Allan Kardec

Papel da ciência na Gênese

Allan Kardec (1804-1869)

Educador, filósofo, escritor e tradutor francês, discípulo e colaborador de H. Pestalozzi

Bacharel em Ciências e Letras (Instituição de Pestalozzi, Yverdon - Suíça)

Professor de Astronomia, Física, Química, Matemática, Fisiologia e Anatomia

Presidente-Fundador da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas

Extraído de:

A Gênese, capítulo 4, de Allan Kardec

PAPEL DA CIÊNCIA NA GÊNESE

1. A história da origem de quase todos os povos antigos se confunde com a da sua religião. Por isso, os seus primeiros livros foram livros religiosos. E como todas as religiões se prendem ao princípio das coisas, que são também o da humanidade, deram, sobre a formação e disposição do universo, explicações em relação com o estado dos conhecimentos da época e dos seus fundadores. Disso resultou que os primeiros livros sagrados foram ao mesmo tempo os primeiros livros de ciência, como foram durante muito tempo o único código das leis civis.

2. Nos tempos primitivos, os meios de observação eram, necessariamente, muito imperfeitos. As primeiras teorias sobre o sistema do mundo deviam estar maculadas por erros grosseiros. Mas, se tivessem sido esses meios tão completos como são hoje, os homens não teriam sabido se servir deles; aliás, só podiam ser o fruto do desenvolvimento da inteligência e do conhecimento sucessivo das leis da natureza. À medida que o homem avançou no conhecimento dessas leis, penetrou os mistérios da criação e retificou as ideias que fez sobre a origem das coisas.

3. O homem foi incapaz de resolver os problemas da criação até o momento em que a chave deles lhe foi dada pela ciência. Foi necessário que a Astronomia lhe abrisse as portas do espaço infinito e lhe permitisse nele mergulhar seus olhares; que, pelo poder do Cálculo, pudesse determinar com precisão rigorosa o movimento, a posição, o volume, a natureza e o papel dos corpos celestes; que a Física lhe revelasse as leis da gravidade, do calor, da luz e da eletricidade; que a Química lhe ensinasse as transformações da matéria; e a Mineralogia, os materiais que formam a crosta do globo; que a Geologia lhe ensinasse a ler, nas camadas terrestres, a formação gradual desse mesmo globo. A Botânica, a Zoologia, a Paleontologia, a Antropologia, deveriam iniciá-lo na filiação e na sucessão dos seres organizados; com a Arqueologia, pôde seguir as marcas da humanidade através das idades. Todas as ciências, em uma palavra, completando-se umas com as outras, deveriam trazer o seu contingente indispensável para o conhecimento da história do mundo. Na falta delas, o homem tinha por guia somente as suas primeiras hipóteses.

Também, antes que o homem possuísse esses elementos de apreciação, todos os comentaristas da Gênese, cuja razão se furtava às impossibilidades materiais, volteavam num mesmo círculo, sem poderem dele sair. Só puderam quando a ciência abriu o caminho, abrindo brecha no velho edifício das crenças e, então, tudo mudou de aspecto. Uma vez encontrado o fio condutor, as dificuldades foram prontamente aplainadas: em lugar de uma Gênese imaginária, teve-se uma Gênese positiva e de alguma forma experimental. O campo do universo se estendeu ao infinito; viu-se a Terra e os astros se formarem gradualmente, segundo leis eternas e imutáveis, que testemunham bem melhor a grandeza e a sabedoria de Deus do que uma criação miraculosa, saída, de repente, do nada, como uma mudança de objetivo, por uma ideia súbita da Divindade, depois de uma eternidade de inação.

Uma vez que é impossível conceber a Gênese sem os dados fornecidos pela ciência, pode-se dizer, com toda a verdade, que: a ciência está chamada a constituir a verdadeira Gênese, segundo as leis da natureza.

4. No ponto em que chegou, no século XIX, a ciência resolveu todas as dificuldades do problema da Gênese?

Seguramente não, mas é incontestável que destruiu, sem retorno, todos os seus erros capitais e que colocou os seus mais essenciais fundamentos sobre dados irrecusáveis. Os pontos ainda incertos são, propriamente falando, apenas questões de detalhes, cuja solução, qualquer que seja ela no futuro, não poderá prejudicar o conjunto. Aliás, apesar de todos os recursos dos quais pôde dispor, faltou a ela, até este dia, um elemento importante sem o qual a obra não poderia estar, jamais, completa.

5. De todas as Gêneses antigas, a que mais se aproxima dos dados científicos modernos, apesar dos erros que ela encerra e que hoje são demonstrados até à evidência, é incontestavelmente a de Moisés. Alguns dos seus erros são mais aparentes do que reais; provêm tanto da falsa interpretação de certas palavras, cujo significado primitivo se perdeu passando de idioma em idioma pela tradução, ou cuja acepção mudou com os costumes dos povos, quanto pela forma alegórica particular ao estilo oriental e das quais tomou-se a letra, em vez de procurar-lhe o espírito.

6. A Bíblia contém evidentemente fatos que a razão, desenvolvida pela ciência, não poderia hoje aceitar e outros que parecem estranhos e repugnam, porque se prendem a costumes que não são mais os nossos. Mas, ao lado disso, haveria parcialidade em não reconhecer que ela encerra grandes e belas coisas. A alegoria nela tem um lugar considerável e, sob esse véu, esconde verdades sublimes, que aparecem quando se procura o fundo do pensamento, porque, então, o absurdo desaparece.

Por que não foi levantado esse véu mais cedo? Por um lado, foi a falta de luzes que apenas a ciência e a filosofia podiam dar e, por outro lado, o princípio de imutabilidade absoluta da fé, resultado de um respeito muito cego pela letra, sob o qual a razão deveria se inclinar; e, por consequência, o medo de comprometer os fundamentos de crenças estabelecidas sob o sentido literal. Partindo estas crenças de um ponto primitivo, houve o receio de que, se o primeiro anel da cadeia viesse a se romper, todas as malhas da rede acabariam por se separar; por isso, fecharam-se os olhos mesmo assim. Mas fechar os olhos sobre o perigo não é evitá-lo. Quando um edifício cede, não é mais prudente substituir imediatamente as pedras más por boas, em vez de esperar, por respeito à antiguidade do edifício, que o mal se torne sem remédio, e que seja preciso reconstruí-lo de alto a baixo?

7. A ciência, levando as suas investigações até as entranhas da Terra e a profundeza dos céus, tem demonstrado, pois, de maneira irrecusável os erros da Gênesis mosaica presa à letra e a impossibilidade material de que as coisas tenham se passado assim como estão textualmente reportadas. Ela tem, por isso mesmo, ferido profundamente as crenças populares. A fé ortodoxa, com isso, se impressionou, porque pensou ver a sua pedra de toque retirada. Mas quem deveria ter razão: a ciência, caminhando prudente e progressivamente sobre o terreno sólido dos números e da observação, sem nada afirmar antes de ter a prova na mão, ou uma relação escrita numa época na qual os meios de observação faltavam absolutamente? Quem deve prevalecer afinal de contas: aquele que diz que 2 mais 2 são 5 e se recusa a verificar, ou aquele que diz que 2 mais 2 são quatro e o prova?

8. Mas então, dizem, se a Bíblia é uma revelação divina, Deus está, pois, enganado? Se não é uma revelação divina, não tem mais autoridade e a religião desmorona por falta de base.

De duas coisas, uma: ou a ciência está errada, ou tem razão. Se tem razão, não pode resultar que uma opinião contrária seja verdadeira. Não há revelação que possa se impor sobre a autoridade dos fatos.

Incontestavelmente, Deus, que é todo verdade, não pode induzir os homens em erro, nem consciente nem inconscientemente; sem o que, não seria Deus. Se, pois, os fatos contradizem as palavras que lhe são atribuídas, disso é preciso concluir, logicamente, que ele não as pronunciou, ou que foram tomadas em sentido contrário.

Se a religião sofre em algumas partes por suas contradições, o erro não se deve à ciência, que não pode fazer com que aquilo que é não seja, mas aos homens, por terem fundado prematuramente dogmas absolutos dos quais fizeram uma questão de vida ou de morte, sobre hipóteses suscetíveis de serem desmentidas pela experiência.

Há coisas com o abandono das quais é preciso se resignar, queira ou não queira, quando se pode dispor de outro modo. Quando o mundo caminha, não podendo a vontade de alguns detê-lo, o mais sábio está em segui-lo e se acomodar com o novo estado de coisas, em vez de se agarrar ao passado que desmorona, com o risco de cair com ele.

9. Seria preciso, por respeito aos textos considerados sagrados, impor silêncio à ciência? Isso teria sido coisa tão impossível quanto impedir a Terra de girar. As religiões, quaisquer que sejam, nunca ganharam nada por sustentarem erros manifestos. A missão da ciência é descobrir as leis da natureza; ora, como essas leis são obras de Deus, não podem ser contrárias às religiões fundadas sobre a verdade. Lançar anátema ao progresso por atentatório à religião é lançá-lo à própria obra de Deus. Além disso, seria esforço inútil, porque todos os anátemas do mundo não impedirão à ciência de caminhar, e à verdade de se fazer luz. Se a religião recusa caminhar com a ciência, a ciência avança sozinha.

10. Apenas as religiões estacionárias podem temer as descobertas da ciência. Essas descobertas somente são funestas àquelas que se deixam ultrapassar pelas ideias progressivas, imobilizando-se no absolutismo das suas crenças. Em geral, fazem uma ideia tão mesquinha da Divindade que não compreendem que assimilar as leis da natureza reveladas pela ciência é glorificar a Deus por suas obras. Mas, em sua cegueira, nisso preferem fazer homenagem ao Espírito do mal. Uma religião que não estivesse, em nenhum ponto, em contradição com as leis da natureza nada teria a temer do progresso e seria uma religião invulnerável.

11. A Gênese compreende duas partes: a história da formação do mundo material e a da humanidade, considerada em seu duplo princípio, corpóreo e espiritual. A ciência está limitada na pesquisa das leis que regem a matéria. No próprio homem, ela estuda somente o envoltório carnal. Sob esse aspecto, chegou a constatar com uma precisão incontestável as partes principais do mecanismo do universo e do organismo humano. Sobre esse ponto capital, pode, portanto, completar a Gênesis de Moisés e retificar as suas partes defeituosas.

Mas a história do homem considerado como ser espiritual se liga a uma ordem especial de ideias que não é do domínio da ciência propriamente dita, e da qual esta, por esse motivo, não fez objeto de suas investigações. A filosofia, que tem mais particularmente esse gênero de estudo em suas atribuições, formulou sobre esse ponto somente sistemas contraditórios, desde a espiritualidade pura até a negação do princípio espiritual, e mesmo de Deus, sem outras bases do que as ideias pessoais dos seus autores; deixou, pois, a questão indecisa, por falta de um controle suficiente. 

12. Esta questão, todavia, é para o homem a mais importante, por dizer respeito ao problema de seu passado e de seu futuro; a do mundo material só o toca indiretamente. O que lhe importa, antes de tudo, é saber de onde vem, para onde vai; se já viveu, se viverá ainda e qual sorte lhe está reservada.

Sobre todas essas questões, a ciência está muda. A filosofia dá apenas opiniões que concluem em sentido diametralmente oposto; mas ao menos permite discutir, o que faz com que muita gente se anime de seu lado, de preferência ao da religião que não discute.

13. Todas as religiões estão de acordo sobre o princípio da existência da alma, sem, todavia, demonstrá-lo. Mas não se põem de acordo nem sobre a sua origem, nem sobre o seu passado; nem sobre o seu futuro, sobretudo; nem naquilo que é essencial: sobre as condições das quais depende a sua sorte futura. Elas fazem, na maioria, de seu futuro um quadro imposto à crença de seus adeptos, que só pode ser aceito pela fé cega, mas não pode suportar um exame sério. O destino que dão à alma, estando ligado, em seus dogmas, às ideias que se fizeram do mundo material e do mecanismo do universo nos tempos primitivos, é inconciliável com o estado dos conhecimentos atuais. Podendo, pois, apenas perder ao exame e à discussão, acham mais simples proscrever um e outro.

14. Dessas divergências relativas ao futuro do homem nasceram a dúvida e a incredulidade. Todavia, a incredulidade deixa um vazio penoso. O homem encara com ansiedade o desconhecido onde, cedo ou tarde, deverá entrar fatalmente. A ideia do nada o gela-o; a sua consciência lhe diz que, além do presente, há para ele alguma coisa; mas, o quê? Sua razão desenvolvida não lhe permite mais aceitar as histórias que embalaram a sua infância, tomar a alegoria pela realidade. Qual é o sentido dessa alegoria? A ciência rasgou um canto do véu, mas não lhe revelou o que mais importa saber. Ele interroga em vão; ninguém lhe responde de maneira peremptória e própria para acalmar as suas apreensões. Por toda parte encontra a afirmação se chocando contra a negação, sem provas mais positivas de uma parte e da outra. Daí a incerteza, e a incerteza sobre as coisas da vida futura faz com que o homem se arroje, com um certo frenesi, sobre as coisas da vida material.

Tal é o inevitável efeito das épocas de transição: o edifício do passado desmorona e o do futuro não está ainda construído. O homem está como o adolescente, que não tem mais a crença ingênua dos primeiros anos e não tem ainda os conhecimentos da idade madura; tem apenas vagas aspirações que não sabe definir.

15. Se a questão do homem espiritual permaneceu até os nossos dias no estado de teoria, foi porque faltaram os meios de observação direta, que se teve para constatar o estado do mundo material, e o campo permaneceu aberto às concepções do espírito humano. Enquanto o homem não conheceu as leis que regem a matéria e não pôde aplicar o método experimental, errou de sistema em sistema com relação ao mecanismo do universo e a formação da Terra. E isso ocorreu tanto na ordem moral quanto na ordem física. Para fixar as ideias, tem faltado o elemento essencial: o conhecimento das leis do princípio espiritual. Esse conhecimento estava reservado para a nossa época, como o das leis da matéria foi obra dos dois últimos séculos.

16. Até o presente, o estudo do princípio espiritual, compreendido na Metafísica, foi puramente especulativo e teórico; no Espiritismo, é todo experimental. Com a ajuda da faculdade medianímica mais desenvolvida de nossos dias e, sobretudo, generalizada e melhor estudada, o homem se acha na posse de um novo instrumento de observação. A mediunidade foi, para o mundo espiritual, o que o telescópio foi para o mundo astral, e o microscópio para o mundo dos infinitamente pequenos. Permitiu explorar, estudar, por assim dizer, de visu suas relações com o mundo corpóreo; isolar, no homem vivente, o ser inteligente do ser material e vê-los agirem separadamente. Uma vez em relação com os habitantes desse mundo, pôde-se seguir a alma em sua caminhada ascendente, em suas migrações, em suas transformações. Pôde-se, enfim, estudar o elemento espiritual. Eis o que faltava aos precedentes comentaristas da Gênese, para compreendê-la e retificar os seus erros.

17. O mundo espiritual e o mundo material, estando em contato incessante, são solidários um com o outro. Ambos têm sua parte de ação na Gênese. Sem o conhecimento das leis que regem o primeiro, seria tão impossível constituir uma Gênese completa, quanto é a um escultor dar vida a uma estátua. Somente hoje, se bem que nem a ciência material nem a ciência espiritual tenham dito a sua última palavra, o homem possui os dois elementos próprios para lançar luz sobre esse imenso problema. Eram indispensáveis, necessariamente, essas duas chaves para se chegar a uma solução, mesmo aproximada.   

 

—  ALLAN KARDEC

“Papel da ciência na Gênese”.

A Gênese, capítulo 4.