Allan Kardec

Origem e tipos de poder entre os homens

Allan Kardec [Hippolyte Léon Denizard Rivail] (1804-1869)

Educador, filósofo, escritor e tradutor francês, discípulo e colaborador de H. Pestalozzi

Bacharel em Ciências e Letras (Instituição de Pestalozzi, Yverdon - Suíça)

Professor de Astronomia, Física, Química, Matemática, Fisiologia e Anatomia

Presidente-Fundador da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas

Extraído e adaptado de:

Obras Póstumas, de Allan Kardec

ARISTOCRACIAS

(...) Em nenhum tempo, nem em nenhum povo, os homens em sociedade puderam se abster de chefes; são encontrados entre os povos mais selvagens. Isso se prende a que, em razão da diversidade das aptidões e dos caracteres inerentes à espécie humana, há por toda parte homens incapazes que é preciso dirigir, fracos que é necessário proteger, paixões que é preciso comprimir; daí a necessidade de uma autoridade. Sabe-se que, nas sociedades primitivas, essa autoridade foi deferida aos chefes de família, aos anciãos, aos velhos, numa palavra, aos patriarcas. Essa foi a primeira de todas as aristocracias.

Tornando-se as sociedades mais numerosas, a autoridade patriarcal ficou impossibilitada em certas circunstâncias. As querelas entre populações vizinhas ocasionaram os combates; foi preciso, para dirigi-las, não velhos, mas homens fortes, vigorosos e inteligentes; daí os chefes militares. Vitoriosos esses chefes, conferia-se a eles a autoridade, esperando encontrar em sua bravura uma garantia contra os ataques dos inimigos. Muitos, abusando de sua posição, dela se apoderaram por si mesmos. Depois, os vencedores se impuseram aos vencidos, ou os reduziram à servidão. Daí a autoridade da força bruta, que foi a segunda aristocracia.

Os fortes, com seus bens, transmitiram muito naturalmente sua autoridade aos seus filhos. E os fracos, sob compressão, não ousando nada dizer, habituaram-se pouco a pouco a considerar estes filhos como os herdeiros dos direitos conquistados pelos seus pais e a considerá-los como seus superiores. Veio assim a divisão da sociedade em duas classes: os superiores e os inferiores, aqueles que mandam e aqueles que obedecem. Daí, por consequência, a aristocracia de nascimento, que se torna tão poderosa e tão preponderante quanto a da força, porque, se ela não tinha força por si mesma como nos primeiros tempos em que era preciso sacrificar a sua pessoa, ela dispunha de uma força mercenária. Tendo todo o poder, ela naturalmente dava a si mesma privilégios.

Para a conservação desses privilégios, estes deviam ter o prestígio da legalidade; e essa aristocracia fez as leis em seu proveito, o que lhe era fácil, uma vez que só ela as fazia. Isso nem sempre era suficiente; deu-se às leis então o prestígio do direito divino, para torná-las respeitáveis e invioláveis. Para assegurar o respeito da parte da classe submissa que se tornava mais numerosa e mais difícil de contentar, mesmo pela força, havia um único meio: impedi-la de ver claro, quer dizer, mantê-la na ignorância.

Se a classe superior tivesse podido nutrir a classe inferior sem esta nada fazer, tê-la-ia facilmente dominado por muito tempo ainda. Mas como esta era obrigada a trabalhar para viver, e trabalhar tanto mais quanto era oprimida, disso resultou que a necessidade de encontrar incessantemente novos recursos, de lutar contra uma concorrência invasora, de procurar novos mercados para os produtos, desenvolveu a sua inteligência e ela se esclareceu pelas mesmas causas de que se serviam para sujeitá-la. Não se vê aí o dedo da providência?

A classe submissa, então, viu com clareza; viu a pouca consistência do prestígio que opunham a ela e, sentindo-se forte pelo número, aboliu os privilégios e proclamou a igualdade diante da lei. Esse princípio marcou em certos povos o fim do reino da aristocracia de nascimento, que passou a ser apenas nominal e honorífica, uma vez que ela não confere mais direitos legais.

Então, levantou-se um novo poder, o do dinheiro, porque com dinheiro se dispõe de homens e de coisas. Era um sol nascente diante do qual se inclinavam, como outrora se inclinaram diante de um brasão, e mais baixo ainda. O que não se concedia mais ao título concedia-se à fortuna, e a fortuna teve igualmente seus privilégios legais. Mas então percebeu-se que, se para fazer fortuna é preciso uma dose de inteligência, não era preciso tanto para herdá-la; e que os filhos são frequentemente mais hábeis para consumir do que para ganhar; além disso, que os próprios meios de se enriquecer não são sempre irrepreensíveis. Disso resultou que o dinheiro perdeu pouco a pouco seu prestígio moral e que essa força tende a ser substituída por um outro poder, uma outra aristocracia mais justa: a da inteligência, diante da qual todos podem se inclinar sem se aviltar, porque ela pertence ao pobre como ao rico.

Será essa a última? Ela é a mais alta expressão da humanidade civilizada? Não.

A inteligência não é sempre uma garantia de moralidade, e o homem mais inteligente pode fazer um muito mau emprego de suas faculdades. Por outro lado, a moralidade sozinha pode frequentemente ser incapaz. A união dessas duas faculdades, inteligência e moralidade, é, pois, necessária para criar uma preponderância legítima, à qual a massa se submeterá cegamente, porque lhe inspirará toda a confiança por suas luzes e por sua justiça. Esta será a última aristocracia, a que será a consequência, ou antes o sinal do advento do reino do bem sobre a terra. Ela chegará muito naturalmente pela força das coisas. Quando os homens dessa categoria forem numerosos o bastante para formar uma maioria imponente, será a esses que a massa confiará seus interesses.

Como vimos, todas as aristocracias têm a sua razão de ser; nascem do estado da humanidade. Ocorrerá o mesmo com aquela que se tornar uma necessidade. Todas fizeram ou farão seu tempo segundo os países, porque nenhuma teve por base o princípio moral. Só esse princípio pode constituir uma supremacia durável, porque será animada dos sentimentos de justiça e de caridade; supremacia que nós chamaremos: aristocracia intelecto-moral.

Um tal estado de coisas é possível com o egoísmo, o orgulho, a cobiça que reinam soberanos sobre a terra? A isso responderemos com firmeza: sim, não somente é possível, mas chegará, porque é inevitável.

Hoje, a inteligência domina; ela é soberana, ninguém poderia contestar; e isso é tão verdadeiro que se vê o homem do povo chegar aos primeiros cargos. Essa aristocracia não é mais justa, mais lógica, mais racional do que a da força brutal, de nascimento ou do dinheiro? Por que, então, seria impossível lhe juntar a moralidade? — Porque, dizem os pessimistas, o mal domina sobre a terra. — Está dito que o bem não o dominará jamais? Os costumes e, por consequência, as instituições sociais não valem cem vezes mais hoje do que na Idade Média? Cada século não foi marcado por um progresso? Por que, então, a humanidade se deteria quando ela tem ainda tanto a fazer? Os homens, por um instinto natural, procuram seu bem-estar; se não o encontram completo no reino da inteligência, irão procurá-lo em outro lugar. E onde poderão encontrá-lo, se não for no reino da moralidade? Para isso, é preciso que a moralidade domine numericamente. Há muito a fazer, é incontestável, mas, ainda uma vez, haveria tola presunção em dizer que a humanidade chegou ao seu apogeu, quando é vista a marchar sem cessar na via do progresso.

Dizemos primeiro que os bons sobre a terra não são absolutamente tão raros quanto se crê. Os maus são numerosos, isso infelizmente é verdade; mas o que os faz parecer ainda mais numerosos é que são mais audazes e sentem que essa audácia mesma lhes é necessária para triunfarem. E, todavia, compreendem de tal modo a preponderância do bem que, não podendo praticá-lo, tomam dele a máscara.

Os bons, ao contrário, não exibem as suas boas qualidades, não se colocam em evidência e eis porque parecem tão pouco numerosos. Mas sondem os atos íntimos, realizados sem ostentação e, em todas as classes da sociedade, encontrarão ainda naturezas boas e louváveis o bastante para tranquilizar o coração e não desesperar da humanidade. E depois, é preciso dizer também, entre os maus, há muitos que o são apenas por arrastamento e que se tornariam bons se fossem submetidos a uma boa influência. Admitamos que, em 100 indivíduos, há 25 bons e 75 maus; destes últimos, há 50 deles que o são por fraqueza e que seriam bons se tivessem bons exemplos sob os olhos e, sobretudo, se houvessem tido uma boa direção desde a infância; e que, dos 25 francamente maus, nem todos são incorrigíveis.

No estado atual das coisas, os maus estão em maioria e fazem a lei para os bons. Suponhamos que uma circunstância leve à conversão dos 50 medianos: os bons estarão em maioria e, por sua vez, farão a lei; dos 25 outros francamente maus, vários sofrerão a influência daqueles e restarão apenas alguns incorrigíveis, sem preponderância.

Tomemos um exemplo para comparação: há povos entre os quais o assassinato e o roubo são o estado normal; o bem ali é exceção. Entre os povos mais avançados e os mais bem governados da Europa, o crime é a exceção; perseguido pelas leis, ele é sem influência sobre a sociedade. O que ali domina ainda são os vícios de caráter: o orgulho, o egoísmo, a cobiça e seu cortejo.

Por que, então, progredindo esses povos, os vícios ali não se tornariam a exceção, como são hoje os crimes, ao passo que os povos inferiores alcançariam novo nível? Negar a possibilidade dessa marcha ascendente seria negar o progresso. (...)

    

—  ALLAN KARDEC

"Aristocracias".

Obras Póstumas, parte I.