ESTOU TÃO CANSADA…
Helena, 37 anos, negra, casada, residente em São Paulo, busca atendimento com a médica de família de seu convênio por vir se sentindo muito cansada nos últimos tempos. É psicóloga e trabalha em período integral em seu consultório particular. Costumava praticar musculação, mas deixou a atividade há 6 meses por “falta de energia”. Queixa-se também de unhas quebradiças e queda de cabelo, além de palpitações e tontura esporadicamente. Os sintomas estão se intensificando e causando limitações nas atividades diárias. Nega alteração de peso. Diz ter alimentação balanceada e comer frutas e verduras, porém há 8 anos é vegetariana (mantém ingesta de ovos, leite e derivados). Tem histórico de duas gestações normais (filhos de 11 e 9 anos- ambos saudáveis), com aleitamento até 1 ano de idade cada. Usou DIU de cobre por muito tempo, mas retirou há 5 anos quando passou a se relacionar com outra mulher. Desde então não realizou mais avaliações ginecológicas, uma vez que seu médico lhe disse que não havia mais necessidade de coletar papanicolau porque “não fazia mais sexo”. Considera seu fluxo menstrual moderado a intenso, com ciclos regulares a cada 26 dias e duração de 7 dias. Nega histórico de cirurgias ou doenças prévias. Ao exame encontrava-se em bom estado geral, hidratada, anictérica, mucosas hipocoradas (2+/4+), PA 120/80 mmHg, FC 94 bpm. Ausculta cardíaca apresentava discreto sopro sistólico. Aparelho respiratório e abdome sem alterações. Foram solicitados exames laboratoriais, cujos resultados são apresentados na tabela a seguir:
Ao final da consulta prescreveu a medicação necessária para o tratamento de sua patologia e combinou de retornar brevemente para realizar avaliação ginecológica.
IDENTIFICAÇÃO: Helena, 37 anos, negra, casada, residente em São Paulo
PROBLEMAS: grifados no texto
HIPÓTESES:
As queixas clínicas de Helena como falta de energia há 6 meses, unhas quebradiças, queda de cabelo, palpitações e tonturas esporádicas podem ser sugestivas de uma anemia, a partir do exame laboratorial essa hipótese fica mais palpável. eritrócitos, hemoglobina e hematócrito abaixo dos valores de referência. além do ferro sérico e da ferritina, que também estão abaixo.
o fato do VCM estar diminuído indica que o volume das hemácias esta menor, sendo sugestivo de anemia microcítica
Por conta do ferro estar baixo, não está tendo produção de hemoglobina suficiente sugerindo o aparecimento de células hipocrômicas.
O fato de Helena ser ovolactovegetariana há 8 anos ( não come carne vermelha, que é a principal provedora de ferro na alimentação) e usado diu de cobre durante muito tempo, que aumenta a intensidade do fluxo menstrual. Ambos contribuem para um quadro de anemia.
O sopro sistólico de Helena e as palpitações podem ser causados pela anemia, que “afina” o sangue, exigindo mais do coração.
Por conta de Helena ter relações com mulheres, ela retirou o DIU e desde entao nao realizou mais avaliacoes ginecologicas, pois o médico disse que ela “nao fazia mais sexo”, afirmacao equivocada do profissional, que envolve preconceito.
QUESTÕES DE APRENDIZAGEM
Caracterize anemia e seus tipos.
Epidemiologia da anemia.
fatores de risco para anemia ferropriva. (avaliação nutricional)
fisiopatologia da anemia ferropriva.
quadro clínico e complicações (sopro sistólico e palpitações) da anemia ferropriva
diagnóstico da anemia ferropriva
tratamento da anemia ferropriva
diagnóstico diferencial da anemia ferropriva
como se dão os cuidados ginecológicos para população LGBTQIA +
Anemia relativa: produção normal, mas está com uma hemodiluição (aumento do volume plasmático no líquido)
Anemia verdadeira:
Síntese Individual:
1.Caracterize anemia e seus tipos.
Classificação e causas das anemias
As anemias podem ser classificadas do ponto de vista fisiológico e morfológico. São frequentemente utilizadas ambas as abordagens no diagnóstico diferencial das anemias e muitas vezes mais de um mecanismo podem estar envolvidos.
A anemia pode ser categorizada do ponto de vista fisiológico em alterações na produção efetiva dos eritrócitos, na qual a taxa de produção está diminuída, e nos distúrbios em que há destruição ou perda de eritrócitos.
A classificação morfológica baseia‐se no volume corpuscular médio (VCM), segundo o qual as anemias podem ser divididas em microcíticas (VCM abaixo do normal para sexo e idade), macrocíticas (VCM acima do valor esperado para sexo e idade) e normocítica (VCM dentro dos valores da normalidade).
A anemia que ocorre no período neonatal é decorrente de hemorragia, hemólise e hematopoese deficiente. Nas anemias por hemorragia, encontra‐se história de sangramento no neonato ou acidente obstétrico. A anemia pode ainda ser determinada por coagulação intravascular disseminada (CIVD), trombocitopenias e doença hemorrágica do recém‐nascido. A hemólise geralmente é consequente a alterações de membra‐ na eritrocitária, incompatibilidade sanguínea materno‐fetal, defeitos enzimáticos e hemoglobinopatias.
Sinais/sintomas
Mudanças na coloração da urina e icterícia sugerem anemia hemolítica.
Sangramento nas fezes, hematêmese, epistaxe importante ou perda menstrual excessiva sugerem anemia por perda sanguínea e/ou deficiência de ferro.
Atraso no desenvolvimento neuropsicomotor pode estar associado com deficiência de ferro, deficiência de vitamina B12 e ácido fólico e com anemia de Fanconi.
Sintomas infecciosos, como febre ou tosse, e aplasia secundária a hepatite sugerem etiologia infecciosa da anemia.
Fatores dietéticos
Dieta pobre em ferro, vitamina B12, ácido fólico e outros oligoelementos sugerem anemia carencial.
Introdução de leite de vaca antes do 1o ano de vida sugere anemia por deficiência de ferro.
História de pica, geofagia ou pagofagia sugere presença de deficiência de ferro.
2. Epidemiologia da anemia.
Anemia Ferropriva
Incide preferentemente nas mulheres em idade fértil e em crianças, sendo mais rara nos homens.
De acordo com os dados sobre a taxa de hemoglobina da população mundial, da WHO, a anemia ferropriva está presente em 30% dos indivíduos do planeta, sendo menos freqüente nos países desenvolvidos.
Na anemia ferropriva há um balanço negativo de ferro, isto é, a ingestão deste elemento é menor do que a necessidade do organismo. Como vimos, o ferro é armazenado na forma de ferritina e de hemossiderina. Nos homens, existem 600-1.200 mg de ferro estocado, enquanto nas mulheres esta reserva é inferior, de 100-400 mg. Daí a maior incidência de anemia ferropriva no sexo feminino.
Os principais grupos de risco para desenvolver carência de ferro são:
Crianças entre 6 meses e 2 a 3 anos.
Gestantes.
Doadores regulares de sangue.
Atletas em treinamento.
Comunidades com baixa ingestão de ferro heme.
3. Fatores de risco para anemia ferropriva. (avaliação nutricional)
A deficiência de ferro se instala por mecanismos diversos:
Aumento da necessidade.
Excesso de perda (hemorragias).
Má-absorção do ferro da alimentação.
Dieta deficiente de ferro.
Etiologia
A deficiência de ferro ocorre quando sua demanda é maior do que sua absorção pela dieta. Exemplos dessa situação são a gravidez e o crescimento acelerado na infância.
A gravidez é um período marcado por grande aumento da demanda para suprir, além das perdas basais (± 230 mg), as necessidades do feto (± 270 mg), da placenta e do cordão umbilical (± 90 mg), do aumento da massa eritro-citária (± 450 mg) e as perdas por ocasião do parto (± 150 mg).
Nas crianças de até 2 anos de idade, o crescimento acelerado está frequentemente associado ao erro alimen-tar, favorecendo o balanço negativo de ferro e a instalação da anemia ferropênica.
Fora das condições fisiológicas de aumento da demanda, a causa mais comum de anemia ferropênica em adultos é a perda de sangue. Considerando que 1 mL de sangue contém cerca de 0,5 mg de ferro, perdas de 3 a 4 mL/dia (1,5 a 2 mg de ferro) são suficientes para causar um balanço negativo de ferro. A dieta deficiente isolada não é causa frequente de carência de ferro, mas a sua associação com perdas excessivas ou com o aumento da demanda aumenta o risco de instalação de anemia.
Nas mulheres em idade reprodutiva, a principal causa é a perda menstrual excessiva. As perdas menstruais dependem da intensidade do fluxo, sendo em média 30 mL, podendo variar amplamente de mulher para mulher, mas sendo geralmente constantes na mesma mulher.
Nas mulheres após a menopausa e nos homens, as perdas gastrintestinais são as mais frequentes. Nos indivíduos acima de 65 anos, é relevante a associação entre neoplasia gastrintestinal e anemia ferropênica.
Os pacientes com insuficiência renal em tratamento com hemodiálise podem tornar-se deficientes em ferro por conta das restrições da dieta, das perdas na diálise e da estimulação exógena da eritropoese pela eritropoetina.
Os doadores habituais de sangue, especialmente mulheres, podem eventualmente sofrer depleção dos estoques de ferro, uma vez que 500 mL de sangue doado representam uma perda de aproximadamente 250 mg de ferro.
Deficiência de ferro tem sido observada também em corredores regulares, competitivos e de longa distância. Parecem fatores importantes
para perda de ferro nesta população a hemólise mecânica que pode acompanhar o exercício extenuante, resultando em hemoglobinúria, e a perda sanguínea nas fezes que, após uma corrida ou um treinamento intenso, pode variar de 2 a 7 mL/dia.
Outra causa de balanço negativo de ferro é a diminuição da absorção. A causa mais comum de diminuição de absorção de ferro é a acloridria. A acidez gástrica facilita a absorção do ferro não heme, estando tal absorção muito prejudicada nos indivíduos com gastrite atrófica. As gastrectomias causam o mesmo efeito, sendo a diminuição da absorção agravada quando há também exclu-são do trânsito pelo duodeno. As cirurgias bariátricas também podem causar dificuldade de absorção de ferro.
Na doença celíaca, a deficiência de ferro ou a anemia ferropênica pode ser a primeira manifestação, na ausência de queixa de diarreia. H. pylori, com ou sem gastrite autoimune coexistente, tem sido implicada como causa de anemia ferropênica inexplicada ou resistente ao tratamento.
Ferro heme x ferro não heme
4. Fisiopatologia da anemia ferropriva.
Processo do uso do ferro -> metabolização do ferro
Formação da hemoglobina (4 Fe -> 1 hb)
Classificação fisiopatológica:
Do ponto de vista fisiopatológico, as anemias classificam-se em:
1. Anemias por falta de produção ou hiporregenerativas.
2. Anemias por excesso de destruição ou regenerativas.
3. Anemias por perdas sanguíneas.
Anemias por falta de produção ou hiporregenerativas
São caracterizadas por contagem absoluta de reticulócitos (porcentagem de reticulócitos vezes o número de eritrócitos) abaixo de 50.000/mm³. São sempre decorrentes de produção deficiente de glóbulos vermelhos por acometimento primário ou secundário da medula óssea ou por falta de fator estimulante da eritropoese (eritropoetina) ou ainda pela carência de elementos essenciais à eritropoese (ferro, vitamina B12 e ácido fólico). Podem também acompanhar doenças inflamatórias, infecciosas e neoplásicas (anemia de doenças crônicas, muitas vezes denominada anemia da inflamação).
Anemias por excesso de destruição ou regenerativas
As anemias regenerativas são definidas como anemias com contagens elevadas de reticulócitos (acima de 100.000/ mm3). Essa condição é típica das anemias hemolíticas, mas pode ocorrer também após perdas agudas de sangue. Sob estimulação máxima, a medula óssea pode aumentar sua produção em 6 a 8 vezes. Com compensação medular ideal, a sobrevida dos glóbulos vermelhos na circulação pode encurtar para 15 a 20 dias, sem o desenvolvimento de anemia, mas com a presença de reticulocitose (estado hemolítico compensado).
Quando a taxa de destruição supera a capacidade de produção da medula óssea, instala-se o quadro de anemia hemolítica. A hemólise pode ocorrer predominantemente na circulação (intravascular) ou, na maioria das vezes, no interior dos macrófagos teciduais (extravascular). Laboratorialmente, as anemias hemolíticas se caracterizam por reticulocitose, aumento da bilirrubina indireta, aumento de desidrogenase lática (DHL), redução de haptoglobina e, muitas vezes, alterações características no sangue periférico. Elas podem ser causadas por defeitos. A intrínsecos dos eritrócitos ou podem ser secundárias a agressões aos glóbulos vermelhos por agentes extrínsecos, maioria dos defeitos intrínsecos é hereditária, com exceção da hemoglobinúria paroxística noturna, que é causada por um defeito intrínseco adquirido.
Anemias por perdas
São decorrentes de perdas agudas ou crônicas de sangue. As perdas agudas (anemias pós-hemorrágicas) podem representar uma situação de emergência e são compensadas pela medula óssea normal, desde que os estoques de ferro estejam preservados. Os sintomas dependem da intensidade da perda. Perdas agudas de 500 a 1.000 mL (10 a 20% do volume sanguíneo) podem ser assintomáticas ou pouco sintomáticas em indivíduos sem doenças associadas. As perdas crônicas causam espoliação de ferro e, consequentemente, anemia por falta de produção (anemia ferropênica).
Classificação morfológica
As anemias podem ser classificadas também de acordo com aspectos morfológicos. A classificação morfológica baseia-se nos índices hematimétricos, que atualmente são determinados por contadores eletrônicos de células. Assim, juntamente com as determinações da concentração de hemoglobina, do número de hemácias e do hematócrito, são fornecidos também o volume corpuscular médio (VCM), a hemoglobina corpuscular média (HCM), a concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM) e o red cell distribution width (RDW). O RDW é um índice que reflete o grau de anisocitose, que é a variação de tamanho dos eritrócitos. Embora não seja utilizado para a classificação das anemias, é importante ressaltar que, nas anemias adquiridas, ele se altera antes do VCM, quando começam a coexistir células de tamanho maior ou menor com as de tamanho normal e o número delas ainda não é suficiente para alterar a média e refletir-se no VCM. De acordo com o VCM (medido em fentolitros – fl), as anemias podem ser classificadas do ponto de vista morfológico, conforme segue:
Microcíticas (VCM < 80 fl).
Macrocíticas (VCM > 100 fl).
Normocíticas (VCM 80 a 100 fl).
5. Quadro clínico e complicações (sopro sistólico e palpitações) da anemia ferropriva
Anamnese
Como a instalação da anemia decorrente de carência de ferro é lenta, o organismo se adapta e suporta, de forma praticamente assintomática, níveis muito baixos de hemoglobina. Os sintomas mais comuns, quando presentes, são relacionados à anemia: fadiga, perda da capacidade de exercer as atividades habituais, irritabilidade, cefaleia, palpitações e dispneia aos esforços podem ocorrer.
Fadiga é particularmente comum, presente inclusive na deficiência de ferro sem anemia. O desempenho muscular encontra-se prejudicado, assim como a capacidade de trabalho. Um sintoma peculiar é a perversão do apetite (pica), em que o paciente relata vontade de comer terra, reboco de parede, tijolo, gelo, arroz cru, alimentos crocantes etc.
A deficiência de ferro é sempre secundária, portanto é fundamental investigar a causa básica para estabelecer o tratamento correto. Nas crianças, é importante afastar condições adversas ao nascimento (parto gemelar, pre-maturidade, ordenha de cordão), assim como detalhar os hábitos alimentares, principalmente a partir dos 6 meses de idade.
Nas mulheres em idade reprodutiva, a principal causa, como já citado, é a perda menstrual exagerada. Nem sempre é fácil quantificar esta perda, principalmente nos casos de mulheres com perdas abundantes, porém constantes. O interrogatório cuidadoso auxilia o diagnóstico. Deve incluir o número de absorventes utilizados por dia, a incapacidade de controlar o fluxo utilizando apenas absorventes, a presença e o tamanho de coágulos (maiores que 2 cm ou se persistirem mais do que 1 dia), o intervalo entre os ciclos e a duração deles, laqueadura prévia e uso de DIU, que aumentam as perdas.
A história gestacional e os antecedentes obstétricos são informações relevantes. Nas mulheres que não menstruam e nos homens, deve-se questionar perdas fecais, presença de hemorróidas, hábito intestinal, uso de medicamentos, especialmente antiinflamatórios, antiagregantes e anticoagulantes, an-tecedentes mórbidos como cirurgias gástricas e anemia previamente tratada com ferro. Disfagia progressiva pode acompanhar a anemia ferropênica (síndrome de Plummer Vinson ou de Paterson Kelly). Nos adultos, a caracterização dos hábitos alimentares tem importância, porque as pessoas com baixa ingestão de ferro heme, assim como os vegetarianos, têm estoques menores de ferro, sendo mais suscetíveis à instalação da anemia ferropênica na presença de aumento da demanda ou de perdas.
Exame físico:
Pouco se encontra além de mucosas descoradas. Geralmente, os pacientes não apresentam taquicardia, por conta da adaptação à anemia. A língua pode perder as papilas filiformes. Nos casos de longa duração, pode haver queilite angular (Figura 1) e alterações ungueais (estrias longitudinais e deformidades como unha em colher). Nos casos associados à telangiectasia hemorrágica familiar (doença de Rendu Osler Weber) (Figura 2), pode haver alterações características na pele e mucosas.
6. Diagnóstico da anemia ferropriva
Diagnóstico/exames complementares:
As principais alterações laboratoriais encontradas nas anemias por deficiência de ferro estão apresentadas no Quadro 2.
A anemia ferropênica é caracteristicamente hipocrômica e microcítica (volume corpuscular médio < 80 fl) (Figura 3). Do ponto de vista fisiopatológico, é uma ane-mia por falta de produção, causada pela depleção de um dos elementos essenciais à eritropoese, no caso o ferro, por-tanto com número inapropriadamente baixo de reticulócitos para o grau de anemia. A deficiência de ferro ocorre em vários estágios. Antes da instalação da anemia, existe depleção dos estoques de ferro, caracterizada por níveis re-duzidos de ferritina sérica (ferritina sérica ≤ 12 ng/mL)2 seguida por aumento da capacidade total de ligação de fer-ro, diminuição da saturação da transferrina, aumento dos receptores solúveis da transferrina, eritropoese deficiente em ferro com o aparecimento de microcitose e, finalmen-te, queda da concentração de hemoglobina e anemia. Os índices hematimétricos, como volume corpuscular médio (VCM), hemoglobina corpuscular média (HCM) e concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM), estão reduzidos, particularmente o VCM e o HCM. O RDW (red cell distribution width), um índice que reflete o grau de anisocitose (índice de variação de volume) dos glóbulos vermelhos, aumenta à medida que a microcitose se instala. É o parâmetro que se altera mais precocemente nas anemias por deficiências nutricionais, especialmente nos casos de anemia por deficiência de ferro.
A redução da ferritina sérica é o melhor exame para comprovar deficiência de ferro. A concentração de ferritina normal ou elevada, no entanto, não exclui carência, visto que a ferritina pode aumentar em doenças inflamatórias, infecciosas e neoplásicas e também após a ingestão de bebidas alcoólicas. A dosagem sérica dos receptores da transferrina, um exame mais novo e ainda não adequada-mente padronizado para uso na rotina, é inversamente re-lacionada à gravidade da deficiência de ferro e pode ser útil para distinguir deficiência de ferro de anemia das do-enças crônicas. Em situações de exceção, em que coexistem diferentes doenças e é importante a confirmação da ferropenia, pode ser necessária a realização de mielograma com coloração pelo azul da Prússia, para determinar a presença ou a ausência de ferro nos grumos do esfregaço de medula óssea (Figura 4). Para evitar resultados falso-negativos, o material analisado deve ser rico em grumos. Após o diagnóstico laboratorial de anemia ferropênica, deve ser feita a investigação rigorosa de perdas, começando pelas mais comuns (ginecológicas e gastrintestinais) (Figura 6). As perdas intestinais intermitentes podem ser difíceis de diagnosticar, e a pesquisa deve ser exaustiva. Em uma coorte de indivíduos acima de 65 anos com anemia ferropênica, foi encontrada neoplasia gastrintestinal em 9% dos casos, durante a investigação. Nos casos associados a disfagia (síndrome de Plummer Vinson ou Paterson Kelly), a endoscopia digestiva alta revela a presença de pregas na mucosa esofágica, que podem eventualmente causar estreitamento do lúmen e obstruções de graus variados.
Estágios da instalação da deficiência de ferro com as respectivas alterações laboratoriais.
Depleção de estoques de ferro;
Ausência de ferro na MO Ferritina sérica;
Eritropoese deficiente em ferro capacidade total de ligação de ferro saturação de transferrina receptores solúveis da transferrina Anisocitose ( RDW) Microcitose ( VCM) Hipocromia ( HCM).
Anemia ferropênica Hb .
Na ausência de sintomas, métodos de triagem não invasivos podem ser úteis para pesquisa de doença celíaca (anticorpos antiendomísio e antigliadina), de gastrite atrófica autoimune (gastrina sé-rica, anticorpos anticélula parietal) e de infecção por H. pylori (teste respiratório da urease).
7. Tratamento da anemia ferropriva
Tratamento:
O tratamento de escolha é a reposição de ferro por via oral, além do tratamento, sempre que possível, da na dose de doença de base. O composto mais comumente utilizado para reposição de ferro é o sulfato ferroso 120 a 180 mg de ferro elementar/dia. Efeitos colaterais ocorrem em 10 a 20% dos pacientes, sendo os mais comuns a distensão abdominal, a diarreia e a obstipação intestinal. A administração do medicamento junto com as refeições diminui o desconforto abdominal, levando à melhor adesão ao tratamento, o que compensa a menor absorção. Nos casos de intolerância, pode-se tentar a substituição por medicamentos líquidos, os quais permitem melhor titulação da dose. Após três semanas de tratamento, observa-se um aumento médio de 2 g/dL na dosagem de hemoglobina. O VCM aumenta gradativamente à medida que a população microcítica vai sendo substituída pela população normal. Os reticulócitos podem aumentar, mas não são um indicador confiável de resposta.
O tratamento visa a normalização da concentração de hemoglobina e a reposição dos estoques de ferro. Dependendo da doença de base, dura em torno de 6 meses. Após a normalização dos níveis de hemoglobina e do VCM, deve-se continuar o tratamento por 3 a 6 meses para reposição dos estoques de ferro.
A seguir, estão detalhados os principais pontos do tratamento:
1. Repor os estoques de ferro é apenas parte do tratamento.
2. Identificar e tratar a causa de base é fundamental:
a) A causa é definida em 80 a 85% dos casos.
b) Compostos de ferro podem ser administrados por via oral e endovenosa.
3. Terapêutica de escolha:
a) Compostos de ferro por via oral (drágeas, xaropes, gotas pediátricas). A dose é calculada com base na quantidade de ferro elementar por unidade da preparação.
b) Doses: para adultos, de 120 a 180 mg de ferro elementar/dia, divididos em 2 a 3 tomadas, durante as refeições.
4. Aspectos práticos:
a) A absorção é melhor com o estômago vazio.
b) A intolerância gastrintestinal é maior com o estômago vazio.
c) É sábio recomendar a ingestão do medicamento durante as refeições.
d) A diminuição da absorção é compensada pelo aumento da adesão ao tratamento.
e) A absorção aumenta em presença de suco de laranja e de carne.
f) É inibida por cereais que diminuem o pH gástrico houver intolerância: chá, leite e medicações
g) Não é necessário utilizar as doses máximas se
h) Preparações líquidas que permitem titular as do-ses devem ser tentadas antes de desistir da via oral.
5. Falhas de tratamento:
a) Falta de adesão é a causa mais comum.
b) Diagnóstico incorreto: afastar talassemia minor e anemia de doenças crônicas.
c) Doença crônica associada: infecção, neoplasia, colagenoses.
d) Sangramento excessivo com perdas maiores que a reposição.
e) Outras deficiências associadas (vitamina B12, ácido fólico).
f) Má absorção do medicamento (rara).
6. Tratamento parenteral:
a) Tão efetivo quanto o oral, mais perigoso e de custo mais elevado.
b) Indicações:
– Intolerância real ao medicamento por via oral.
– Perdas muito intensas, mais rápidas do que a reposição oral (p. ex., telangiectasia hemorrágica hereditária, angiodisplasia intestinal).
– Doenças do trato gastrintestinal nas quais os sintomas possam se agravar por tratamento oral (p. ex., doenças inflamatórias intestinais).
– Necessidade de reposição rápida dos estoques, como ocorre antes de grandes cirurgias.
– Tratamento da anemia da insuficiência renal crônica em fase dialítica e, eventualmente, em fase pré-dialítica.
Excesso de Ferro: hemocromatose
Lembrar a nutrição é uma parte do tratamento
Orientar o uso de complementação por 6 meses
8. Diagnóstico diferencial da anemia ferropriva
Diagnóstico diferencial
No Capítulo 5 desta seção encontra-se o algoritmo diagnóstico para as anemias hipocrômicas e microcíticas.
O diagnóstico diferencial deve ser feito com outras causas de microcitose, como talassemias, anemia sidero-blástica congênita (rara), envenenamento por chumbo (raro) e, eventualmente, anemia das doenças crônicas. Entre estas, as formas de menor gravidade da betatalassemia são as mais comuns. O diagnóstico de betatalassemia é feito pela eletroforese de hemoglobina, que evidencia níveis elevados de hemoglobina A2.
A anemia das doenças crônicas é a mais frequentemente encontrada em pacientes internados em hospitais gerais e pode ser discretamente microcítica. Ela é de intensidade leve a moderada e caracteriza-se por ferro sérico reduzido, capacidade total de ligação do ferro normal ou reduzida, saturação da transferrina normal ou pouco diminuída e ferritina elevada. Um outro tipo de anemia microcítica é a sideroblástica congênita, uma doença rara que se caracteriza pela presença de sideroblastos em anel ao mielograma e por níveis elevados de saturação da transferrina e de ferritina sérica. Um cer-to contingente de casos de microcitose e hipocromia, com ou sem anemia, permanece sem diagnóstico após a exclu-são das principais causas. Estes casos podem ser decorren-tes de alfatalassemia.
Parasitoses, doença inflamatória crônica, celíaca, talassemia (exame de eletroforese de hemoglobina), anemia falciforme (eletroforese, teste falciforme)
9. Como se dão os cuidados ginecológicos para população LGBTQIA +
Uma pergunta que frequentemente mulheres cis lésbicas ouvem (e se sentem mal ao ouvir) é se não “sentem falta” de nada durante a relação sexual, pensamento que vem da centralidade do pênis no pensamento da cultura ocidental. Entretanto, pesquisas confirmam que lésbicas referem ter mais orgasmos em suas relações sexuais do que mulheres heterossexuais, o que estaria ligado a uma maior frequência de sexo oral e a relações sexuais mais longas. Mulheres de forma geral conseguem chegar ao orgasmo quando, além da penetração vaginal, a relação sexual inclui beijos, estimulação manual da vulva e sexo oral. Entretanto, queixas relacionadas à satisfação sexual são comumente ligadas a problemas de autoimagem e autoestima, questões de saúde mental, a um relacionamento saudável e ao uso de medicamentos ou substâncias, o que sempre impõe investigação quando a cis lésbica tem quaisquer desses problemas.
Alguns fatores contribuem para a escassez de dados sobre a transmissão de infecções na prática sexual entre mulheres cis. O primeiro é a invisibilidade de lésbicas na sociedade em geral, seguido do silenciamento de suas pautas dentro do movimento LGBTQIA+. Outro fator é a centralidade no pênis e o não reconhecimento social da relação sem penetração peniana como ato sexual, construindo o mito de que sexo entre mulheres não é sexo, caracterizando-o como “apenas preliminares”, “brincadeira” ou masturbação. Além disso, há dificuldade em realizar pesquisas com populações marginalizadas, pelo medo de exposição dessas pessoas e de se colocarem em risco ao se identificarem para participar de estudos.
A maioria dos estudos sobre o risco de infecções sexualmente transmissíveis (IST) entre mulheres analisa o grupo de mulheres cis que fazem sexo com mulheres cis (McSMc), sem especificar a diferença entre aquelas que tiveram ou não relação com homens cis. Um estudo brasileiro, com 150 McSMc, relatou prevalência de papilomavírus humano (45,3%), Chlamydia trachomatis (2%), HIV (0,7%), Trichomonas vaginalis (1,3%), sífilis (1,3%) e Neisseria gonorrhoeae (0,7%) neste grupo19. Entre mulheres que nunca tiveram relação com homens cis, um estudo norte-americano demonstrou que até 42% tinham anticorpos para HPV-6 e 26% para HPV-1620.
Em geral, as cis lésbicas têm índices de IST menores do que as bissexuais. Entretanto, no caso da vaginose bacteriana existe um risco maior entre McSMc do que em mulheres cis heterossexuais, possivelmente relacionado ao tipo de prática sexual e à possibilidade de compartilhamento de lactobacilos no contato sexual e mudança da flora vaginal20.
Existe a possibilidade de transmissão de doenças, como sífilis, clamídia, gonorreia, HPV e herpes através do contato do fluido, da mucosa vaginal ou anal com a boca, com as mãos, com outra vagina ou através de acessórios sexuais. No caso de herpes, por exemplo, estudo norte-americano demonstrou que mulheres cis com relações com outras mulheres cis no último ano tiveram 30% de sorologia positiva; 36% se relação com outra mulher cis ao longo da vida; e 24% para aquelas que nunca tiveram relação homossexual20. Objetos e dedos também podem transmitir bactérias da região anal para a vulva e uretra, aumentando a incidência de infecção urinária por E. coli.
Os principais fatores de risco identificados para IST entre cis lésbicas são múltiplas parcerias, sexo sem métodos de barreira e falta de higienização de objetos sexuais compartilhados. O tabagismo atual ou passado está associado a maior prevalência de IST em cis lésbicas; entretanto, a explicação causal permanece incerta, podendo ser decorrente da alteração dos fluidos vaginais pela nicotina ou ser fator de confusão para outros riscos. O relato de vivências de exclusão e estigma de mulheres lésbicas também está associado ao aumento de duas a seis vezes do risco de IST22.
Quando houver diagnóstico de qualquer IST, estará indicado o tratamento das parcerias sexuais. A vaginose bacteriana deve ser considerada uma IST na relação sexual entre duas pessoas que tenham vagina (mulheres cis lésbicas, homens trans, mulheres trans com neovagina). Não existe, entretanto, recomendação rotineira para o tratamento concomitante das parcerias, embora este possa ser considerado nas situações de vaginose recorrente. Devido à ausência de estudos específicos, os rastreamentos de IST (sorologias – HIV, sífilis, hepatites B e C – e coleta de swab para clamídia e gonorreia) devem ser feitos conforme a idade e o comportamento sexual, de acordo com as indicações para mulheres cis20. Pode haver risco de transmissão de hepatites B e C pelo contato com sangue, e algumas medidas preventivas possíveis são: evitar contato com sangue menstrual na relação, uso de método de barreira, sorologias periódicas para hepatite C de acordo com o risco e vacinação para hepatite B20. A taxa de vacinação para HPV é menor entre cis lésbicas, por acreditarem que não há transmissão do vírus entre elas, embora a indicação da vacina seja a mesma que para a população geral23.
Raras são as ações que afirmam a importância de cis lésbicas frequentarem os serviços de saúde, que orientem seu autocuidado, que considerem suas práticas sexuais nas campanhas pelo sexo seguro e que sensibilizem os profissionais ou serviços de saúde para as especificidades dessa população. São poucos os investimentos no desenvolvimento de métodos de barreira adequados, fazendo com que as lésbicas busquem adaptações para a proteção do contato com a vulva/vagina que nem sempre são factíveis ou seguras. As mais conhecidas estão no Quadro 4.
Alguns sites e sex shops vendem calcinha para sexo oral, conhecida como “calcinha de vênus”. Confeccionada com uma camada fina de látex, foi desenvolvida como um produto para “barrar odores e fluidos da vagina”, mas passou a ser usada por McSMc como método de proteção. Porém, não há estudos sobre sua eficácia, é difícil de encontrar e tem custo elevado. Outro produto, que já foi muito conhecido entre mulheres cis lésbicas para proteção contra IST, é o filme plástico (de policloreto de vinila – PVC), mas esse material é poroso e permite a passagem de vírus e de alguns tipos de bactérias24. Outras recomendações do Quadro 5 podem aumentar a segurança do sexo entre duas mulheres cis lésbicas.