Gabriel Delanne

A existência da alma perante a ciência

Gabriel Delanne (1857-1924) 

Engenheiro, conferencista e escritor francês

Vice-Presidente da Sociedade Francesa de Estudo dos Fenômenos Psíquicos

Presidente da Federação Nacional Espírita da França

Extraído de:

O Espiritismo Perante a Ciência, de Gabriel Delanne

Trad. Carlos Imbassahy

TEMOS ALMA?

Temos alma? Tal é a questão que nos propomos estu­dar neste capítulo. Parece, à primeira vista, que este pro­blema pode ser facilmente resolvido, porque desde a mais remota Antiguidade as pesquisas dos filósofos tiveram por objeto o homem, sua natureza física e intelectual. Poder­-se-ia crer que chegaram a um resultado? Pois bem, confor­me alguns sábios modernos, não é assim.

Os antigos, que tinham tomado por lema a célebre máxima: “conhece-te a ti mesmo”, não se conheciam. Eles imaginavam que o homem fosse composto de dois elementos distintos: a alma e o corpo; basearam, nessa dualidade, todas as deduções da filosofia, e eis que, em nossa época, uma escola nova acha que eles se enganaram; que em nós tudo é matéria; que a antiga entidade qualifi­cada com o nome de alma não existe; e que é preciso abjurar esse velho erro, filho da ignorância e da supers­tição.

Antes de nos submetermos passivamente a essa resolução, examinemos se os argumentos fornecidos pelos materia­listas têm, realmente, o valor que lhes querem atribuir. Procuraremos acompanhá-los no próprio terreno, e tentaremos discriminar o que de verdadeiro e de falso existe em suas teorias. Anteporemos, em relação aos seus traba­lhos, as conclusões imparciais da Ciência e da especulação modernas. Dessa comparação nascerá, assim o esperamos, a certeza de que existe em nós um princípio independente da matéria, que dirige o corpo e a que chamamos alma.

Àqueles que duvidarem da utilidade, para o homem, do princípio espiritual, responderemos: não há assunto mais digno de nossa atenção, porque nada nos interessa mais do que saber quem somos, para onde vamos e de onde viemos.

Tais questões se impõem ao espírito, após os doloro­sos acontecimentos aos quais ninguém está isento neste mundo.

A alma, iludida e mutilada, recolhe-se a si própria, depois dos combates da existência, e indaga por que o homem está na Terra, se seu destino é o de sofrer sempre?

Quando se vê o vício triunfante ostentar o seu esplen­dor, a quem não ocorre a ideia de que os sentimentos de justiça e de honestidade são palavras vãs, sim, afinal de contas, não é a satisfação dos sentidos o fim supremo ao qual aspiram todos os seres?

Quem de nós, tendo ardentemente perseguido a reali­zação de um sonho, não sentiu o coração vazio e a alma desenganada, depois de o haver atingido? Quem de nós não indagou, quando o turbilhão da existência lhe tenha deixado um instante de repouso: Por que estamos na Terra e qual será o nosso futuro?

O sentimento que nos impele a essa pesquisa é deter­minado pela razão, que quer, imperiosamente, conhecer o porquê e o como dos acontecimentos que se realizam em torno de nós. É ela que nos põe no coração o desejo de aprofundar o mistério de nossa existência. Se em meio ao ruído das cidades essa necessidade se impõe algumas vezes ao nosso espírito, com muito maior força, ainda, ela se apossa de nós, quando, ao deixar os centros populosos, nos encontramos face a face com as naturezas eternas, imutáveis. Ao contemplar os vastos horizontes de imensa paisagem, os céus profundos, semeados de estrelas, verifica­mos a nossa pequenez no conjunto da criação. E ao lembrar que os mesmos lugares, em que agora nos encontramos, foram pisados por inumeráveis legiões de homens, que não deixaram outros traços além do pó de seus ossos, perguntamos, com angústia, por que esses homens viveram, amaram e sofreram?

Quaisquer que sejam as nossas ocupações, quaisquer que possam ser os nossos estudos, somos levados invenci­velmente a nos ocupar de nosso destino, sentimos a neces­sidade de nos conhecer e de saber em virtude de que leis nós existimos.

Seremos o joguete das forças cegas da natureza? Nos­sa raça, que apareceu na Terra depois de tantas outras, não será mais que um anel dessa imensa cadeia de seres que se deve suceder em sua superfície? Ou efetivamente será a plena eclosão da força vital imanente de nosso globo?

A morte, enfim, dissolverá os elementos constitutivos do nosso corpo para os mergulhar de novo no cadinho universal, ou conservaremos, depois dessa transformação, uma individualidade para amar e recordar?

Todos esses pontos de interrogação se erguem diante de nós nas horas de dúvida e de reflexão; eles prendem o espírito na rede de ideias que suscitam e obrigam o mais indiferente dos homens a indagar: Existe a alma?

  

UM GOLPE DE VISTA SOBRE A HISTÓRIA DA FILOSOFIA 

Os mais antigos filósofos de que há lembrança na história acreditavam que éramos duplos, e que em nós residia um princípio inteligente, diretor da máquina huma­na; eles, porém, não aprofundaram as condições do seu funcionamento. As vistas gerais que possuíam eram bastan­te vagas, porque queriam descobrir a causa primária dos fenômenos do universo.

Em suas pesquisas, só se apoiavam em hipóteses; por isso a teoria dos quatro elementos, que resulta dos seus trabalhos, foi abandonada. Mas, fato digno de atenção é o de haver Leucipo admitido, para explicar o mundo sensível, três coisas: o vácuo, os átomos e o movimento, e vemos, hoje, essas deduções, em grande parte, adotadas pela Ciência contemporânea.

Com Sócrates apareceu o estudo metódico do homem: esse grande espírito estabeleceu a existência da alma e se baseou em razões de extrema lógica. Platão, seu discípu­lo, levou mais longe ainda essa crença. O filósofo da Academia admitia, a exemplo de Pitágoras, um mundo distinto dos seres materiais: “o mundo das ideias”. Segun­do Platão, a alma conhece as ideias pela razão; ela as contemplou em uma vida anterior à existência atual.

Eis uma novidade: até então, limitavam-se todos a crer que a alma era feita ao mesmo tempo em que o corpo. A teoria platônica ensinava que ela vive anteriormente: veremos adiante como são justas as suas deduções. Aristóteles, apelidado o príncipe dos filósofos, é tão espiritualista como seus predecessores e cumpre reconhecer que toda a Antiguidade acreditou na existência da alma, como em sua imortalidade. As lutas entre as diferentes escolas provinham, antes, das divergências na explicação dos fenômenos do entendimento, que da alma em si mesma.

Foi assim que se criou a facção sensualista, cujos representantes mais ilustres foram Leucipo e Epicuro. Este último fazia derivar todos os conhecimentos da sensa­ção. Admitia a alma, mas a supunha formada de átomos e, por consequência, incapaz de sobreviver à morte do corpo. Era, pois, em realidade, um materialista, e se achava em oposição formal com os idealistas representados por Sócrates, Platão e Aristóteles.

Zenão pode ser filiado a essa escola, mas, diversa­mente de Epicuro, separava a sensação das ideias gerais, e os sentidos, da razão.

Sem ir tão longe quanto os cínicos, os estóicos consi­deravam indiferentemente os prazeres e as penas. Julgavam imorais todas as ações que se afastavam da lei e do dever. Esta severidade de princípios foi, durante muitos séculos, a força da humanidade e o único dique contraposto às paixões desenfreadas da Antiguidade pagã.

A escola neoplatônica de Alexandria forneceu lumino­sos gênios, tais como Orígenes, Porfírio, Jâmblico, que souberam elevar-se até as mais sublimes concepções da filosofia.

Eles admitem a preexistência da alma e a necessidade de seu regresso à Terra.

Achavam o homem incapaz de adquirir, de uma só vez, a soma dos conhecimentos que o elevasse a uma condição superior, e defenderam essa nobre doutrina, com coragem e audácia sem iguais, contra os sectários do cris­tianismo nascente.

Proclo foi o último reflexo desse foco intelectual, e a humanidade ficou, durante longos séculos, amortalhada sob as espessas trevas da Idade Média.

Nessa época de crença, não se duvidava da alma nem da imortalidade, mas os dogmas da Igreja, que se adapta­vam maravilhosamente ao espírito bárbaro das nações atrasadas, tinham-se tornado impotentes em face do des­pertar das consciências.

A antiga filosofia se apoiava na razão; a teologia de Santo Tomás de Aquino só repousava na fé; e as tentativas de libertação, que resultavam do divórcio entre a fé e a razão, eram cruelmente punidas.

Sendo o progresso uma lei do nosso globo, devia chegar o momento em que se efetuaria o acordar das inteli­gências; foi o que se deu com Bacon. Este sábio, fatigado com as disputas dos escolásticos que se esgotavam em discussões estéreis, atraiu as atenções para o estudo da natureza. Criou-se com ele a ciência indutiva. O sábio recomendou, antes de tudo, a ordem e a classificação nas pesquisas: quis que a filosofia saísse de seus antigos limi­tes; abriu um campo novo às investigações e sugeriu a observação como mais seguro meio de chegar à verdade.

Morto Bacon, revelou-se, na França, Descartes. Este profundo pensador repeliu todos os dados antigos, para adquirir conhecimentos novos por meio de um método que descobriu. Partindo do princípio: eu penso, logo exis­to, Descartes estabelecia a existência e a espiritualidade da alma; porque, dizia ele, se se pode supor que o corpo não exista, é impossível negar o pensamento, que se afirma por si próprio, cuja existência se verifica à medida que ele se exerce. Em uma palavra, somos algo que ouve, que concebe, que afirma, que nega, que quer ou não quer.

Nestas condições, a faculdade de pensar pertence ao indiví­duo, abstração feita dos órgãos do corpo.

O método preconizado por esse poderoso renovador inspirou uma plêiade de grandes homens, entre os quais podemos citar: Bossuet, Fénelon, Malebranche e Spinoza. Ao mesmo tempo, o impulso baconiano formava Hobbes, Gassendi e Locke.

Segundo Hobbes, não existe outra realidade além do corpo, outra origem de nossas ideias além da sensação, outro fim na natureza além da satisfação dos sentidos; seu modo de ver também levava diretamente à apologia do despotismo como forma social.

Gassendi foi um discípulo de Epicuro, de quem reno­vou as doutrinas; mas, o mais célebre filósofo dessa época é Locke, que pode ser encarado, com justa razão, como fundador da Psicologia. Ele combateu o sistema cartesiano das ideias inatas e imprimiu, na Inglaterra e na França, grande impulso aos estudos filosóficos.

Quase na mesma época viveram Bossuet e Fénelon, que escreveram admiráveis livros sobre Deus e a alma. Em tais obras, cheias da lógica mais sã, podemo-nos con­vencer da existência dessas grandes verdades tão bem pos­tas em relevo por aqueles eminentes espíritos. A profun­deza dos pensamentos é realçada, ainda, por uma lingua­gem admirável e nunca o espírito francês ostentou maior clareza, elegância e força como nesses livros imortais.

Leibniz, a mais vasta inteligência produzida nos tem­pos modernos, colocou-se entre as duas escolas que se disputavam o império dos espíritos, entre Locke e Descar­tes. Refutou o que ambos tinham de absoluto; mas, com sua morte, seu sistema não tardou a ser abandonado, mes­mo na Alemanha, onde havia inicialmente sido acolhido com simpatia.

Na França, os enciclopedistas fizeram triunfar as ideias de Locke; elas conduziram, com Condillac, Helvetius e D’Holbach a um materialismo absoluto; esse materia­lismo é a consequência inevitável das teorias, que, reduzin­do o homem à pura sensação, não podem assinalar-lhe outro fim que não o da felicidade material.

Não tardou a verificar-se quanto esse método, chama­do empirismo, levava a tristes resultados. Sentiu-se, impe­riosamente, a necessidade de uma reforma e ela foi realiza­da por Thomas Reid, na Escócia, e Immanuel Kant, na Alemanha.

Na França, a escola eclética admitiu o racionalismo de Descartes e brilhou com vivo clarão sustentando a tese espiritualista.

As vozes eloquentes de Jouffroy, Cousin, Villemain demonstraram a existência e a imaterialidade da alma, com tal evidência, que lhes coube a vitória no terreno filosófico. Mas a escola materialista operou uma alteração de frente; deixando o domínio da especulação, desceu ao estudo do corpo humano e pretendeu demonstrar que, em nós, o que pensa, o que sente, o que ama, não é uma entidade chamada alma, senão o organismo humano, a matéria, que só ela pode sentir e perceber.

Devemos confessar que, para a massa dos leitores, é difícil tomar pé, em meio às contradições, aos sistemas e às utopias pregadas pelos maiores espíritos. Cansam as pesquisas metafísicas que se agitam no vazio; exige-se o retorno ao estudo meticuloso dos fatos: daí o êxito dos positivistas.

É preciso, entretanto, colocar nitidamente a questão. A fim de que o equívoco não seja mais possível, vamos fazê-lo o mais claramente que pudermos.

Só podem existir duas suposições quanto à natureza do princípio pensante: matéria ou espírito; uma sujeita à destruição, o outro imperecível.

Todos os meios-termos, por mais sutis que sejam, epicurismo, spinozismo, panteísmo, sensualismo, idealis­mo, espiritualismo vêm se confundir nestas duas opiniões.

Que importa — diz Foissac — que os epicuristas admi­tam uma alma racional formada dos átomos mais polidos e mais perfeitos, se essa alma morre com os órgãos, ou se, pelo menos, os átomos que a formam se desagregam e voltam ao estado elementar? Que importa que Spinoza e os panteístas reconheçam que um Deus vive em mim, que minha alma é uma parcela do grande todo? Não conce­bo a alma senão com o caráter de unidade indivisível e a conservação da individualidade do eu. Se minha alma, depois de ter sentido, sofrido, pensado, amado, esperado, vai-se perder nesse oceano fabuloso chamado a Alma do Mundo, o eu se dissolve e desaparece: isto é a extinção e a morte de minhas afeições, de minhas recordações, de minhas esperanças, é o abismo das consolações desta vida e o verdadeiro nada da alma.

Assim, a alternativa é esta: ou, com a morte terrestre, todo o ser desaparece e se desagrega, ou dele resta uma emanação, uma individualidade que conserva o que consti­tuía a personalidade, isto é, a memória, e, como conse­quência, a responsabilidade.

Pois bem, restringindo-nos ao terreno dos fatos, va­mos passar em revista as objeções que se nos opõem e demonstrar que a alma é uma realidade que se afirma pelo estudo dos fenômenos do pensamento; que jamais se a poderia confundir com o corpo, que ela domina; e que, quanto mais se penetra nas profundezas da Fisiologia, tanto mais se revela, luminosa e clara, aos olhos do pesquisador imparcial, a existência de um princípio pensante. 

 

AS TEORIAS MATERIALISTAS 

Os mais ilustres representantes das teorias materia­listas são, na Alemanha, Moleschott e Büchner. Eles reuni­ram em suas obras a maior parte dos argumentos que mili­tam em seu favor. Vamos examinar, primeiro, os sistemas que eles preconizam. Em outro capítulo, ocupar­-nos-emos com uma segunda categoria de adversários: os positivistas.

Compulsando os anais da Fisiologia, ou seja, os fenômenos da vida, é que os sábios acima citados esperam provar que estão certos. Eles examinam minuciosamente todos os elementos que entram na composição dos corpos organizados, estabelecem com autoridade a grande lei da equivalência das forças que se traduz nas ações vitais, medem, pesam, analisam com talento excepcional todas as ações físicas e químicas que se verificam no corpo humano. Mas, se deixando as ciências exatas, aventuram-se no domínio filosófico, bem se lhes pode recusar o tes­temunho.

É que eles tentam, com efeito, um empreendimento impossí­vel. Querem banir dos conhecimentos humanos todos os fatos que não caem diretamente sob os sentidos.

Na pressa de repelir ideias antigas, não refletem que admitem causas tão estranhas, entidades científicas tão bizarras como as dos espiritualistas.

Não vemos, em primeiro lugar, esses sábios que rejei­tam a alma, porque ela é imaterial, admitirem a existência de um agente imponderável, invisível e intangível que se chama vida? Que é, com efeito, a vida? É, responde Longet, o conjunto das funções que distinguem os corpos organizados dos corpos inorgânicos. Não avançamos nada sobre o conhecimento da vida aceitando essa definição, porque ignoramos sempre qual é a causa dessas funções. Elas não se executam senão em virtude de uma força que age constantemente, que se conhece por seus efeitos, mas cuja natureza íntima permanece sempre um mistério.

Que força é esta que anima a matéria, que dirige as operações tão numerosas e tão complicadas que se passam no interior do corpo?

Nossas máquinas, ainda tão rudimentares, exigem, se as comparamos ao mais simples vegetal, um cuidado constante para o bom funcionamento de cada uma de suas partes, uma vigilância contínua para remediar os acidentes que se podem produzir. Na natureza, ao contrário, tudo se executa maravilhosamente. As ações mais diversas, as mais dessemelhantes se combinam para manter essa harmo­nia que constitui o ser em bom equilíbrio orgânico.

Que é o que designa a cada substância o posto que ela deve ocupar no organismo? O que repara essa máquina quando ela vem a se estragar? Em uma palavra, que poder é este de que resulta a vida?

Para responder a essas perguntas, os fisiologistas ima­ginaram uma força, que denominam princípio vital. Deseja­mos muito acreditar nessa força, mas faremos observar que esse princípio é invisível, intangível, imponderável, que não acusa sua presença senão pelos efeitos que mani­festa, e que os espiritualistas estão nas mesmas condições quando falam da alma. Se os materialistas admitem a vida e nenhum deles a pode negar, nenhuma razão têm para repelir a existência do princípio pensante do homem.

Moleschott publicou uma obra intitulada A Circula­ção da Vida, na qual expõe a nova forma das crenças materialistas. Vamos resumi-la rapidamente, para que se veja como são desprovidas de justeza suas alegações e por que sofismas consegue dar às suas deduções uma aparência de lógica.

Estabelece como princípio que não podemos verifi­car em nós e em torno de nós senão a matéria; que nada existe sem ela; que o poder criador reside em seu seio, e que pelo seu estudo é que o filósofo pode tudo explicar.

Discorre, complacentemente, sobre as provas que a ciência forneceu a respeito dessa grande frase de Lavoi­sier: nada se cria, nada se perde. A balança demonstra que, em suas transformações, os corpos se decompõem, mas os átomos que os constituem podem reencontrar-se integralmente em outras combinações. Ou, dito por outra forma, não se cria matéria.

O corpo do homem rejeita o que nutre a planta; a planta transforma o ar, que nutre o animal; o animal nutre o homem, e os seus resíduos, levados pelo ar à superfície da terra vegetal, renovam e entretêm a vida das plantas. Todos os mundos: vegetais, minerais, animais, se unem, se penetram, se confundem e transmitem a vida por um movimento que é dado ao homem verificar e compreender. Eis por que diz ele a “circulação da matéria é a Alma do Mundo”.

Esta matéria que nos aparece sob aspectos tão diver­sos, que se transforma em tão múltiplos avatares, é, entre­tanto, sempre a mesma. Como essência é imutável, eterna. Moleschott faz notar que ela é inseparável de uma de suas propriedades: a força. Não concebe uma sem a outra. Não pode admitir que a forma exista independente da maté­ria, ou vice-versa. Daí conclui que as forças designadas sob os nomes de Deus, alma, vontade, pensamento, etc. são propriedades da matéria. Segundo ele, acreditar que essas forças possam ter uma existência real é cair num erro ridículo.

Ouçamo-lo:

Seria uma ideia absolutamente sem significação a de que uma força pairasse acima da matéria e pudesse, à vontade, casar-se com ela. As propriedades do azoto, do carbono, do hidrogênio, do oxigênio, do enxofre, do fósforo, residem em si de toda a eternidade. 

Daí resulta que a força vital, a ideia diretriz, a alma, não passam, realmente, de modificações da matéria, de alguns dos seus aspectos particulares. A matéria, por toda parte e sempre, sob infinita variedade de formas, não é mais que a combinação físico-química dos elementos.

Tais são, em suas grandes linhas, as primeiras afirma­ções de Moleschott. Serão exatas? É o que se trata de verificar. Resumamos.

1 Ele nega, em absoluto, todo plano, toda vontade dirigente na marcha dos acontecimentos do universo.

2 Ele afirma que a força é um atributo da matéria.

Vejamos se os fatos lhe dão razão.

  

A IDEIA DIRETRIZ 

Notamos, em primeiro lugar, que existem, no infinito, Terras como a nossa, que obedecem a regras invariáveis, cuja harmonia é de tal forma grandiosa, que o espírito, espantado e confuso diante de tantas maravilhas, não pode duvidar de que uma profunda sabedoria tenha presidido ao seu planejamento. Não será a um sábio como Moleschott que seja necessário lembrar essa extrema complicação da máquina celeste, nem preciso mostrar esses milhares de milhões de mundos que rolam no espaço, e emaranham suas órbitas numa harmonia tão poderosamente combinada que a mais fértil imaginação mal lhes pode aprofundar as leis mais simples.

Quem não se sente maravilhado diante do esplendor de uma bela noite de verão? Quem não estremeceu de indescritível emoção vendo essa poeira de sóis suspensa no espaço? Quem não sentiu involuntário terror ao lembrar­-se de que o planeta que nos conduz caminha no espaço, sem outro sustentáculo que a atração de um astro longínquo? E quem não refletiu um dia que os movimentos tão precisos deste vasto maquinismo revelaram a inteligência de um sublime operário? Quem não compreendeu que a harmonia não pode nascer do caos e que o acaso, essa força cega, não poderia engendrar a ordem e a regularidade?

Sim, nos espaços sem limites, dão-se as transforma­ções eternas da matéria; sim, ela muda de aspectos, de propriedades, de formas, mas verificamos que o faz em virtude de leis imutáveis, guiadas pela mais inflexível lógi­ca; eis por que acreditamos em uma inteligência suprema, reguladora do universo.

Se, desviando os olhos da abóbada azulada, lançarmos a vista em torno de nós, notaremos a mesma influência diretriz.

Sabemos, como Moleschott, que nada se cria, que nada se perde em nosso pequeno mundo. A Astronomia nos ensina que a Terra rodopia em torno do Sol através dos campos da extensão, e sabemos que a gravidade retém em sua superfície todos os corpos que a compõem. Pode­mos compreender perfeitamente, portanto, que ela não adquire nem perde coisa alguma em sua incessante carreira.

Provam-nos as novas descobertas que todas as subs­tâncias se transformam umas nas outras, que os corpos, estudados à luz da Química, diferem pelo número e pela proporção dos elementos simples que entram em sua com­posição. Nada é mais exato e ninguém pensa em contestar essas verdades demonstradas.

Se encararmos a multiplicidade enorme das trocas que se realizam entre todos os corpos, o que mais nos surpreen­de não são essas combinações em si, mas o maravilhoso conhecimento das necessidades de cada ser que elas ates­tam. Nada se perde no imenso laboratório da natureza. Todos os seres, por ínfimos que nos pareçam, têm sua utilidade para o bom funcionamento do conjunto da cria­ção; cada substância é utilizada de forma a produzir seu máximo de efeito, e a “circulação da matéria” entretém a vida na superfície do nosso globo. Sim, esse movimento perpétuo é a Alma do Mundo, e, quanto mais complicado ele é, quanto mais variado, tanto mais testemunha em favor de uma ação diretriz.

A Ciência contemporânea descobriu nossas origens; sabemos que, desde quando a Terra não era mais que um amontoado de matéria cósmica, produziram-se meta­morfoses que a trouxeram lentamente, gradualmente, à época atual. É em razão dessa progressão evolutiva que reconhecemos a necessidade de uma influência que se exer­ce de maneira constante, para conduzir os seres e as coisas, da fase rudimentar para estados cada vez mais aperfeiçoados.

Não se pode negar, quando examinamos o desenvolvi­mento da vida através dos períodos geológicos, que uma inteligência haja dirigido a marcha ascendente de tudo o que existe, para um fim que ignoramos, mas cuja existên­cia é evidente.

É fácil verificar que os seres se têm modificado de maneira contínua, em virtude de um plano grandioso, à medida que as condições da vida se transformam à superfície do globo; encontramos nas entranhas da Terra o esboço da maior parte das raças, vegetais e animais, que compõem, hoje, a fauna e a flora terrestres.

A que agente atribuir essa marcha progressiva? É o acaso que combina, com tanto cuidado, a ação de todos os elementos? Seria absurdo supô-lo, pois o acaso é uma palavra que significa a ausência de todo o cálculo, de toda a previsão.

Afastada esta hipótese, restam-nos as leis fisico-quí­micas de que fala Moleschott. Faremos ainda aqui observar que essas leis não são inteligentes. Nunca se admitiu que o oxigênio se combinasse por prazer com o hidrogênio; o azoto, o fósforo, o carbono, etc. têm propriedades que possuem de toda a eternidade, é evidente; mas não é menos verdade que se trata de forças cegas, que não se dirigem em virtude de um impulso próprio; e, se estas energias passivas, ao se aliarem, produzem resultados harmônicos, bem coordenados, é que elas são postas em ação por um poder que as domina. A Química, a Física, a Astronomia, explicando os fatos que pertencem às suas respectivas esfe­ras, de forma alguma atingiram a causa primária. A Biolo­gia moderna também não toca nessa causa; não suprime Deus; ela o vê mais longe e, sobretudo, mais alto. 

 

A FORÇA É INDEPENDENTE DA MATÉRIA 

Examinemos, agora, a segunda proposição de Moles­chott, que pretende seja a força um atributo da matéria, isto é, que seja impossível conceber uma sem a outra.

Em sua opinião, estudar separadamente a força e a matéria é uma falta de senso, donde resulta que, estando a energia contida na matéria, as forças como a alma, o pensamento, Deus, não são mais que propriedades dessa matéria. Se demonstrarmos que tal asserção é falsa, estabe­leceremos, implicitamente, a realidade da alma. Para res­ponder a um sábio, não há melhor método que o de lhe opor outros sábios.

Diz D’Alembert, secundando Newton, que “um corpo abandonado a si próprio deve persistir eternamente em seu estado de movimento ou de repouso uniforme”. Em outras palavras: estando um corpo em repouso, não poderia por si mesmo deslocar-se.

Laplace assim exprime o mesmo pensamento. Um ponto em repouso não pode dar a si o movimento, pois que não dispõe de raciocínio que o faça mover num sentido em vez de outro. Solicitado por uma força qualquer e, em seguida, abandonado a si mesmo, move-se constantemente de maneira uniforme, na direção dessa força; não experimenta nenhuma resistência; em todo o tempo, sua força e sua direção de movimento são as mesmas. Essa tendência da matéria para perseverar em seu estado de movimento e de repouso é o que se chama a inércia. É esta a primeira lei do movimento dos corpos.

Assim, Newton, D’Alembert e Laplace reconhecem que a matéria é indiferente ao movimento e ao repouso, que só se move quando uma força atua sobre ela, porque, naturalmente, é inerte. É, portanto, uma afirmação gratuita e sem fundamento científico atribuir força à matéria. Cremos que dificilmente podem-se recusar o testemu­nho e a competência dos três grandes homens acima cita­dos; para dar mais peso, entretanto, à nossa asserção, diremos que o cardeal Gerdil e Euler estabelecem, por cálculos matemáticos, a certeza da inércia dos corpos; não podemos reproduzi-los aqui, mas faremos valer um argumento decisivo em apoio de nossa convicção. Temos excelente prova do princípio da inércia nas aplicações que se fizeram das teorias da Mecânica aos fenômenos astronômicos.

Com efeito, se esta ciência que tem por base a inércia não se apoiasse em um fato real, suas deduções seriam falsas e inverificáveis pela experiência. Se a lei da inércia não passasse de uma concepção do espírito, sem nenhum valor positivo, seria impossível a Leverrier achar e calcular a órbita de um planeta desconhecido até sua época, e suas previsões, sobretudo, jamais se teriam realizado, as quais, entretanto, se verificaram ponto por ponto.

Esta descoberta demonstra que as leis encontradas pela razão são exatas, porque se verificam pela observação de um fenômeno cuja possibilidade não se suspeitava, quan­do os princípios da mecânica celeste foram estabelecidos. Não é evidente que se conheciam as propriedades dos corpos e mais tarde se conheceram as curvas que eles descrevem, muito antes de se ter observado no céu o movimento dos astros? Ora, não sendo a Mecânica senão o estudo das forças em ação, é certo que suas leis são rigorosas, porque se verificam na natureza.

Não só os matemáticos trataram desta questão: M. H. Martin, em seu livro As Ciências e a Filosofia, de­monstra, segundo Dupré, que em virtude das leis da Termodinâmica, é necessário admitir uma ação inicial exterior e independente da matéria.

É, aliás, fácil a convicção, raciocinando de acordo com o método positivo, de que o testemunho dos sentidos não pode fazer-nos ver a força como um atributo da maté­ria; ao contrário, verificamos pela experiência cotidiana que um corpo fica inerte e permanecerá eternamente na mesma posição, se nada lhe vier dar o movimento. Uma pedra que lançarmos permanece, depois de sua queda, no estado em que se achava, quando a força que a animava cessou de atuar. Uma bola não rolará sem o primeiro impul­so que lhe determine o deslocamento. Sendo o universo o conjunto dos corpos, pode-se dizer do conjunto da criação o que se diz de cada corpo em particular, e, se o universo está em movimento, é impossível achar que a causa desse movimento esteja em si próprio.

Vê-se até aqui que Moleschott não foi feliz na escolha de suas afirmações. Erige como verdade os pontos mais contestáveis; não é, pois, de surpreender que, partindo de dados tão falsos, chegue a conclusões absolutamente errôneas. O estudo imparcial dos fatos nos leva a encarar o mundo como formado de dois princípios independentes um do outro: a força e a matéria.

É preciso, além disso, observar que a força é a causa efetiva a que obedecem aos seres, orgânicos ou não. Todas as forças, portanto, designadas sob os nomes de Deus, alma, vontade, têm uma existência real fora da matéria e esta é o instrumento passivo, sobre o qual elas se exer­cem.

Continuemos a análise do livro de Moleschott e vere­mos que em suas apreciações sobre o homem ele não mostra mais perspicácia do que em seu estudo sobre a natureza.

O grande argumento que ele oferece como prova de convicção é o mesmo que o dos materialistas em geral. Consiste em dizer: o cérebro é o órgão pelo qual se manifesta o pensamento, logo, é o cérebro que segrega o pensamento. Esse raciocínio é quase tão lógico como se disséssemos: o piano é o instrumento que serve para que se faça ouvir uma melodia, logo, o piano segrega a melodia.

Se alguém se exprimisse por tal forma diante de um incrédulo, é mais que provável que ele encolheria os om­bros desdenhosamente; mas, fato estranho, quando se trata da alma, ele aceita imediatamente semelhante maneira de discutir. É que os materialistas não querem, sob nenhum pretexto, acreditar num princípio pensante; negam a exis­tência do músico, daí as singulares teorias que nos expõem.

Os materialistas se encontram em face desse proble­ma: o homem pensa; o pensamento não tem nenhuma das qualidades da matéria; é invisível, não tem forma, nem peso, nem cor; entretanto, existe. É preciso, pois, por se mostrarem coerentes, que o façam provir da matéria.

Certo, a dificuldade é grande para explicar como uma coisa material, o cérebro, pode engendrar uma ação imate­rial, o pensamento. Vamos ver, então, desfilarem os sofis­mas, com o auxílio dos quais nossos adversários dão a aparência de um raciocínio.

O cérebro é necessário à manifestação do pensamento; os filósofos gregos já o sabiam e não caíam, por isso, no erro dos céticos de hoje; estabelecem a distinção entre a causa e o instrumento que serve para produzir o efeito. Certos fisiologistas, como Cabanis, não encaravam o assunto de tão perto. Este diz, com efeito: 

Vemos as impressões chegarem ao cérebro por intermédio dos nervos; elas se acham, então, isoladas e sem coerência. O órgão entra em ação, age sobre as impressões e as reenvia metamorfoseadas em ideias, que se manifestam exteriormente pela linguagem da fisionomia ou do gesto, pelos sinais da palavra ou da escrita. Concluímos, com a mesma segurança, que o cérebro digere, de alguma maneira, estas impressões; que ele faz, organicamente, a secreção do pensamento.

 Tal doutrina tão bem se implantou no espírito dos materialistas que, segundo Carl Vogt, os pensamentos têm com o cérebro “quase a mesma relação que a bílis com o fígado ou a urina com os rins”.

Broussais já tinha dito em seu testamento: 

Desde que eu soube, pela cirurgia, que o pus acumulado na superfície do cérebro destruía nossas faculdades, e que a saída desse pus lhes permitia o reaparecimento, não as pude considerar de outra forma que não atos do cérebro vivo, embora não soubesse nem o que era o cérebro, nem o que era a vida.

 Moleschott, seguindo nessa linha, diz a seu turno, variando um pouco a argumentação: 

O pensamento não é mais que um fluido, como o calor ou o som; é um movimento, uma transformação da matéria cerebral; a atividade do cérebro é uma propriedade do cérebro, tão necessária como a força, por toda a parte inerente à matéria, da qual é caráter essencial e inalienável. É tão impossível que o cérebro intacto não pense, como é impossível que o pensamento seja ligado a outra matéria que não o cérebro. 

Segundo o sábio químico, qualquer alteração do pen­samento modifica o cérebro, e qualquer dano a esse órgão suprime o pensamento no todo ou em parte. 

Sabemos, por experiência, que a abun­dância excessiva do líquido céfalo-raquidiano produz o estupor; a apoplexia é seguida do aniquilamento da cons­ciência; a inflamação do cérebro provoca o delírio; a sínco­pe, que diminui o movimento do sangue para o cérebro, provoca a perda do conhecimento; a afluência do sangue venoso para o cérebro produz a alucinação e a vertigem; uma completa idiotia é o efeito necessário, inevitável da degenerescência dos dois hemisférios cerebrais; enfim, to­da excitação nervosa na periferia do corpo só desperta uma sensação consciente no momento em que repercute no cérebro. 

Conclui, pois, que nos fenômenos psicológicos o que se observa é a eterna dualidade da criação; uma força, o pensamento que modifica; uma matéria, o cérebro.

Toda a argumentação de Moleschott consiste em di­zer que, com órgãos sãos, os atos intelectuais se exercem facilmente; ao contrário, se o cérebro adoece, a alma não pode mais se servir dele, e as faculdades reaparecem quan­do as causas que o alteravam cessam de agir.

É sempre a história do piano. Se uma das cordas chega a se quebrar, será impossível fazer vibrar a nota que lhe corresponde; substitua-se a corda e imediatamente o som voltará a se produzir. Mas, quando fosse demons­trado que o pensamento é sempre a resultante do estado do cérebro, não bastaria isso para afirmar que o encéfalo produz o pensamento. Quando muito, daí se poderiam induzir as relações íntimas existentes entre ambos. Não está ainda provado que a integridade do cérebro seja indispensável à produção dos fenômenos espirituais.

Eis o que diz Longet, cuja competência em Fisiologia é unanimemente reconhecida: 

Nunca se negou a solidariedade dos órgãos sãos com uma inteligência sã — mens sana in corpore sano —; mas essa dependência tão natural não é de tal forma absoluta que não se encontrem numerosos exemplos do contrário; veem débeis crianças assombrar pela precocidade da inteligência e extensão do espírito; velhos decrépitos, já vizinhos da tumba, conservam intactos os julgamentos, a memória, o fogo do gênio, o ardor da coragem.

Há poucos anos, o Prof. Lordat escreveu notável tratado sobre a insenescência[1] do senso íntimo nos velhos.

A loucura é acompanhada, muitas vezes, de uma lesão apreciável dos centros nervosos; mas, que diremos dos casos em que Esquirol e os autores mais conscienciosos afirmam não haver encontrado nenhum vestígio de alteração no cérebro? Os anais da Ciência nos fornecem grande número de fatos, perfeitamente observados, de alteração profunda da substância cerebral, sem que, durante a vida, se haja notado a mais leve alteração da inteligência.

Viram-se porções do cérebro retirado, balas atravessarem esse órgão de um lado a outro, sem o menor desarranjo do espírito; basta, entretanto, alguns delgados filetes de sangue em um pequeno ponto para acender a febre, excitar um delírio furioso e trazer rapidamente a morte. Apresse­mo-nos em reconhecer que a integridade dos órgãos, sua boa conformação, um volume suficiente são condições favoráveis ao livre exercício, ao vigor das faculdades intelectuais, mas não confundamos o órgão com a função; e é sobretudo falando do cérebro e do pensamento que essa distinção se torna importante, porque muitos órgãos da economia concorrem para esse grande fenômeno da vida intelectual: a privação do ar a faz cessar imediatamente; uma bala que atravessa o coração a destrói com rapidez. Quem ousaria, entretanto, dar como causa primária ao pensamento o ar que respiramos ou o sangue vermelho que circula nos canais arteriais? 

Eis o que diz a Ciência e parece-nos que suas conclu­sões não são inteiramente a favor de Moleschott; não é possível afirmar que o pensamento esteja sempre em harmonia com a integridade do cérebro, logo, ele não é produzido pelo cérebro.

Vimos também, mais acima, o sábio holandês atribuir o pensamento a uma vibração da matéria cerebral. Seria essa teoria mais justa que as precedentes? Vamos vê-lo imediatamente.

Desde logo esbarramos numa dificuldade; é difícil compreender como uma sensação gera uma ideia. A sensa­ção é uma impressão produzida nos nervos sensitivos por um abalo externo; este determina um movimento ondulató­rio que se propaga até o cérebro pelas fibras nervosas. Lá chegado, esse movimento faz vibrar as células do sensório. Como pode o movimento mecânico das células deter­minar uma ideia? Como compreender que esse abalo seja percebido pelo ser pensante?

As células nervosas, formadas de colesterina, água, fósfo­ro, ácido húmico, etc., associados em certas proporções, não é, por si mesma, inteligente; o movimento vibratório é simples ação material. Como pode o pensamento nascer desse abalo da célula nervosa? Foi o que se esqueceram de nos ensinar.

Os espiritualistas interpretam os fatos dizendo que há em nós uma individualidade intelectual, que é advertida por essa vibração de que uma ação foi exercida sobre o corpo, e é quando a alma tem consciência desse movi­mento vibratório que nós experimentamos a percepção.

O que prova até à evidência que tudo se passa assim é o fenômeno tão ordinário da distração.

Quando trabalhamos num aposento, não acontece fre­quentemente ficarmos insensíveis ao tique-taque de um relógio? E não sucede, mesmo, ficarmos insensíveis às horas que batem? Por que não as ouvimos? As vibrações produzidas pelo som impressionaram nosso ouvido, propa­garam-se através do organismo até o cérebro, mas, estando a alma preocupada por outros pensamentos, não pôde trans­formar a sensação em percepção, de modo que não tivemos consciência dos ruídos produzidos pelo relógio. Esse sim­ples fato demonstra, de maneira concludente, a existência da alma. 

 

OUTRAS OBJEÇÕES 

Estamos certos, agora, de que o pensamento não é produzido nem pelo conjunto do cérebro, nem por um movimento vibratório de suas moléculas. Asseguremo-nos de que não é ele, além disso, produto da matéria cerebral.

Retomemos, para examiná-las, as teorias de Cabanis e Carl Vogt: é possível que o pensamento seja uma secre­ção do cérebro? Tão falsa se apresenta essa ideia, tão pouco em harmonia com a realidade dos fatos, que um declarado materialista como Büchner se recusa a admiti-la.

Diz-nos ele: 

Apesar do mais escrupuloso exame, não podemos encontrar analogia entre a secreção da bílis ou da urina e o processo pelo qual se forma o pensamento no cérebro. A urina e a bílis são matérias palpáveis, ponderáveis e visíveis; e ainda mais, matérias excrementícias que o corpo usou e que ele rejeita. O pensamento, o espírito, a alma, pelo contrário, nada tem de material; não é ela mesma uma substância, mas o encadeamento de forças diversas formando uma unidade, o efeito do concurso de muitas substâncias dotadas de forças e de qualidades.

Quando uma máquina feita pela mão do homem produz um efeito, põe em movimento seu mecanismo ou outros corpos, dá uma pancada, indica a hora ou coisa semelhante, esse efeito, considerado em si, é coisa essencialmente diferente de certas matérias excrementícias que ela produz, talvez, durante essa atividade.

Assim, o cérebro é o princípio e a fonte, ou, para melhor dizer, a causa única do espírito, do pensamento; mas, não é por isso o órgão secretor. Ele produz algo que não é rejeitado, que não dura materialmente, mas que se consome a si mesmo no momento da produção. A secreção do fígado, dos rins, se realiza sem o sabermos, independentemente da atividade superior dos nervos; ela produz uma matéria palpável. A atividade do cérebro não pode existir sem a consciência completa e não segrega substâncias, porém forças. Todas as funções vegetativas, a respiração, a pulsação do coração, a digestão, a secreção dos órgãos excretores se verificam tanto no sono como em estado de vigília; mas as manifestações da vida se suspendem no momento em que o cérebro, sob a influência de uma circulação mais lenta, fica mergulhado no sono. 

Para Büchner, o pensamento não é uma secreção; pro­vém de um conjunto de forças diversas que formam unida­de; é uma resultante; mas uma resultante de quê? Será do conjunto do cérebro ou somente de certas partes? Pode­rá algo invisível e imponderável, como o pensamento, ser produzido por diferentes órgãos que se reúnem para um efeito comum?

O autor nada nos diz, nem temos necessidade de explicação para perceber que essa maneira de encarar o pensamento é ainda errônea. Büchner reconhece que o pensamento é imaterial; perguntamos, agora, como poderia ser produzido pelo cérebro, que só se compõe de matéria?

Abordemos mais de perto o assunto e veremos que, de qualquer maneira que o encaremos, é impossível supor que o cérebro segregue o pensamento, ou que este dele se desprenda, como a eletricidade dos corpos que a contém.

É evidente, averiguado, incontestável, que o trabalho cerebral determina uma elevação de temperatura no cére­bro. Produz-se uma oxidação das células, que se pode medir, como fez Schiff, operando sobre cães ou sobre o homem; como o atestam as experiências de Broca, em estudantes de medicina; ou, enfim, as de Bayson, que pesava os sulfatos e os fosfatos que entravam em seu corpo pela alimentação, para demonstrar que a quantidade dos sais, rejeitada pelas excreções, aumentava de maneira sensível, após um trabalho cerebral.

Como podem estas experiências, de que os materia­listas têm pretendido fazer um argumento, infirmar a exis­tência da alma? Elas demonstram, simplesmente, que quan­do o cérebro trabalha, o sangue aí aflui e determina uns movimentos moleculares, que se traduz materialmente por ações químicas. Acreditar que o pensamento seja o produto dessas reações seria erro grave, porque, se o cérebro segre­ga o pensamento, é preciso explicar a natureza e o resulta­do dessa secreção. É um líquido, um sólido, um corpo simples ou composto? Desde que se afaste resolutamente a hipótese espiritual, deve-se estabelecer que, pela eleva­ção de temperatura, se obtém um objeto material. Ora, quem pretenderá jamais que o pensamento, esta coisa fugi­tiva, esteja nesse caso?

Admitindo que o pensamento é uma força, como a eletricidade e o calor, que emana do cérebro em certos momentos, e como toda força é um movimento vibratório do éter, recairemos na teoria de Moleschott, que demons­tramos falsa.

Vê-se, qualquer que seja o processo de análise empre­gado, que é impossível supor o pensamento como emanação do cérebro e ainda menos como secreções ou vibrações da matéria cerebral. Não podemos admitir os sistemas ma­terialistas sem nos encontrarmos em oposição formal com os fatos e com a razão; e, se verificamos no cérebro uma série de atos que precedem, acompanham ou seguem o pensamento, é absolutamente ilógico atribuir-lhes a produ­ção desse pensamento.

Uma das faculdades da alma que mais têm chamado a atenção dos filósofos é a memória. Faculdade misteriosa essa, que reflete e conserva os acidentes, as formas e as modificações do pensamento, do espaço e do tempo; na ausência dos sentidos e longe da impressão dos agentes externos, ela representa essa sucessão de ideias, de ima­gens e de acontecimentos já desaparecidos, já caídos no nada. Ela os ressuscita espiritualmente, tais como o cérebro os sentiu, a consciência os percebeu e formou.

Para explicar o seu mecanismo, Aristóteles admite que as impressões exteriores se gravam no espírito, quase pela forma por que se reproduz uma letra, colocando-se um sinete sobre a cera. Descartes crê também que essa facul­dade provém dos vestígios que deixam em nós as impres­sões dos sentidos ou as modificações do pensamento. Ado­temos a maneira de ver desses grandes homens e indague­mos como será possível conciliá-la com os dados que Mo­leschott nos fornece sobre a natureza do princípio pen­sante.

O sábio químico afirma, em magnífico capítulo, que um movimento incessante da matéria, que transformações maravilhosas e múltiplas se executam no interior de nosso corpo, e, apoiando-se nos trabalhos de Thompson, de Vie­rodt e de Lehumann, os quais, por sua vez, tinham por base os de Cuvier e Flourens, declara que “os fatos justifi­cam plenamente a suposição de que o corpo renova a maior parte de sua substância em um lapso de vinte a trinta dias”. E alhures diz mais: “O ar que respiramos muda a cada instante a composição do cérebro e dos nervos”.

Se isto é verdade, se somos uma nova entidade de trinta em trinta dias, se todas as moléculas que compõem nosso ser entram no turbilhão vital, como conservamos, ainda, na idade madura, a lembrança de atos que se passa­ram em nossa mocidade? Como explicará Moleschott que nos conservemos sempre os mesmos, apesar dessas mutações?

É incontestável que possuímos a invencível certeza de ser sempre idênticos; mesmo quando envelhecemos, sabemos que a essência de nós mesmos não muda. Em meio às vicissitudes da existência, nossas faculdades po­dem aumentar ou obliterar-se, nossos gostos variar ao infi­nito e nossa conduta apresentar as mais singulares contradi­ções; estamos certos, porém, de que conservamos o mesmo ser; temos consciência de que outro não tomou nosso lugar, e, entretanto, todos os elementos de nosso corpo foram renovados muitas vezes. Nem um átomo do que o formava há dez anos subsiste nele presentemente. Como se mantém, então, em nós a memória dos acontecimentos passados?

Respondem os espiritualistas que existe em nós um princípio que não muda e cuja natureza indivisível não está, como a matéria, submetida à destruição. É a alma que conserva a lembrança dos fatos, as conquistas da inteli­gência e as virtudes adquiridas por incessante luta contra as paixões.

Não podemos admitir as teorias materialistas, porque elas tendem simplesmente a suprimir a responsabilidade dos atos.

Se não somos, com efeito, senão uma associação de moléculas, sem cessar renovadas, se as nossas faculdades são apenas a tradução exata do desenvolvimento que o acaso daria a certas partes do cérebro, com que direito poderia o homem prevalecer-se de suas qualidades e por que se condenaria um malfeitor, já que sua inclinação para o crime dependeria de certa disposição orgânica que ele não pode modificar?

Os combates sustentados contra os impulsos que nos arrastam para o mal indicam que há em nós uma força consciente dirigida pelas leis da moral.

Essas lutas interiores revelam a ação da vontade, a despeito de todos os sofismas com que se pretende estabe­lecer que ela é quimérica. Não somos senhores sempre, é verdade, de dominar as nossas sensações; elas se nos impõem, muitas vezes, com energia: um espetáculo sensibi­lizador nos enche de doce emoção; provoca a nossa revolta a vista de uma injustiça; encanta-nos uma harmonia suave; mas essas impressões tão diversas são bem diferentes da vontade, que é caráter mais íntimo do eu e da personalidade humana.

Quando estamos em face de um ato a realizar, ponderamos os motivos que nos podem dirigir; faz-se ouvir a voz do interesse em oposição à do dever, e o que constitui o mérito é o poder que temos de escolher entre os dois móveis.

Por sermos livres é que somos responsáveis; esta gran­de verdade está tão firmada na consciência universal que nunca se viu punir um louco por ter cometido um crime.

O livre-arbítrio não é uma ilusão. É ele que dá ao homem honesto a força de preferir a morte à infração das leis; é ele que impele os grandes corações a devota­mentos heróicos; e, se o homem não passasse do joguete cego das forças físico-químicas, seria preciso nos despedir­mos de todos os nobres sentimentos, de todas as aspira­ções generosas!

Tentaram provar, comparando-se o peso de grande número de cérebros humanos, que a inteligência mais de­senvolvida correspondia sempre a um encéfalo mais pesa­do. Estatísticas numerosas foram estabelecidas, mas até agora os resultados não são bastante precisos para permitir que se formule uma lei. Vê-se, é verdade, que, à medida que nos aproximamos das raças inferiores, a capacidade craniana diminui. Nestes últimos tempos, Bischof, Nico­lucci, Hervé, Broca e outros fizeram pesquisas muito curio­sas a este respeito, mas, tanto como seus predecessores, não puderam deduzir uma regra dos casos numerosos que observaram; viram-se idiotas com o volume do cérebro tão considerável quanto o de pessoas que gozavam da integridade de suas faculdades intelectuais.

Nesta espécie de pesquisa é preciso não confundir o órgão com a função. Vê-se que certas partes do corpo crescem mais que outras, é que elas trabalham mais. Sabe-se que os ferreiros têm o braço direito mais forte que o esquerdo, porque é com aquele que manejam o martelo, assim como os torneiros têm a perna esquerda mais volumosa que a direita, porque é a de que se servem constantemente. Concluir-se-á que estes homens são ferrei­ros ou torneiros porque seus membros se acham mais desenvolvidos?

O raciocínio é o mesmo para com o cérebro. Se, em certos casos, se observa uma correlação entre seu volu­me e uma grande atividade intelectual, prova isto tão-só que o espírito atua sobre ele com intensidade. Disse exce­lentemente Hervé: “O encéfalo cresce em proporção à atividade funcional de que é a sede. É essa uma lei que se aplica a todos os órgãos, em toda a série animal; ora, qual é a atividade funcional do cérebro? A intelectual e a moral”.

O peso e o volume do cérebro nada têm, portanto, de comum com a existência da alma e não podem inva­lidá-la.

  

CONCLUSÃO 

Diremos, em resumo, que do estudo dos fatos ressalta a certeza de que possuímos um princípio pensante, inde­pendente da matéria, que não está submetido, como esta, às transformações da vida, e no qual reside a memória. Para combater tão simples verdade os sábios investigaram as mais íntimas profundezas do ser, a fim de haurirem aí seus argumentos.

Surpreende-nos ver como eles se extraviam, quando abandonam o sólido terreno da experiência e se aventu­ram, guiados por hipóteses, no domínio filosófico. É que não querem admitir senão o que é visível, tangível, que se pode medir. Nada teríamos que alegar contra esse méto­do, se dele se servissem sempre; mas o que não é justo é que só o apliquem aos fenômenos psíquicos. Broussais dizia: “Dissequei muitos cadáveres, mas nunca encontrei a alma”. Entretanto, admitia a vida e as ciências naturais, que só repousam sobre entidades.

Ouçamos Langel: 

A Química se contenta com palavras, todas as vezes que lhe é impossível penetrar a essência mesma dos fenômenos. De que fala ela sem cessar? De afinidade. Não é isso uma força hipotética, uma entidade tão pouco tangível como a vida e a alma? A Química deixa à Fisiologia a ideia da vida e recusa ocupar-se com ela. Mas a ideia em torno da qual a Química se desenvolve tem alguma coisa de mais real? Essa ideia é muitas vezes inapreensível, não só em sua essência senão ainda em seus efeitos. Pode-se, por exemplo, meditar um instante nas leis de Berthollet, sem compreender que estamos em face de um mistério impenetrável?

Nas experiências que lhe serviram de fundamento, as reações químicas são conduzidas em condições puramente estáticas e independentes das afinidades propriamente ditas; mas, no fenômeno de uma combinação, nessa atração que precipita um para o outro átomos que se procuram, que se juntam, escapando aos compostos que os aprisionavam, não há com que confundir o espírito?

Por mim, penso que quanto mais se estudam as Ciências em sua metafísica, mais se acentua a convicção de que esta nada tem de inconciliável com a filosofia mais idealista. As Ciências analisam as reações, tomam as medidas, descobrem as leis que regulam o mundo fenomenal; mas não há nenhum problema, por humilde que seja, que não as coloque em face de duas ideias sobre as quais o método experimental não tem nenhuma inferência; em 1.º lugar, a essência da substância modificada pelos fenômenos; em 2.º lugar, a força que provoca essas modificações.

Só conhecemos, só vemos o exterior, as aparências: a verdadeira realidade, a realidade substancial e a causa nos escapam. 

Não podemos terminar melhor que citando as seguintes palavras do ilustre fisiologista Claude Bernard: 

A matéria, qualquer que seja, é sempre destituída de espontaneidade e nada provoca; só faz exprimir por suas propriedades a ideia de quem criou a máquina que funciona. De modo que a matéria organizada do cérebro, que manifesta fenômenos de sensibilidade e de inteligência próprios ao ser vivo, não tem, do pensamento e dos fenômenos que ela manifesta, mais consciência do que a matéria bruta teria de uma máquina inerte, de um relógio, por exemplo, que não possui consciência dos movimentos que manifesta ou da hora que indica; assim, também, os caracteres de impressão e o papel não têm consciência das ideias que reproduzem. Assegurar que o cérebro segrega o pensamento seria o mesmo que dizer que o relógio segrega a hora ou a ideia do tempo.

É preciso não supor que foi a matéria quem criou a lei de ordem e de sucessão; seria isso cair no erro grosseiro dos materialistas.

 

—  GABRIEL DELANNE

O Espiritismo perante a Ciência 

Notas:

[1] Insenescência é a qualidade do que não envelhece.