então, gerar belas palavras.

Depois, ele deve compreender que a beleza em qualquer corpo é irmã da que está em qualquer outro, e que, se deve-se procurar a beleza na forma, muita tolice seria não considerar uma só e a mesma a beleza que está em todos os corpos.

E, depois de entender isso, ele deve se fazer amante de todos os belos corpos e largar esse amor violento de um só, após desprezá-lo e considerá-lo mesquinho.

Depois disso, ele deve considerar mais preciosa a beleza que está nas almas que a do corpo, de modo que, mesmo se alguém de uma alma gentil tenha, todavia, pouco encanto, ele se contente, ame e se interesse, e produza e procure palavras tais que tornem melhores os jovens.

Para que, então, seja ele obrigado a contemplar a beleza nos ofícios e nas leis, e a ver, assim, que toda ela tem um parentesco comum; e julgue, enfim, de pouca importância a beleza no corpo.

Depois dos ofícios, é para as ciências que é preciso transportá-lo, a fim de que veja também a beleza das ciências; e, olhando já muito para a beleza, sem mais amar como um servo a beleza individual de uma criançola, de uma pessoa ou de um só costume, ele não seja, nessa escravidão, miserável e um falador mesquinho, mas voltado para o vasto oceano da beleza e, contemplando-a, ele produza muitas palavras belas e magníficas, e reflexões, em inesgotável amor à sabedoria.

Até que aí, robustecido e crescido, ele contemple uma certa Ciência, única, tal que o seu objeto é a Beleza seguinte. Tente agora ― disse-me ela ― prestar-me a máxima atenção possível. Aquele, pois, que tiver sido orientado até esse ponto para as coisas do amor, contemplando seguida e corretamente o que é belo, já chegando ao ápice dos graus do amor, de súbito perceberá algo de maravilhosamente Belo em sua natureza, o mesmo, ó Sócrates, ao qual tendiam todas as penas anteriores: primeiramente, o Belo que sempre é, que não nasce nem perece, não cresce nem decresce; e, depois, que não é belo de um jeito e feio de outro, nem ora sim, ora não; nem belo quanto a isso e feio quanto àquilo, nem belo aqui e feio ali, como se fosse belo para uns e, para outros, feio. Nem, por outro lado, vai lhe aparecer o Belo como um rosto ou mãos, nem como nada que o corpo tem consigo, nem como algum discurso ou alguma ciência, nem certamente como existindo em algo mais, como, por exemplo, em algum animal da terra ou do céu, ou em qualquer outra coisa. Ao contrário, irá lhe aparecer ele mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, sendo sempre uniforme, enquanto tudo mais que é belo participa dele, de um modo tal que, enquanto tudo mais que é belo nasce e perece, ele em nada fica maior ou menor, nem nada sofre.

Quando, então, alguém, subindo a partir do que é belo aqui, através do correto amor às pessoas jovens, começa a contemplar aquele Belo, quase que estaria atingindo o ponto final. Eis, com efeito, em que consiste proceder corretamente, ou deixar-se conduzir, nos caminhos do amor: em começar do que é belo aqui e, em vista daquele Belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências, até que, das ciências, acabe naquela Ciência, que de nada mais é senão daquele próprio Belo, e conheça enfim o que em si é o Belo.

Nesse ponto da vida, meu caro Sócrates ― continuou a estrangeira de Mantineia ―, se é que em mais algum outro, o homem poderia viver contemplando o próprio Belo. Se algum dia você o vir, não é como ouro ou como roupa que ele lhe parecerá ser, ou como belas pessoas jovens adolescentes, a cuja vista você fica agora aturdido e disposto (você como muitos outros, contanto que vejam seus amados e sempre estejam com eles) a não comer nem beber, se de algum modo fosse possível, mas a só contemplar e estar ao seu lado.

Que pensamos, então, que aconteceria ― disse ela ― se ocorresse a alguém contemplar o próprio Belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes humanas, de cores e outras muitas ninharias mortais, mas o próprio divino Belo ele pudesse contemplar em sua forma única? Porventura você pensa ― disse ― que é vã a vida de um homem a olhar naquela direção e para aquele objeto, com aquilo1 com que deve, quando o contempla e convive com ele? Ou você não considera ― disse ela ― que somente então, quando vir o Belo com aquilo com que este pode ser visto, irá lhe ocorrer produzir não sombras de virtude, porque não é em sombra que estará tocando, mas virtudes reais, porque é no real que estará tocando?”

Eis o que me dizia Diotima, ó Fedro e demais presentes, e do que estou convencido; e porque estou convencido, tento convencer também os outros de que, para essa aquisição, um colaborador da natureza humana melhor que o Amor não se encontraria facilmente. Eis por que eu afirmo que todo homem deve honrar o Amor, e que eu próprio prezo o que lhe concerne e particularmente o cultivo, e aos outros exorto, e agora e sempre elogio o poder e a virilidade do Amor na medida em que sou capaz. Este discurso, Fedro, se quiser, considere-o proferido como um hino ao Amor; se não, o que quer e como quer que se apraza chamá-lo, assim deve fazê-lo.

 

—  Sócrates

PLATÃO. O Banquete.

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Nota:

1 Isto é, com a inteligência, ou antes, com a própria alma, livre das suas relações com o corpo. V. Fédon, 65b-e.