Allan Kardec

Criação e extensão do universo e do mundo espiritual

Allan Kardec (1804-1869)

Educador, contabilista, filósofo, tradutor francês, discípulo e colaborador de H. Pestalozzi

Formado em Ciências e Letras (Yverdon, Suíça)

Professor de Astronomia, Física, Química, Matemática, Fisiologia e Anatomia Comparada

Membro Premiado da Academia Real de Arras — Sociedade de Ciências, Letras e Artes (França) 

Presidente-Fundador da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas

Extraído de: 

A Gênese, de Allan Kardec

A CRIAÇÃO PRIMÁRIA

Podemos estender os nossos estudos ao modo de formação que deu origem aos mundos e aos seres. [...]

Se bem compreendemos a relação, ou, antes, a oposição entre a eternidade e o tempo, se nos familiarizamos com a idéia de que o tempo não é mais do que uma medida relativa da sucessão das coisas transitórias, ao passo que a eternidade é essencialmente una, imóvel e permanente, não suscetível de qualquer medida, do ponto de vista da duração, compreenderemos que para ela não há começo, nem fim.

De outro lado, se fazemos idéia exata — embora, necessariamente, muito fraca — da infinidade do poder divino, compreenderemos como é possível que o Universo haja existido sempre e sempre exista. Desde que Deus existiu, suas perfeições eternas falaram. Antes que houvessem nascido os tempos, a eternidade incomensurável recebeu a palavra divina e fecundou o espaço, eterno quanto ela.

Existindo, por sua natureza, desde toda a eternidade, Deus criou desde toda eternidade e não poderia ser de outro modo, visto que, por mais longínqua que seja a época a que recuemos, pela imaginação, os supostos limites da criação, haverá sempre, além desse limite, uma eternidade — pondere bem esta idéia —, uma eternidade durante a qual as divinas hipóstases, as volições infinitas teriam permanecido sepultadas em muda letargia inativa e infecunda, uma eternidade de morte aparente para o Pai eterno que dá vida aos seres; de mutismo indiferente para o Verbo que os governa; de esterilidade fria e egoísta para o espírito de amor e vivificação.

Compreendamos melhor a grandeza da ação divina e a sua perpetuidade sob a mão do Ser absoluto! Deus é o Sol dos seres, é a Luz do mundo. Ora, a aparição do Sol dá nascimento instantâneo a ondas de luz que se vão espalhando por todos os lados, na extensão. Do mesmo modo, o Universo, nascido do Eterno, remonta aos períodos inimagináveis do infinito de duração, ao Fiat lux! do início.

O começo absoluto das coisas remonta, pois, a Deus. As sucessivas aparições delas no domínio da existência constituem a ordem da criação perpétua.

Que mortal poderia dizer das magnificências desconhecidas e soberbamente veladas sob a noite das idades que se desdobraram nesses tempos antigos, em que nenhuma das maravilhas do Universo atual existia; nessa época primitiva em que, tendo-se feito ouvir a voz do Senhor, os materiais que no futuro haviam de agregar-se por si mesmos e simetricamente, para formar o templo da Natureza, se encontraram de súbito no seio dos vácuos infinitos; quando aquela voz misteriosa, que toda criatura venera e estima como a de uma mãe, produziu notas harmoniosamente variadas, para irem vibrar juntas e modular o concerto dos céus imensos!

O mundo, no nascedouro, não se apresentou assente na sua virilidade e na plenitude da sua vida, não. O poder criador nunca se contradiz e, como todas as coisas, o Universo nasceu criança. Revestido das leis mencionadas acima e da impulsão inicial inerente à sua formação mesma, a matéria cósmica primitiva fez que sucessivamente nascessem turbilhões, aglomerações desse fluido difuso, amontoados de matéria nebulosa que se cindiram por si próprios e se modificaram ao infinito para gerar, nas regiões incomensuráveis da amplidão, diversos centros de criações simultâneas ou sucessivas.

Em virtude das forças que predominaram sobre um ou sobre outro deles e das circunstâncias ulteriores que presidiram aos seus desenvolvimentos, esses centros primitivos se tornaram focos de uma vida especial: uns, menos disseminados no espaço e mais ricos em princípios e em forças atuantes, começaram desde logo a sua particular vida astral; os outros, ocupando ilimitada extensão, cresceram com lentidão extrema, ou de novo se dividiram em outros centros secundários.

Transportando-nos a alguns milhões de séculos somente, acima da época atual, verificamos que a nossa Terra ainda não existe, que mesmo o nosso sistema solar ainda não começou as evoluções da vida planetária; mas, que, entretanto, já esplêndidos sóis iluminam o éter; já planetas habitados dão vida e existência a uma multidão de seres, nossos predecessores na carreira humana, que as produções opulentas de uma natureza desconhecida e os maravilhosos fenômenos do céu desdobram, sob outros olhares, os quadros da imensa criação. Que digo! já deixaram de existir esplendores que muito antes fizeram palpitar o coração de outros mortais, sob o pensamento da potência infinita! E nós, pobres seres pequeninos, que viemos após uma eternidade de vida, nós nos cremos contemporâneos da criação!

Ainda uma vez; compreendamos melhor a Natureza. Saibamos que atrás de nós, como à nossa frente, está a eternidade, que o espaço é teatro de inimaginável sucessão e simultaneidade de criações. Tais nebulosas, que mal percebemos nos mais longínquos pontos do céu, são aglomerados de sóis em vias de formação; tais outras são vias-lácteas de mundos habitados; outras, finalmente, são de catástrofes e de perecimento. Saibamos que, assim como estamos colocados no meio de uma infinidade de mundos, também estamos no meio de uma dupla infinidade de durações, anteriores e ulteriores; que a criação universal não se acha restrita a nós, que não nos é lícito aplicar essa expressão à formação isolada do nosso pequenino globo.

 

A CRIAÇÃO UNIVERSAL

Após haver remontado, tanto quanto o permitia a nossa fraqueza, em direção à fonte oculta donde dimanam os mundos, como de um rio as gotas d’água, consideremos a marcha das criações sucessivas e dos seus desenvolvimentos seriais.

A matéria cósmica primitiva continha os elementos materiais, fluídicos e vitais de todos os universos que estadeiam suas magnificências diante da eternidade. Ela é a mãe fecunda de todas as coisas, a primeira avó e, sobretudo, a eterna geratriz. Absolutamente não desapareceu essa substância donde provêm as esferas siderais; não morreu essa potência, pois que ainda, incessantemente, dá à luz novas criações e incessantemente recebe, reconstituídos, os princípios dos mundos que se apagam do livro eterno.

A substância etérea, mais ou menos rarefeita, que se difunde pelos espaços interplanetários; esse fluido cósmico que enche o mundo, mais ou menos rarefeito, nas regiões imensas, opulentas de aglomerações de estrelas; mais ou menos condensado onde o céu astral ainda não brilha; mais ou menos modificado por diversas combinações, de acordo com as localidades da extensão, nada mais é do que a substância primitiva onde residem as forças universais, donde a Natureza há tirado todas as coisas.1

Esse fluido penetra os corpos, como um oceano imenso. É nele que reside o princípio vital que dá origem à vida dos seres e a perpetua em cada globo, conforme à condição deste, princípio que, em estado latente, se conserva adormecido onde a voz de um ser não o chama. Toda criatura, mineral, vegetal, animal ou qualquer outra — porquanto há muitos outros reinos naturais, de cuja existência nem sequer suspeitais — sabe, em virtude desse princípio vital e universal, apropriar as condições de sua existência e de sua duração.

As moléculas do mineral têm uma certa soma dessa vida, do mesmo modo que a semente do embrião, e se grupam, como no organismo, em figuras simétricas que constituem os indivíduos.

Muito importa nos compenetremos da noção de que a matéria cósmica primitiva se achava revestida, não só das leis que asseguram a estabilidade dos mundos, como também do universal princípio vital que forma gerações espontâneas em cada mundo, à medida que se apresentam as condições da existência sucessiva dos seres e quando soa a hora do aparecimento dos filhos da vida, durante o período criador.

Efetua-se assim a criação universal. É, pois, exato dizer-se que, sendo as operações da Natureza a expressão da vontade divina, Deus há criado sempre, cria incessantemente e nunca deixará de criar.

Até aqui, porém, temos guardado silêncio sobre o mundo espiritual, que também faz parte da criação e cumpre seus destinos conforme as augustas prescrições do Senhor.

Acerca do modo da criação dos espíritos, entretanto, não posso ministrar mais que um ensino muito restrito, em virtude da minha própria ignorância e também porque tenho ainda de calar-me no que concerne a certas questões, se bem já me haja sido dado aprofundá-las.

Aos que desejem religiosamente conhecer e se mostrem humildes perante Deus, direi, rogando-lhes, todavia, que nenhum sistema prematuro baseiem nas minhas palavras, o seguinte: o espírito não chega a receber a iluminação divina, que lhe dá, simultaneamente com o livre-arbítrio e a consciência, a noção de seus altos destinos, sem haver passado pela série divinamente fatal dos seres inferiores, entre os quais se elabora lentamente a obra da sua individualização. Unicamente a datar do dia em que o Senhor lhe imprime na fronte o seu tipo augusto, o espírito toma lugar no seio das humanidades.

De novo peço: não construais sobre as minhas palavras os vossos raciocínios, tão tristemente célebres na história da Metafísica. Eu preferiria mil vezes calar-me sobre tão elevadas questões, tão acima das nossas meditações ordinárias, a vos expor a desnaturar o sentido de meu ensino e a vos lançar, por culpa minha, nos inextricáveis dédalos do deísmo ou do fatalismo.

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Nota:

1 Se perguntásseis qual o princípio dessas forças e como pode esse princípio estar na substância mesma que o produz, responderíamos que a mecânica numerosos exemplos nos oferece desse fato. A elasticidade, que faz com que uma mola se distenda, não está na própria mola e não depende do modo de agregação das moléculas? O corpo que obedece à força centrífuga recebe a sua impulsão do movimento primitivo que lhe foi impresso.

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