Tomás de Aquino

A alma não é corpórea e subsiste ao corpo

Santo Tomás de Aquino (1225-1274)

Extraído de:

Suma Teológica, part. I, q. 75, de Tomás de Aquino

ARTIGO 1

A alma é ou não é corpo?

Objeções pelas quais parece que a alma é corpo:

1. A alma [do latim.: anima] é o motor do corpo. Mas é um motor imóvel. Bem, parece que nada pode mover sem ser movido, porque nada transmite o que não tem; como, por exemplo, o que não aquece não é quente. Ora, se algo é motor imóvel, causa o movimento eterno, que seria o movimento que teria, como demonstra [Aristóteles] em Física, VIII; e este não é o movimento animal que é causado pela alma. Portanto, a alma é motor movido. Mas todo motor movido é corpo. Logo, a alma é corpo.

2. Ademais. Todo conhecimento se faz por alguma semelhança. Mas não pode haver semelhança entre o corpo e o incorpóreo. Assim, se a alma não fosse corpo, não poderia conhecer o corpóreo.

3. Ainda mais. É necessário que, entre o motor e o movido, haja algum contato. Mas não existe outro contato que o dos corpos. Assim, como a alma move o corpo, parece que a alma é corpo.

Ao contrário, está o que diz Agostinho em Da Trindade, VI: “A alma é chamada simples porque sua massa não se difunde pelo espaço local”.

Solução. Deve-se dizer: Para analisar a natureza da alma, é necessário ter presente o pressuposto segundo o qual se diz que a alma é o primeiro princípio vital naquilo que vive entre nós, pois chamamos animados aos viventes, e inanimados aos não viventes. A vida se manifesta, sobretudo, em duas ações: a do conhecimento e a do movimento. O princípio de tais ações foi colocado pelos antigos filósofos, que eram incapazes de ir além da fantasia, em algum corpo, já que diziam que só os corpos eram algo, e o que não é corpo é nada. Assim, sustentavam que a alma era algum corpo.

Ainda que a falsidade desta opinião possa ser demonstrada com muitas razões, entretanto, tão só mencionaremos uma pela qual, de um modo mais geral e seguro, resulta evidente que a alma não é corpo. É evidente que a alma não é o princípio de qualquer operação vital. Pois, se fosse assim, o olho seria alma, já que é princípio de visão. O mesmo se pode dizer dos outros instrumentos da alma. Mas dizemos que a alma é o primeiro princípio vital; ainda que algum corpo possa ser um determinado princípio vital, como no animal seu princípio vital é o coração. No entanto, um determinado corpo não pode ser o primeiro princípio vital. Já que é evidente que ser princípio vital, ou ser vivente, não corresponde ao corpo por ser corpo. Se fosse assim, todo corpo seria vivente ou princípio vital. Assim, a algum corpo corresponde ser vivente ou princípio vital enquanto é tal corpo. Mas é tal corpo em ato pela presença de algum princípio que constitui seu ato. Portanto, a alma, primeiro princípio vital, não é corpo, mas o ato do corpo. Sucede como com o calor, princípio de aquecimento, que não é corpo, mas um determinado ato do corpo.

Resposta às objeções: 1. À primeira, deve-se dizer: Como tudo o que se move é movido por outro, e este encadeamento não pode se levar até o infinito, é necessário dizer que nem todo motor é móvel. Pois, como mover-se é passar da potência ao ato, o motor dá o que tem ao móvel, enquanto faz com que o mesmo esteja em ato. Mas, como fica demonstrado [por Aristóteles] em Física, VIII, há algum motor absolutamente imóvel que não se move nem substancial nem acidentalmente. E tal motor provoca um movimento sempre uniforme. Há outro motor que não se move substancial, mas acidentalmente. Por isso, seu movimento não é uniforme. Este tipo de motor é a alma. E há outro motor que se move substancialmente: é o corpo. Como os antigos naturalistas acreditavam só na existência dos corpos, sustentaram que todo motor se move, e que a alma é corpo e que se move substancialmente.

2. À segunda, deve-se dizer: Não é necessário que a semelhança do conhecido esteja em ato na natureza de quem conhece. Mas, se alguém conhece primeiro em potência e depois em ato, não é necessário que a semelhança do conhecido esteja em ato na natureza de quem conhece, mas que esteja só em potência. Sucede como com a cor, que não está na pupila em ato, mas só em potência. Portanto, não é necessário que a semelhança do corpóreo esteja em ato na natureza da alma, mas é necessário que a alma esteja em potência para tais semelhanças. Como os antigos naturalistas desconheciam a distinção entre ato e potência, sustentavam que a alma era corpo por conhecer o corpóreo. E, por conhecer todo o corpóreo, diziam que a alma era composta a partir dos princípios de todos os corpos.

3. À terceira, deve-se dizer: Há dois tipos de contato: físico e espiritual. O primeiro não se dá mais que quando um corpo toca outro corpo. O segundo permite que um corpo seja tocado por algo incorpóreo que impulsiona o corpo.

 

ARTIGO 2

A alma humana é ou não é algo subsistente?

Objeções pelas quais parece que a alma humana não é algo subsistente:

1. O que é subsistente é algo concreto. Ora, a alma não é algo concreto, o que é concreto é o composto resultante a partir da alma e do corpo. Logo, a alma não é algo subsistente.

2. Mais ainda. Tudo o que é subsistente se pode dizer que opera. Mas não se diz que a alma opera, porque, como [Aristóteles] assinala em Da Alma, I, “dizer que a alma sente ou entende é como dizer que tece ou constrói algo”. Logo, a alma não é algo subsistente.

3. Ademais. Se a alma fosse algo subsistente, alguma de suas operações se daria sem o corpo. Mas nenhuma de suas operações se dá sem o corpo, nem sequer o entendimento, porque entender não se dá sem imagens, e estas não se dão sem corpo. Logo, a alma não é algo subsistente.

Ao contrário, está o que diz Agostinho em Da Trindade, X:

Quem compreende que a natureza da mente é substância incorpórea compreenderá também que se equivocam os que dizem que é corpórea, pois estes aderem a ela tudo aquilo sem o qual não veem possível uma natureza, quer dizer, as imagens dos corpos.

Portanto, a natureza da mente humana não só é incorpórea, mas também é substância, quer dizer, algo subsistente.

Solução. Deve-se dizer: É necessário afirmar que o princípio da operação intelectual, chamado alma humana, é incorpóreo e subsistente. É evidente que o homem, pelo entendimento, pode conhecer as naturezas de todos os corpos. Para conhecer algo, é necessário que na própria natureza não esteja contido nada daquilo que se vai conhecer, pois tudo aquilo que está contido naturalmente impediria o conhecimento. Exemplo: a língua de um enfermo, biliosa e amarga, não percebe o doce, já que tudo lhe parece amargo. Assim, se o princípio intelectual contivesse a natureza de algo corpóreo, não poderia conhecer todos os corpos. Todo corpo tem uma natureza determinada. Assim, pois, é impossível que o princípio intelectual seja o corpo.

De maneira similar, é impossível que entenda através do órgão corporal, porque também a natureza daquele órgão lhe impediria o conhecimento de todo o corpóreo. Exemplo: se uma determinada cor está não só na pupila, mas também num vaso de cristal, todo o líquido que contenha será visto da mesma cor.

Assim, pois, o mesmo princípio intelectual, chamado mente ou entendimento, tem uma operação substancial independente do corpo. E nada opera substancialmente se não é subsistente. Pois não opera mais que o ser em ato; por isso mesmo, algo opera tal como é. Assim, não dizemos que é o calor o que aquece, e sim o quente.

Deve-se concluir, portanto, que a alma humana, chamada entendimento ou mente, é algo incorpóreo e subsistente.

Resposta às objeções: 1. À primeira, deve-se dizer: Algo concreto pode ter dois sentidos: 1) o de qualquer coisa subsistente; 2) o de algo subsistente com uma natureza completa de alguma espécie. O primeiro exclui a adesão de um acidente e da forma material. O segundo exclui a imperfeição que implica ser parte. Por isso, a mão pode ser chamada algo concreto no primeiro sentido, mas não no segundo. Portanto, a alma humana, ao ser parte da espécie humana, pode ser chamada algo concreto subsistente no primeiro sentido, mas não no segundo. No segundo sentido, é chamado algo concreto o composto resultante a partir da alma e do corpo.

2. À segunda, deve-se dizer: Com aquelas palavras, Aristóteles não está expressando sua opinião, mas a daqueles que sustentavam que entender é mover. O contexto esclarece isso.

Ou também se pode dizer que operar por si mesmo corresponde a existir por si mesmo. Pode-se dizer que algo existe por si mesmo quando ele não é aderido como acidente ou como forma material, ou se é parte. Mas, propriamente, diz-se que subsiste por si mesmo aquilo que não está aderido segundo mencionado, e que tampouco é parte. Neste sentido, o olho e a mão não podem ser chamados subsistentes por si mesmos, e, consequentemente, tampouco se pode dizer que operam por si mesmos. Daí que as operações das partes sejam atribuídas ao todo através das partes. Pois dizemos que o homem vê pelo olho, que apalpa pela mão, num sentido distinto ao que implica dizer que o aquecido aquece pelo calor, porque, propriamente falando, de nenhuma maneira o calor aquece. Assim, pois, pode-se dizer que a alma entende, como se diz que o olho vê. Mas tem um maior sentido e propriedade dizer: o homem entende pela alma.

3. À terceira, deve-se dizer: O corpo é necessário para a ação do entendimento, mas não como o órgão com o qual se realiza tal ação, e sim por razão do objeto. Pois a imagem se relaciona com o entendimento assim como a cor com a visão. E necessitar do corpo não exclui que o entendimento seja subsistente; do contrário, o animal não seria algo, pois necessita dos sentidos externos para sentir.

—  Tomás de Aquino

Suma Teológica, parte I, q. 75.

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