Régis Jolivet

Teodiceia: provas da existência de Deus, com objeções e respostas

                                                                      Régis Jolivet (1891-1966)

Professor de Filosofia

Decano da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica de Lyon - França

Extraído e adaptado de:

Curso de Filosofia, de Régis Jolivet.

PROVAS   METAFÍSICAS   DA   EXISTÊNCIA   DE   DEUS

 

ART. I.    OBSERVAÇÕES GERAIS SOBRE AS PROVAS METAFÍSICAS

1. A experiência, nas provas metafísicas. — Estas provas também são chamadas muitas vezes provas físicas, por assinalar o fato de se apoiarem na experiência objetiva. Mas toda prova da existência de Deus deve necessariamente partir dos dados de experiência, quer dizer, deve ter sua origem ou seu ponto de apoio nos seres e fatos concretos que a experiência nos revela, para elevar-se daí a um Ser real, sem o qual estes seres e estes fatos e todo o universo permaneceriam inexplicados e inexplicáveis.

2. Visão geral das provas metafísicas. — Antes de expor os diversos argumentos, é útil tomá-los em conjunto, de forma sintética, a fim de tornar mais claramente acessível à inteligência o que constitui o eixo comum de uns e outros.

a) O fato do condicionamento universal. Tudo o que vemos em torno de nós, e tudo o que a ciência cada vez mais nos ensina, aparece-nos como um encadeamento de seres ou fenômenos que se sucedem e se imiscuem uns nos outros e assim formam séries que têm os seus elos solidamente articulados. É a isto que podemos chamar de fato do condicionamento universal, pelo qual todos os seres e todos os fenômenos do universo encontram sua condição, quer dizer, sua causa ou razão de ser, num outro ser ou outro fenômeno.

b) A causa primeira incondicionada. O princípio que nos orienta neste ponto é o de que, de condicionado a condicionante, é preciso necessariamente chegar a um princípio ou a uma causa absolutamente primeira, absolutamente incondicionada e, consequentemente, colocada fora da série causal. De nada adiantaria, com efeito, prosseguir ao infinito, uma vez que a série causal, mesmo concebida como infinita, seria ainda condicionada no conjunto, quer dizer, composta unicamente de intermediários que simplesmente transmitissem a causalidade. Na ordem causal, é o primeiro termo incondicionado que produz tudo, pois o resto tem por função somente transmitir o movimento ou o ser. (Um canal, por mais longo que seja, não é a explicação da água que nele circula; apenas a fonte explica a corrente. Da mesma forma, não se explica o movimento das bolas de bilhar multiplicando o número das bolas, mas unicamente recorrendo, qualquer que seja o número de bolas, à mão, que é a causa primeira do movimento que as bolas transmitem umas às outras.)

 c) A causa universal absolutamente primeira. Nossa investigação só pode terminar numa causa única e por isso mesmo universal, pois a causa absolutamente primeira só pode ser única. Se ela fosse múltipla, seria necessário supor que as causas absolutamente primeiras são independentes umas das outras (se não, elas não seriam absolutamente primeiras). Ora, esta suposição é incompatível com a unidade e a ordem que reina no universo, e inconciliável com as exigências da razão, para a qual o inteligível, o ser e o uno são convertíveis. Se não fosse assim, seria necessário admitir que a lei absoluta das coisas não coincide com a de nosso pensamento e que, apesar do absurdo ser inconcebível, pode contudo constituir o cerne das coisas. Ora, nisso existe uma incompatibilidade radical, uma vez que, conforme a Crítica do conhecimento, os princípios da razão não são nada mais do que as próprias leis do ser.

É necessário, portanto, concluir que só existe uma Causa absolutamente primeira e que esta Causa, que, pela própria definição (sendo absolutamente primeira) não depende de nenhuma outra e domina todas as séries causais, deve ser um Ser necessário, quer dizer, de tal ordem que não possa não ser, exista por sua própria essência e tenha em si a razão total de sua existência.

3. Objeção kantiana. — Kant levantou contra o valor das provas da existência de Deus uma objeção geral que devemos examinar aqui. Todas estas provas, diz ele, apóiam-se no princípio da causalidade, pelo fato de que procuram mostrar que Deus é causa do universo. Ora, o princípio da causalidade não tem valor a não ser na ordem da experiência sensível. As provas de Deus são, portanto, ineficazes.

Resposta. A esta objeção devemos opor o seguinte: em primeiro lugar, que o princípio da causalidade, como nós o empregamos aqui, não nos serve mais do que para provar que o universo exige uma causa, e isso em virtude mesmo do que apreendemos no universo, e de forma alguma para definir o que é ou deve ser em si esta causa; — depois, e de acordo com o estabelecido na Crítica do conhecimento, que o princípio de causalidade não é uma forma subjetiva, quer dizer, a priori e arbitrária, de nossa razão, mas uma evidência objetiva, apreendida no próprio ser dado à experiência, e por conseguinte válida proporcionalmente para a universalidade do ser. Segue-se que, ao contrário do que afirma Kant, o uso transcendente do princípio de causalidade é legítimo e rigorosamente válido.

 

ART. II.    AS CINCO  VIAS

Uma vez que se aprendeu bem o esquema geral das provas, físicas (ou metafísicas) da existência de Deus, é fácil compreender os cinco argumentos (ou as cinco vias que conduzem a Deus) propostos por Santo Tomás. Estes argumentos partem das diferentes ordens de condicionamento ou de encadeamento que podemos observar no universo, e cada um nos conduz ao mesmo Princípio absortamente primeiro, que é Deus.

 

§ 1.   Prova pelo movimento

Santo Tomás considera esta a prova mais manifesta de todas. Para bem compreendê-la, é importante ter bem presentes ao espírito ao mesmo tempo a noção de movimento e o princípio geral em que se baseia a prova.

1. O princípio do argumento.

a) A noção de movimento. O termo movimento não designa apenas o deslocamento de um lugar para outro, mas, em geral, toda passagem da potência ao ato, isto é, de uma modalidade de ser a uma outra. Como se vê em Cosmologia, o que há de essencial no movimento é propriamente a passagem enquanto passagem, o que faz do movimento uma realidade que participa ao mesmo tempo do ato e da potência. O movimento é, então, o sinal e a forma do que se chama em geral o vir-a-ser.

b) A inteligibilidade do vir-a-ser. Toda a questão estará então em descobrir o que torna inteligível (quer dizer, o que explica) o vir-a-ser. Para isso, vai-se recorrer ao princípio, estabelecido na Ontologia, segundo o qual “tudo o que se move é movido por outro”, quer dizer, que nada passa da potência ao ato a não ser sob a ação de uma causa já em ato, o que significa, mais resumidamente, que nada pode ser causa de si mesmo.

2. O argumento. — Em virtude do princípio precedente, Santo Tomás estabelece que o movimento exige um primeiro motor (o que não é mais do que uma aplicação do princípio geral da inteligibilidade do vir-a-ser). Diz ele:

Com efeito, é evidente (e nossos sentidos o atestam) que, no mundo, certas coisas estão em movimento. Ora, tudo o que está em movimento é movido por um outro. É impossível que, sob o mesmo aspecto e do mesmo modo, um ser seja ao mesmo tempo movente e movido, quer dizer, que se mova a si mesmo e passe por si mesmo da potência ao ato. Logo, se uma coisa está em movimento, deve-se dizer que ela é movida por uma outra. E isso porque, se a coisa que move por sua vez se move, é necessário, por outro lado, que ela seja movida por uma outra, e esta por uma outra ainda. Ora, não se pode ir assim ao infinito,  porque não existiria  então  motor primeiro, e daí se seguiria que não existiriam tampouco outros motores, pois os motores intermediários não movem a não ser que sejam movidos pelo primeiro motor, como o bastão não se move a não ser movido pela mão. Logo, é necessário chegar a um motor primeiro que não seja movido por nenhum outro. E este primeiro motor é Deus.

3. Objeção. — Certos filósofos julgaram poder fugir a esta conclusão admitindo uma série infinita e eterna de motores e móveis. Se o mundo e o movimento, pensam eles, são eternos, não há por que procurar um primeiro motor.

Resposta. Mas Santo Tomás responde que esta objeção não poderia atingir o argumento, porque não o toma no seu verdadeiro sentido. Com efeito, o argumento manteria toda a sua força na hipótese da eternidade do mundo, uma vez que o que se considera não é a série de motores acidentalmente subordinados no tempo, mas a série de motores atualmente e essencialmente subordinados: atualmente, a planta cresce, e seu crescimento depende do Sol; mas o Sol, de que depende? Seu movimento atual, de onde provém? Se o recebe de um outro astro, este astro, por sua vez, de onde recebe atualmente o seu movimento? É impossível prosseguir ao infinito, porque isso seria suprimir o princípio e a fonte do movimento, e, portanto, o próprio movimento. Ora, o movimento existe. Logo, existe um primeiro motor. E se o mundo fosse eterno, seu movimento exigiria eternamente um primeiro motor.

4. Corolários. — Da noção de primeiro motor imóvel, quer dizer, de um ser imutável na perfeição que lhe pertence por sua própria essência, podem-se deduzir imediatamente os corolários seguintes:

a) O primeiro motor imóvel é infinitamente perfeito. Com efeito, toda mudança implica imperfeição, uma vez que mudar é adquirir o ser que não se tem. Se, pois, o primeiro motor é absolutamente imóvel, é que ele possui toda a perfeição, quer dizer, a plenitude do ser. Em outras palavras, ele é Ato puro.

b) O primeiro motor imóvel é um ser espiritual, pois a matéria é corruptível, portanto essencialmente imperfeita. Sendo espiritual, o primeiro motor deve ser também inteligente e livre, pois inteligência e liberdade são propriedades essenciais dos seres espirituais.

c) O primeiro motor imóvel é eterno, uma vez que é absolutamente imutável.

d) O primeiro motor imóvel é onipotente, pois, sendo princípio do movimento universal, está presente por seu poder a tudo aquilo que move, quer dizer, a todo o universo.

 

§ 2.   Prova pela causalidade

1. O argumento.

a) Há uma Causa absolutamente primeira. Na prova pelo movimento, colocamo-nos do ponto de vista do vir-a-ser fenomenal. Aqui, encaramos a causalidade propriamente dita. Tudo o que se produz, como dissemos, é produzido por outra coisa (se não, o que é produzido seria causa de si mesmo, quer dizer, anterior a si, o que é absurdo). Concluímos daí, por exclusão da regressão ao infinito, que há uma Causa absolutamente primeira, fonte de toda causalidade.

b) Esta Causa primeira é transcendente a todas as séries causais. Em outras palavras, ela não pode ser um elemento da série das causas. Com efeito, se ela não fosse mais do que o primeiro elemento da série causal, seria necessário explicar como este primeiro elemento teria começado a ser causa; quer dizer, em virtude do princípio de que nada se produz a si mesmo, seria necessário recorrer a uma causa anterior a que se desejaria considerar como primeira, o que é contraditório. É preciso, então, necessariamente, que a Causa primeira transcenda (quer dizer, ultrapasse absolutamente e domine) todas as séries causais; que ela seja causa por si, incausada e incriada.

2. Objeção. — Tem-se pretendido muitas vezes opor a este argumento a hipótese de uma causalidade circular, quer dizer, de uma causalidade recíproca dos elementos do universo, em que a matéria se transformasse em energias diversas, para voltar, em seguida, a seu estado original, e assim por diante, indefinidamente (hipótese defendida por  certos  filósofos   gregos, que  não tinham a noção de criação, e, entre os modernos, por Nietzsche).

Resposta. Ora, mesmo que se encontrasse um fundamento para esta hipótese, ela não alteraria em nada o alcance da prova pela causalidade: que a evolução seja circular ou linear, isto se refere apenas à transmissão, e não à fonte de causalidade. Ficaria por explicar a existência do universo, concebido como um todo.

 

§ 3.    Prova pela existência de seres contingentes

1. O argumento. — Esta nova prova parte do fato de que o mundo físico é composto de seres contingentes, quer dizer, de seres que são, mas poderiam não ser, pois esses seres, ou nós os vimos nascer, ou então a ciência nos mostra que eles foram formados, ou ainda a sua composição exige, para explicá-los, uma causa de sua unidade.

Ora, os seres contingentes não possuem em si mesmos a razão de sua existência. Com efeito, um ser que tivesse em si, quer dizer, na sua própria natureza, a razão de sua existência, existiria sempre e necessariamente. Os seres contingentes devem, portanto, ter, num outro, a razão de sua existência, e, este outro, se também é contingente, também tem a sua num outro. Mas não é possível prosseguir assim ao infinito: de ser em ser, devemos chegar, afinal, a um ser que tenha em si mesmo a razão de sua existência, quer dizer, a um ser necessário, que exista por si, e pelo qual todos os outros existam.

Este ser necessário, que existe por sua própria natureza, e que não pode não existir, é Deus.

2. Objeção panteísta. — Os panteístas admitem, efetivamente, este raciocínio, mas não a sua conclusão. Para eles, o ser necessário não seria um Deus pessoal, mas o próprio mundo, tomado no seu conjunto, e concebido por eles como um ser único e infinito.

Resposta. Mas esta doutrina vai, evidentemente, contra a razão. Com efeito, o todo, que é a soma das partes, não pode ser de uma natureza diferente das partes. Ora, o mundo é composto de seres contingentes. Logo, ele também é contingente e, assim como cada uma das suas partes, não existe por si mesmo. Portanto, sua existência, para ser inteligível, postula a existência de um ser que existe por si e que é Deus.

 

§ 4.    Prova pelos  graus de perfeição dos seres

1. O argumento. — Partamos do aspecto de beleza que as coisas manifestam diferentemente. Diremos: se a beleza se encontra em diversos seres segundo graus diversos, é necessário que ela seja produzida neles por uma causa única. É impossível que esta qualidade comum a seres múltiplos e diversos pertença a estes seres em razão de sua própria natureza,pois, do contrário, não se compreenderia por que a beleza se encontraria neles, ora em maior, ora em menor quantidade. Eles seriam esta beleza por sua própria essência, quer dizer, necessariamente a possuiriam perfeita, sem limite, nem restrição. O fato de que há diferentes graus de beleza obriga então a que os diversos seres em que descobrimos estes graus simplesmente participem de uma Beleza que existe fora e acima desta hierarquia de beleza, e que é a Beleza absoluta e infinita.

Este argumento se aplicaria validamente a todas as perfeições ou qualidades, que podem ser levadas ao absoluto: ser, unidade, verdade, bondade, inteligência e sabedoria. O primeiro Princípio deve, então, ser necessariamente Ser perfeito, Unidade absoluta, Verdade, Bondade, Beleza, Inteligência e Sabedoria infinitas.

2. Alcance do argumento. — Este argumento não exige, apenas, uma Beleza ideal, mas uma Beleza subsistente, nem apenas uma Verdade ou uma Bondade ideal, mas uma Verdade e uma Bondade subsistente (e assim por diante para as outras perfeições), quer dizer, ele conduz, como os argumentos precedentes, a um Ser que existe em si e por si, e que é, por essência, Verdade, Bondade, Beleza, Unidade etc., absolutas e infinitas.

É que este argumento, como os precedentes, também é investigação de uma razão de ser, a saber, investigação da razão ou da causa da semelhança ou hierarquia dos seres compostos. Sob esse aspecto, estabelece que os seres que possuem graus desiguais de perfeição não têm em si mesmos a razão última  desta perfeição, e que esta pode explicar-se somente por um Ser que a possui absolutamente e essencialmente, enquanto que todo o resto a possui apenas por participação.

 

§ 5.    Prova pela ordem do mundo

1. O argumento.

a) Princípio do argumento. A prova pela ordem do mundo (ou argumento das causas finais) se apóia no princípio de finalidade, e toma a seguinte forma: a organização complexa, objetivando um fim, exige uma inteligência ordenadora. Com efeito, apenas a inteligência pode ser razão da ordem, quer dizer, da organização dos meios objetivando um fim, ou dos elementos tendo em vista o todo que compõem: os corpos ignoram os fins e, por conseguinte, se os corpos ou os elementos corporais conspiram em conjunto, é necessário que sua organização tenha sido obra de uma inteligência.

b) Forma do argumento. O argumento parte do fato da ordem universal. Esta ordem é evidente: considerado no seu conjunto, o universo nos aparece como uma coisa admiravelmente ordenada, em que todos os seres, por mais diferentes que sejam, conspiram para um fim comum, que é o bem geral do universo. Por outro lado, cada um dos seres que compõem o universo manifesta uma finalidade interna, quer dizer, uma exata apropriação de todas as suas partes, objetivando o bem deste mesmo ser.

Ora, esta ordem é inteligível unicamente pela existência de um princípio inteligente, que ordena todas as coisas a seu fim, e ao fim do todo que elas compõem. É isto que resulta do princípio demonstrado mais acima. É necessário, então, admitir que existe uma Causa ordenadora do universo.

2. Objeções.

a) O argumento não conduziria a uma Inteligência infinita. É a objeção de Kant. O mundo, diz ele, não é infinito; e, se, de fato, é necessário uma inteligência ordenadora para explicar sua unidade interna, seria suficiente, a rigor, uma inteligência de um poder seguramente prodigioso, mas não formalmente infinito.

Resposta. A objeção não procede, pois incide no erro de supor que a ordem do mundo resultaria de uma simples arrumação de materiais preexistentes. Nesse caso, uma inteligência não infinita seria uma explicação suficiente da ordem do mundo. Mas tudo muda de figura se a ordem não é mais do que um aspecto do ser, sendo uma ordem interna, que resulta da essência e das propriedades mesmas das coisas; ainda mais que o autor da ordem é, necessariamente, por isso mesmo, o criador do ser universal, ao mesmo tempo, Poder infinito e Inteligência infinita.

 

b) Fruto do acaso. É difícil negar que a ordem reine no mundo. Mesmo os ateus não o contestam. Mas, para escapar à conclusão do argumento, afirmam que a ordem do mundo pode ser explicada pelo acaso. O mundo atual, dizem eles, é o produto de forças inconscientes e fatais; passou por fases extremamente diferentes da que conhecemos, e esta só se perpetuou graças à harmonia que estas forças misteriosas acabaram por gerar fortuitamente.

Resposta. É fácil ver que esta explicação é, na realidade, fuga de uma explicação. O acaso tem por características a inconstância e a irregularidade, o que é o contrário mesmo da ordem. O acaso pode, a rigor, explicar uma ordem acidental e parcial, mas não uma ordem que governa inumeráveis casos, e que se perpetua, seja no interior dos seres, seja em suas relações mútuas, com uma constância invariável.

 

c) A evolução. Invocou-se, também, a evolução para explicar a ordem do mundo.

Resposta. Mas a evolução, longe de estabelecer a ordem, a supõe, uma vez que se faz de acordo com leis, e leis necessárias. A evolução exige, portanto, de forma absoluta, uma inteligência. É que as causas não excluem de forma alguma as finalidades: ao contrário, um mecanismo só tem sentido, ou mesmo existência, pela sua finalidade. Por isso, as causas que podem explicar a evolução dos seres do universo não fazem mais do que obedecer a uma ideia imanente, e, por conseguinte, supõem a existência de uma ordem anterior e superior a elas.

 

CONCLUSÃO SOBRE AS PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS

1. O ponto de vista comum a todas as provas. — Todas as provas da existência de Deus são aplicações do princípio de razão suficiente: qualquer coisa tem sua razão, ou em si, ou numa outra. Em outras palavras: o mais não pode sair do menos, nem o ser do nada. Cada prova, compreendendo um ponto de vista particular, especifica a aplicação do princípio de razão no domínio da contingência, no do movimento, no das causas finais, nos domínios da obrigação moral, das aspirações do homem e do consentimento universal. Cada vez, o princípio de razão obriga a concluir pela existência de um Ser existente por si, primeiro motor universal, inteligência infinita, princípio e fim da ordem moral, absoluta perfeição.

2. Cada prova é suficiente para provar Deus. — Não é, pois, necessário recorrer a todas as provas juntas. Cada uma, por si mesma, conduz-nos a Deus e envolve todas as outras. Assim, como já mostramos, quem diz primeiro motor imóvel, diz absoluta perfeição, ser incriado e eterno, e causa universal, não apenas do movimento, mas do ser, posto que o movimento, isto é, a transformação, manifesta a insuficiência radical do ser.

Mas cada uma dessas provas tem a vantagem de colocar em relevo um aspecto da causalidade divina e mostrar que, qualquer que seja o ponto de vista que se adote, o mundo não tem razão suficiente a não ser em Deus, se bem que não haja escolha entre estas duas conclusões: ou Deus, ou o absurdo total.

3. Espontaneidade da crença em Deus. — A conclusão a que chegamos não é exclusivamente fruto de uma demonstração científica tal que os filósofos, por uma preocupação extrema de precisão, ou para responder a diversas dificuldades, foram levados a formular. A certeza da existência de Deus não depende da perfeição científica das provas que se possam fornecer a este respeito. Ao contrário, a prova necessária a qualquer homem para adquirir uma plena certeza é tão fácil e tão clara que é perceptível, apesar dos processos lógicos que utiliza, e que os argumentos cientificamente desenvolvidos, muito longe de darem ao homem a primeira certeza da existência de Deus, podem ter como resultado apenas esclarecer e fortificar a que já existe.

4. Existe uma intuição da existência de Deus? — Esta espontaneidade da crença na existência de Deus explica que se possa tão frequentemente falar de intuição da existência de Deus (da existência de Deus, dizemos, quer dizer, dessa verdade que Deus existe, e não do próprio Deus). Parece, com efeito, que a argumentação em favor da existência de Deus se baseia numa intuição primitiva e universal, aquela mesma pela qual apreendemos, imediatamente e sem raciocínio, na realidade objetiva, as leis universais do ser e, em seguida, as condições absolutas da inteligibilidade do ser.

 

OS ATRIBUTOS DIVINOS EM GERAL

ART. I.    NOÇÃO DOS ATRIBUTOS DIVINOS

1. Definição. — Os atributos divinos não são mais do que as perfeições de Deus, como a razão as pode conhecer. Com efeito, as diversas provas da existência de Deus nos conduziram uma a uma a algum aspecto particular de Deus: primeiro motor imóvel, existente por si, soberana perfeição etc. Elas nos fizeram conhecer, portanto, de uma certa maneira, não apenas a existência de Deus, mas ainda a sua natureza.

2. Como conhecemos a natureza divina? — Não podemos elevar-nos, apenas pelas forças da razão, a conhecer a natureza divina no que a constitui propriamente. Nós só a conhecemos por seus efeitos. Sem dúvida, os efeitos trazem sempre alguma semelhança com a causa: é por isso que nosso conhecimento da natureza divina é real. Mas é imperfeito, porque não se conhece perfeitamente uma coisa a não ser que a conheçamos em si mesma.

 

ART. II.    PODEMOS CONHECER A NATUREZA DIVINA

Certos filósofos sustentaram que a natureza divina permaneceria absolutamente desconhecida para nós, porque nossa razão está limitada ao finito e ao relativo, e o infinito e o absoluto escapam a ela totalmente. Responde-se a esta objeção pelas observações seguintes:

1. Deus é incompreensível. — Porque, de qualquer maneira que o consideremos, ele é o Ser infinito. Ora, nossa inteligência, essencialmente limitada, não pode compreender, quer dizer, abraçar, abarcar o Infinito, assim como não podemos, com os braços, abarcar uma montanha. Por todos os lados, Deus ultrapassa infinitamente nossa inteligência, e tudo o que podemos conhecer e dizer a Seu respeito não é mais do que um esboço em relação ao que Ele é.

2. Deus não é incognoscível.  — Porque o  conhecimento que temos dEle, se não é perfeito, é contudo um conhecimento verdadeiro. A ciência está longe de conhecer o mundo de uma maneira perfeita e adequada; no entanto, ela tem a pretensão legítima de descobrir para nós, em parte, a natureza e as suas leis. Da mesma forma, se não podemos, com os braços, abarcar uma montanha, podemos, ao menos pela vista, ter dela um conhecimento parcial.

3. Sabemos que nosso conhecimento de Deus é imperfeito. — Isto nos preserva de certos erros. Não conhecemos, com efeito, a natureza divina pelo modelo da nossa: não tomamos Deus a nossa semelhança. Deus, dizemos nós, deve ter todas as perfeições que se encontram nos efeitos de seu poder, porque não pode existir menos na causa do que nos efeitos. Mas essas perfeições das criaturas são perfeições relativas, misturadas com imperfeições. Devemos, então, atribuindo-as a Deus, negar tudo o que as limita (via de eliminação) e elevá-las ao infinito (via de eminência).

Desse modo, atribuímos a Deus as perfeições das criaturas apenas por analogia, quer dizer, afirmando que as semelhanças deixam subsistir as diferenças infinitas, e que, por exemplo, a inteligência, a liberdade, a bondade não são em Deus apenas superiores ao que são no homem, mas ainda de uma outra ordem.

4. Os atributos divinos não introduzem em Deus nenhuma composição. — É realmente nossa maneira discursiva de pensar que nos faz conceber estes atributos como distintos entre si. Mas corrigimos o que há de inexato nessa concepção dizendo que os atributos divinos são na realidade apenas os diferentes aspectos da essência perfeitamente simples de Deus.

 

ATRIBUTOS   ENTITATIVOS

Chamam-se atributos entitativos (ou metafísicos) aqueles que se referem ao próprio ser de Deus. Esses atributos são os seguintes:

1. Simplicidade. — Deus não é composto de partes, nem quantitativas, nem metafísicas, nem mesmo lógicas. Com efeito, toda composição supõe imperfeição, pois o composto depende necessariamente dos elementos ou das partes que o constituem; ele é, portanto, em relação a seus componentes, um ser secundário e derivado. Ora, Deus é o Ser absolutamente primeiro. Logo, não é composto de forma alguma. E, portanto, é perfeitamente simples.

2. Infinitude. — Deus é infinito, quer dizer, sem limite no seu ser, uma vez que é o Ser por si, quer dizer, o ser que existe por sua própria essência. Com efeito. De onde lhe poderia vir um limite qualquer? Não poderia vir de uma vontade estranha, uma vez que nada existe acima de Deus, que de nada depende e tudo dEle depende. — Não poderia vir, além disso, de sua própria vontade, pois Deus não se fez a si mesmo. — Enfim, não pode vir de sua própria essência ou natureza, pois esta essência resume todas as perfeições e exclui toda imperfeição, portanto, todo limite.

3. Unicidade. — A unidade que está agora em questão não é a que resulta da indivisão do próprio ser. Já sabemos que Deus, sendo infinitamente simples, é por isso mesmo infinitamente uno. Trata-se agora de mostrar que Deus é único, quer dizer, que não pode existir mais do que um único Deus.

Isso resulta do fato de que o conceito de dois seres infinitamente perfeitos é contraditório. Com efeito, Deus é tudo o que é por sua própria divindade, quer dizer, por sua natureza. Ora, o que torna um ser particular é incomunicável e não poderá, por conseguinte, multiplicar-se: se um homem fosse um homem particular pela própria natureza humana, e não (como é o caso) pelas qualidades individuais que o distinguem dos outros homens, ele constituiria um único ser com a humanidade; seria a própria humanidade, e não poderia existir outro homem além dele. Assim, sendo Deus a própria natureza divina, não pode existir mais que um só Deus. — A unicidade divina pode ainda ser demonstrada pela absoluta perfeição da divindade. Se existissem vários deuses, eles difeririam necessariamente entre si. Ora, essa diferença exigiria que um possuísse o que faltasse ao outro, e este não poderia ser Deus, — ou, então, que a ambos faltasse alguma perfeição possuída pelo outro, e, nesse caso, nenhum possuiria a perfeição infinita, quer dizer, nenhum seria Deus.

4. Imensidade. — Etimologicamente, é imenso o que não pode ser medido, e a imensidade é um atributo divino que exclui de Deus toda possibilidade de ser circunscrito ou limitado por qualquer coisa que seja. Esse atributo decorre imediatamente da infinitude divina: o que é infinito não pode ser limitado por nada.

A ubiquidade, ou presença de Deus em todas as coisas, somente se realiza pela criação do mundo. Deus está presente ao universo e a cada parte do universo, que ele conserva pela ação contínua de seu poder.

5. Eternidade. — Deus é eterno, uma vez que existe pela própria necessidade de sua natureza. Por outro lado, começar a ser é uma imperfeição que não se poderia atribuir, sem cair no absurdo, ao Ser infinitamente perfeito.

A eternidade divina exclui a transformação e a sucessão. Ela não é um desenrolar de estados diversos e sucessivos, mas propriamente a posse total e perfeita de uma vida infinita. Não existe nela, portanto, nem passado, nem futuro: a eternidade é um presente perpétuo. 

 

—  Régis Jolivet

Curso de Filosofia, “Teodiceia”.