Platão

O universo orgânico e a formação geométrica da Alma do Mundo

Platão (428-347 a.C.)

Extraído e adaptado de:

Timeu (excertos de 33b-40b), de Platão

Forma do universo

Quanto à forma [do universo], concedeu-lhe [Deus] a mais conveniente e natural. Ora, a forma mais conveniente ao animal que deveria conter em si mesmo todos os seres vivos [o universo], só poderia ser a que abrangesse todas as formas existentes. Por isso, ele torneou o mundo em forma de esfera, por estarem todas as suas extremidades a igual distância do centro, a mais perfeita das formas e mais semelhante a si mesma, por acreditar que o semelhante é mil vezes mais belo do que o dessemelhante. Ademais, por vários motivos, deixou lisa a sua superfície exterior. De olhos não necessitava, pois do lado de fora nada ficou visível; nem de ouvidos, porque fora dele, também, nada havia para ser percebido. (...) Conferiu-lhe o movimento mais indicado para sua forma esférica: dos sete, aquele que melhor condiz com a mente e a inteligência. Por essa razão, fê-lo girar uniformemente em torno de si mesmo, impondo-lhe o movimento circular e privando-o dos outros seis, para que não lhes sofresse influências. E como não havia necessidade de apêndices para executar essa revolução, fê-lo desprovido de pernas e de pés.

Por diversas razões, a divindade eterna [Deus], tendo em mente a divindade que viria algum dia a existir [o universo], deixou-a lisa e uniforme, com todas as partes equidistantes do centro, completa e perfeita e composta só de corpos perfeitos [os átomos poliédricos regulares]. No centro, colocou a alma, fazendo que se difundisse por todo o corpo e completasse seu envoltório; depois do que, formou o céu circular, com movimento também circular, céu único e solitário, porém, capaz, em virtude de sua própria excelência, de fazer companhia a si mesmo, sem necessitar de ninguém, nem de conhecimentos, nem de amigos, mas bastando-se a si mesmo. Com todas essas qualidades, gerou uma divindade feliz [o universo].

           

A Alma do Mundo (Anima Mundi)

Sua substância

Porém, essa alma [do universo], de que só viemos a falar um pouco tardiamente, não a plasmou a divindade depois do corpo; ao juntá-los, jamais permitiria que o mais antigo fosse dirigido pelo mais novo. Mas isso é maneira de falar de quem, como nós, depende, em grau tão acentuado, do acidental e do acaso; sim, a divindade [Deus] criou a alma [do universo] antes do corpo, e, quanto à origem, mais antiga e mais excelente do que ele, por estar ela destinada a dominar e comandar, e ele, a obedecer.

            Fê-la deste modo e dos seguintes elementos. Da combinação entre a substância indivisível que é sempre a mesma [chamada Mesmo], e a divisível que nasce nos corpos [o Outro], compôs a terceira, uma espécie de substância intermediária [a Existência]. Por outro lado, no que diz respeito à natureza do Mesmo e do Outro, compôs também uma espécie intermediária entre a substância indivisível e a substância divisível nos corpos. De seguida, tomando os três, reuniu-os numa forma única, forçando, com isso, a difícil natureza do Outro a se misturar com o Mesmo. Depois de aprestar uma unidade com esses três elementos, dividiu-a em tantas partes quantas era conveniente haver, cada uma constante de uma liga do Mesmo, do Outro e da Existência.

Nessa divisão, adotou o seguinte critério: inicialmente, separou uma parte do conjunto (1), depois mais outra, o dobro da primeira (2), e uma terceira, uma vez e meia maior do que a segunda e o triplo da primeira (3); depois a quarta, o dobro da segunda (4), e a quinta, o triplo da terceira (9), e mais a sexta, o óctuplo da primeira (8), e, por último, a sétima, vinte e sete vezes maior do que a primeira (27). De seguida, preencheu os intervalos duplos (1, 2, 4, 8) e triplos (1, 3, 9, 27) com outras porções que tirou da mistura original e as dispôs nos intervalos, de forma que houvesse em cada intervalo duas mediedades, sendo que uma, a harmônica ultrapassava um dos extremos e era ultrapassada por outro de igual fração dos extremos, e a outra, a aritmética, ultrapassando cada extremo de número igual do que era ultrapassado pelo outro. E como dos laços introduzidos nos primeiros intervalos resultassem novos intervalos, de três por dois (3/2), quatro por três (4/3) e nove por oito (9/8), a divindade preencheu todos os intervalos de quatro por três (4/3) com um intervalo de nove por oito (9/8), deixando em todos eles uma fração, de forma que o intervalo restante fosse expresso pela relação existente entre os números duzentos e cinqüenta e seis e duzentos e quarenta e três (256/243). Foi assim que ele [Deus] empregou toda a mistura de onde retirara aquelas partes.

 

Sua composição e atuação

Toda essa composição [feita como um imenso segmento de reta], ele dividiu  em duas metades, no sentido do comprimento, e as cruzou pelo meio, dando-lhes a forma de um X; vergou-as em círculos e uniu as extremidades de cada uma consigo mesma e com a da outra no ponto oposto de sua intercessão. Depois, envolveu-as no movimento que se processa uniformemente no mesmo lugar, deixando exterior um dos círculos, e o outro, interior. O movimento exterior ele denominou movimento da natureza do Mesmo, e o do círculo interior, movimento da natureza do Outro. Dirigiu o movimento do Mesmo na direção do lado direito, e o do Outro, em diagonal esquerda [a eclíptica zodiacal], dando preeminência à revolução do Mesmo e Semelhante [o movimento celeste diário], pois foi a única que ele não dividiu. Mas a revolução interior ele cortou seis vezes, em sete círculos desiguais [as órbitas dos planetas], correspondendo separadamente aos intervalos do duplo (2, 4, 8) e do triplo (3, 9, 27), à razão de três de cada qualidade (2, 3, 4, 8, 9, 27). Determinou que os círculos se movimentassem em sentido contrário uns dos outros, sendo três com igual velocidade e quatro com velocidades diferentes, tanto entre eles mesmos como em relação aos três primeiros, porém, sempre na devida proporção.

Concluída a composição da alma, de acordo com a mente de seu autor, organizou dentro dela o universo corpóreo e uniu ambos pelos respectivos centros. Então, a alma entretecida em todo o céu, do centro à extremidade, e envolvendo-o em círculo por fora, sempre a girar em torno de si mesma, inaugurou para sempre o divino começo de uma vida perpétua e inteligente. Assim formou-se, de uma parte, o corpo visível do céu, e da outra, a alma invisível, porém, participante de razão e de harmonia, a melhor das coisas criadas pela natureza mais inteligente e eterna.

(...)

  

O tempo

Quando o pai percebeu vivo e em movimento o mundo que ele havia gerado à semelhança dos deuses eternos, regozijou-se, e na sua alegria determinou deixá-lo ainda mais parecido com seu modelo. E por ser esse modelo um animal eterno, cuidou de fazer também eterno o universo, na medida do possível. Mas a natureza eterna desse ser vivo não podia ser atribuída em toda a sua plenitude ao que é gerado [o universo]. Então, pensou em compor uma imagem móvel da eternidade, e, ao mesmo tempo em que organizou o céu, fez da eternidade que perdura na unidade essa imagem eterna que se movimenta de acordo com o número, e a que chamamos tempo. E como antes do nascimento do céu não havia nem dias nem noites, nem meses nem anos, foi durante aquele trabalho que ele cuidou do seu aparecimento. Todos eles são partes do tempo, que indevidamente ou por ignorância atribuímos à essência eterna. (...)

 

O movimento celeste

Seja como for, o tempo nasceu com o céu, para que, havendo sido criados concomitantemente, se dissolvessem juntos, caso venham algum dia a acabar; foi feito segundo modelo da natureza eterna, para que se lhe assemelhasse o mais possível. Porque o modelo existe desde toda a eternidade, enquanto o céu foi, é e será perpetuamente na duração do tempo.  O nascimento do tempo decorre da sabedoria e desse plano da divindade, e, para que o tempo nascesse, também nasceram a Lua e os outros cinco astros denominados errantes ou planetas, para definir e conservar os números do tempo. Depois de formar os corpos de todos eles, a divindade os colocou nos circuitos em que se move a revolução do Outro, sete corpos em sete órbitas: a Lua, no primeiro e mais próximo da terra; o Sol, no segundo, acima da terra; depois, a Estrela da Manhã [Vênus] e a consagrada a Hermes [Mercúrio], em círculos diferentes, que se movimentam com velocidade igual à do Sol, mas dotadas de poder contrário a ele. Essa a razão de se alcançarem uns aos outros, o Sol, a Estrela de Hermes e a da Manhã (...).

Em resumo: quando cada um dos seres que deviam cooperar na criação do tempo iniciou o movimento apropriado e, com corpos unidos por laços animados, adquiriram vida e aprenderam as respectivas tarefas, entraram de deslocar-se na órbita do Outro, que é oblíqua e corta a do Mesmo e por ele é dominado, alguns movimentando-se em círculos maiores, outros em menores, com maior velocidade os dos círculos menores e mais lentamente os dos maiores. Assim, em virtude do movimento do Mesmo, os que se deslocam mais depressa parecem ser alcançados pelos mais lentos, que eles, em verdade, alcançam. Porque o movimento do Mesmo imprime a todos os círculos uma torção em espiral, e pelo fato de se moverem ao mesmo tempo em direções opostas, faz com que o corpo que se afasta mais lentamente desse movimento, que é, de fato, o mais rápido, pareça acompanhá-lo mais de perto. (...) É fácil compreender que o número perfeito do tempo enche o ano perfeito, no momento em que as oito revoluções, com suas diferentes velocidades, completaram juntas seu curso e voltaram ao ponto de partida, calculadas aquelas pelo círculo do Mesmo na sua marcha uniforme.

(...) 

As estrelas

A espécie divina [de seres celestes, as estrelas], em sua quase totalidade ela compôs de fogo, para que fosse a mais brilhante e bela de ver e, à semelhança do universo, deu-lhe a forma de esfera perfeita e a colocou na inteligência do Melhor, para fazer-lhe companhia, distribuindo-a em toda a rotundidade do céu, para que fosse um verdadeiro cosmo, enfeitado em toda a sua variedade. A cada um dos deuses [essas estrelas] atribuiu dois movimentos, sendo um no mesmo lugar e uniforme [a rotação própria de cada estrela], porque cada divindade tem sempre os mesmos pensamentos acerca das mesmas coisas , e o outro, um movimento progressivo, por ser dominado pela revolução do Mesmo e Semelhante [o movimento celeste diário]; mas deu-lhes imobilidade e estabilidade com relação aos outros cinco movimentos [o de cada planeta], para que cada um atingisse a mais alta perfeição de que fosse capaz. Essa, a causa de haverem nascido os astros não errantes, animais divinos e eternos que giram sempre uniformemente no mesmo lugar. Os astros sujeitos à reversão e que nesse sentido viajam no céu [os planetas], nasceram da maneira descrita acima. A terra, ele dispôs para ser nossa nutridora, fazendo-a girar em torno do eixo que atravessa o universo, guarda e artífice da noite e do dia...

—  Platão

Timeu, 33b-40b.

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Apêndice (vídeo):

Explicação da visão platônica do universo (em espanhol)

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