Friedrich Nietzsche

Crítica ao "frenesi no trabalho" da sociedade moderna

Friedrich Nietzsche (1844-1900)

Extraído de:

A Gaia Ciência, aforismo 329, de F. Nietzsche.

ÓCIOS  E  OCIOSIDADE

Existe uma selvageria própria de pele-vermelha na maneira como os americanos aspiram ao ouro; e o seu frenesi no trabalho – o verdadeiro vício do novo mundo – começa já a barbarizar, por contágio, a velha Europa, disseminando uma estranha ausência de espírito.

As pessoas têm agora vergonha do descanso; quase sentiriam um remorso com a reflexão mais demorada. Pensam de relógio na mão, mesmo quando estão a almoçar, com um olho no boletim da bolsa. Vivem permanentemente como alguém que tem medo de “perder” alguma coisa.

“Mais vale agir do que não fazer nada”, eis ainda um desses princípios de carregar pela boca que correm o risco de estrangular qualquer cultura e qualquer gosto superior. Esse frenesi no trabalho deturpa os refinados, de todos os modos. Pior, enterra desta maneira o próprio sentimento, o senso melódico do movimento: as pessoas se tornam cegas e surdas a todas as suas harmonias.

A prova está na pesada precisão exigida agora em todas as situações em que o homem quer estar sinceramente diante do seu semelhante, nas suas relações com amigos, mulheres, pais, filhos, patrões, alunos, guias e príncipes: ele tem falta de tempo, tem falta de força para consagrar à cerimônia, aos meneios da cortesia, ao espírito da conversa e ao ócio de uma maneira geral. Pois a vida, tornada caça ao lucro, obriga o espírito a se consumir até o esgotamento, sem repouso, no jogo de dissimular, de iludir ou de prevenir o adversário; agora, a verdadeira virtude consiste em fazer uma coisa mais depressa do que um outro.

Dessa forma, só em raras horas é que as pessoas se podem permitir ser sinceras: e, nessas horas, estão tão cansadas que aspiram não só a “deixar correr”, mas também a se estender pesadamente, a se deitar. É de acordo com essa tendência que são escritas as correspondências agora; e o estilo e o espírito das cartas serão sempre o verdadeiro “sinal do tempo”.

Se ainda se encontra prazer na sociedade e nas artes, é um prazer como aquele que tinham os escravos mortos de trabalho. Oh! Como se alegram por pouca coisa essas pessoas do momento, com ou sem cultura; como são modestas nas suas “alegrias”! Que vergonha a suspeita que atraem cada vez mais severamente sobre si mesmas!

Todos os dias, o trabalho domina mais e mais a consciência em seu proveito: o gosto da alegria já se chama “necessidade de descanso” e começa a ter vergonha de si próprio.

“Temos de fazer isso em função da saúde”, justificam as pessoas que são flagradas numa volta pelo campo. Nesse ritmo, as coisas poderão ir, rapidamente, tão longe que ninguém mais ousará ceder ao desejo de passear em companhia de pensamentos e de amigos, sem desprezar a si mesmo e sem sentir remorso ao gosto pela vida contemplativa.

Pois, antigamente, o costume era inverso: era o trabalho que sofria de má consciência. Um homem bem nascido escondia o seu trabalho, se a necessidade o constrangia a fazer um. O escravo trabalhava esmagado pelo sentimento de fazer alguma coisa desprezível: “fazer” já era por si só desprezível. “Somente há nobreza e honra no otium [ócio] e no bellum [guerra]”, assim falava o preconceito antigo!

 

FRIEDRICH NIETZSCHE

“Ócios e ociosidade”.

A Gaia Ciência, aforismo 329.