Luiz Gustavo Oliveira dos Santos

Exposição e crítica à ética de Nietzsche

Luiz Gustavo Oliveira dos Santos

EXPOSIÇÃO E DISCUSSÃO SOBRE A ÉTICA DE F. NIETZSCHE 

            Friedrich Nietzsche defende que a moral, bem como as noções de Bem e Mal, são apenas invenções do homem, não existem como valores universais ou reais, mas tiveram uma origem histórica. Assim é que esses valores, em algum tempo no passado, não existiam, e, após existirem, sofreram diversas transformações. Sendo filólogo, Nietzsche procurou a origem etimológica da palavra bom e viu que esta estava associada à noção de poder ou força, num passado distante. Porém, deveu-se aos judeus, povo subjugado e escravo, a inversão dessa acepção da palavra bom para relacioná-la aos moderados, oprimidos e injustiçados, que encaram suas misérias com resignação e renúncia. A Sócrates deveu-se, ainda, a introdução do dualismo Bem x Mal, Corpo x Alma, Verdade x Mentira etc., como valores reais e transcendentes que direcionam a vida humana. 

            Nietzsche, em sua Genealogia, procura demonstrar que todos esses valores, em última instância, são absolutamente artificiais, pois foram inventados e “digeridos” historicamente, de forma que hoje somos praticamente incapazes de separá-los de nossas convicções. O problema disso, para Nietzsche, é que todos esses valores contrariam a natureza humana, uma vez que enfraquecem o impulso vital, chamado por ele de vontade de potência, presente em todos os seres vivos. Essa “vontade”, que é como um chamado incessante para a afirmação da vida e uma busca impetuosa pelo ganho de possibilidades sempre maiores de ação e de imposição da própria vontade, é o que nos torna humanos e dá sentido para nossas vidas. Os valores artificiais criados historicamente, que só enfraquecem a vontade, acabam levando o homem a uma busca vã, um “querer nada”, já que o homem não consegue, por natureza, “nada querer”, e assim, sua vida cai no nulismo, ou niilismo

            A solução nietzschiana aponta para uma tomada de consciência que destrone esses valores, demasiado humanos e pesados para ser carregados por toda a vida, peso este tão inculcado em nossas convicções que quase não percebemos o desgaste que nos causa. Somos como “camelos” carregadores de valores e deveres que nos aprisionam e nos tornam ressentidos com a vida. Após a tomada de consciência, seremos como “leões” ávidos pela liberdade, mas sem uma visão clara do que fazer e de como funciona a vida. Então, alcançaremos o estágio da “criança”, que tem alto poder de criatividade e que utiliza seu querer como impulso para suas realizações, compreendendo que, para construir algo novo, deve-se destruir o velho. A “criança”, a que o Zaratustra de Nietzsche se refere, é o chamado supra-homem (além-homem ou super-homem). Neste estágio, conseguimos nos livrar de todos os empecilhos à afirmação da vida impostos pelo passado, não tendo mais ressentimentos com a vida e agindo somente conforme a vontade de potência. 

            Nietzsche propõe aforismos em sua Gaia Ciência (Gaya Scienza = Alegre Sabedoria) que nos levam a refletir sobre nosso ressentimento com a vida, utilizando figuras como a do eterno retorno. Uma pergunta nos mostra qual a nossa postura diante da vida, de “camelo” ou de “super-homem”: Como reagiríamos se houvéssemos de passar novamente por tudo o que já vivemos? Se não gostamos da proposta, significa que temos algum ressentimento com o passado, ou seja, gostaríamos que o que se passou fosse de outro modo. Mas, se gostamos, significa que vivemos a vida como ela deve ser vivida, aceitamos que o que é, é, e não pretenderíamos mudar o passado. A segunda resposta é a do “super-homem”, cujos valores não o fazem sentir-se mal por suas ações, como nos fazem hoje os valores religiosos com a idéia de pecado. Não existe pecado para o “super-homem”, pois o que se fizer segundo a vontade de potência é correto que seja feito, sem ressentimentos. 

            Daí, segue-se a inquietante “morte de Deus”, pois Deus nada mais é, para Nietzsche, que um obstáculo à afirmação da vida, uma testemunha e juiz indesejável de todos os nossos atos. Isso nos deixa intimidados para agir, construir e destruir, na tragédia da vida. Sem esse implacável observador, somos muito mais livres para nos deixar guiar pela vontade de potência, pois Ele representa todos os valores históricos que pesam sobre nós. Deus seria o fardo mais pesado que o “camelo” carrega. De um modo ou de outro, o homem sempre tende a “matar Deus”, já que o próprio homem-camelo o matou na Cruz. Apesar de essa imagem de Jesus crucificado não ser definidora da afirmação da vida, ela representa um “desejo implícito” do homem de se sobrepor a Deus. O desejo humano, como força natural imperiosa, mata Deus, pois esse Deus quer o impossível: matar o “querer” humano. 

            A vida, para Nietzsche, é uma tragédia grega, onde o querer, o viver, o sofrer e o morrer têm valor, juntamente com a alegria (gaya), a euforia, a autenticidade dionisíaca. Os valores artificiais que tomamos como Verdades transcendentais pretendem “abafar” esse lado da vida, tão bem evidenciado pelas tragédias antigas. Damos, devido a nossos valores culturais, mais atenção ao lado apolíneo, representativo e “polido”, durante nossa existência. Mas deveríamos, na verdade, equilibrar os dois lados, Apolo e Dionísio, reconhecendo quando, na genealogia dos valores, Dionísio foi descartado, para, em seguida, podermos restituí-lo. Assim, o critério de Nietzsche para estabelecer o “certo” e o “errado” é a afirmação da vida, ou a vontade de potência

            Mas esse critério pode, de certa forma, ser interpretado como um elemento transcendental que direciona nossas vidas. Então, de qualquer maneira, os valores teriam uma origem “extra-humana”. Assim como o “Bem x Mal” socrático, poderíamos falar do “Ressentimento x Afirmação” ou “Vontade de Potência x Niilismo” nietzschianos. Na verdade, parece que mesmo Deus não precisa morrer, se relacionarmos Deus com o querer. Nietzsche não exclui a possibilidade de um “Deus-Desejo”. Do mesmo modo como o cristão considera que todo homem tem uma centelha do Espírito Santo, o “super-homem” pode considerar que tem dentro de si uma centelha de um Deus-Desejo. Para Nietzsche, o homem é, por natureza, um ser desejoso e volitivo, mas esses atributos parecem provir do mesmo “lugar” de onde provêm os atributos bondoso e verdadeiro: da metafísica. Isso porque, para Nietzsche, a vontade de potência é um conceito que, relativamente ao homem, é eterno, imutável, definidor da moralidade, aplicável a todos os homens (mais ainda: a todo ser vivo), necessário, etc... E, para resguardar tal conceito metafísico, nada obsta que seja evocado o Deus-Desejo. 

            Evidentemente, essa visão ironiza Nietzsche. Seu problema com Deus é que Ele não representa nada de afirmativo para a vida em concreto; ao contrário, apenas inibe a vontade de potência, fazendo-nos desejar o “outro mundo”, que é um “nada”, tornando-nos niilistas passivos. Os sacerdotes ascetas (monges budistas, padres, faquires, etc.), para Nietzsche, são niilistas, representantes maiores da “moral dos escravos”, que correm atrás do nada, do vento. Eis aí seu problema com Deus. E eis aí seu encontro com Deus... Essas frases que descrevem os niilistas são usadas pelos próprios “niilistas”, há milênios, para designar aqueles que pretendem afirmar a sua vontade. Já diziam as Escrituras que as vontades desta vida (e, por isso, a vontade de potência) são um “correr atrás do vento”, pois “o que é a nossa vida, senão uma fumaça que agora existe e logo se dissipa?” (assim se exprimem Davi e Salomão, em Salmos e Provérbios). Os sacerdotes ascetas chamariam Nietzsche de niilista (no sentido de “querer o nada”), pois persegue o vento, numa vida curta que logo se dissipa, e todas as realizações, buscas e desejos se reduzem a nada quando chega a morte. É por isso que Nietzsche, apesar de ser otimista quanto à realização humana, parece pessimista ao renegar todas as ânsias e aspirações naturais do homem por um eterno porvir. 

É difícil determinar qual seria o correto ponto-de-vista, pois de um lado pesam deveres “revelados” por um Deus que se admite incoerente com a natureza humana; de outro, religiosos admitem que a insaciedade dos desejos humanos (associados por Nietzsche à vontade de potência) não terminam aqui, mas vão para além desta vida, o que sugere que a sede de nossas aspirações esteja também no “outro mundo” (a alma). Assim, os sacerdotes talvez não reneguem os desejos, mas, devido à sua natural e interminável insaciedade neste mundo contingente e finito, os transponham para um local onde possam ser saciados; ao passo que Nietzsche não impede que se tome a vontade de potência como associada a um possível Deus-Desejo. Ambos parecem identificar o princípio motor do homem nos desejos, mas aquele que mais os enaltece e valoriza (Nietzsche) os limita a esta vida, enquanto aquele que parece renegá-los (sacerdote), ao contrário, quer saciá-los, mas de maneira plena e perene na outra vida. 

Uma das conclusões sugeridas nas aulas de antropologia filosófica é que a maioria dos problemas humanos seriam resolvidos quando fosse provada definitivamente a existência ou não da alma, pois então teríamos um ponto de apoio até mesmo para fundamentarmos a moral (existe o outro mundo?). Além da metafísica, isso leva o problema também para o campo da epistemologia. Mas, enquanto isso não se demonstra, o “outro mundo” do camelo pode ser um nada (para Nietzsche), ou este mundo pode ser um nada (para os sacerdotes). Afinal, qual dos dois “corre atrás do nada”? Nietzsche e Deus devem estar conversando bastante sobre isso agora.

Prof. Luiz Gustavo Oliveira dos Santos

Professor de Filosofia

Formado em Filosofia (IESCO)

Pós-graduado em Filosofia Política (IESCO)

_________________________________

Envie seu comentário ao texto para teociencia@gmail.com. Indique o título do texto comentado,  o seu nome e sua formação/atividade, bem como uma foto (opcional) para publicação. Obrigado e boas reflexões!