JANELA INDISCRETA
Jeferson, 20 anos, foi levado ao pronto-socorro pelo SAMU após atirar uma pedra em seu pai. Sua mãe conta que ele iniciou uma mudança repentina de comportamento há duas semanas, especialmente um discurso de perseguição, conteúdos místicos e religiosos (acredita ter uma missão divina importante e precisa tirar todo o mal das pessoas), além de que há demônios falando com ele. Ao longo dos últimos dias foi se isolando cada vez mais, deixou de se cuidar, não está
tomando banho e tem ficado muito hostil e agressivo com os familiares.
Em relação ao uso de substâncias psicoativas, mãe relata que Jeferson faz uso de maconha desde os 14 anos, mas sempre em pequena quantidade, cerca de um a dois cigarros por semana. Na infância foi uma criança tímida e de poucos amigos, mas nada que diferenciasse de seus pais.
Durante a entrevista com o profissional de saúde, Jeferson mostra-se pouco colaborativo e tem um ar desconfiado, demora um tempo para começar a falar.
Expõe que trazer para o hospital faz parte do plano maligno de seu pai, já sabe de tudo, pois tem recebido mensagens telepáticas e escutado vozes de homens pedindo para ele fazer coisas, algumas boas, outras ruins. Questionado que vozes são essas, aponta para a janela e os mostra através do vidro, fala em tom baixo, pedindo segredo, pois há telementalizadores espalhados pela sala, além de câmeras e assonobiofonógrafos. Aceita permanecer em observação na enfermaria,
pois isso o afastaria de seu pai por um tempo.
Seus pais se mostram preocupados e questionam o médico se ele ficará assim para sempre ou se é temporário. Recebem as orientações a cerca da importância do tratamento e do acompanhamento para o fechamento do diagnóstico. Como plano de tratamento nessa internação recebe risperidona 2mg, além do apoio da equipe multiprofissional. Enquanto isso, Jeferson olha pela janela aguardando as ordens do que fazer.
Problemas: grifados no texto
Hipóteses:
O quadro de Jefferson pode ser esquizofrenia, que se manifesta em jovens adultos, sendo os fatores de risco: uso de maconha, traumas na infância, aspecto introspectivo, depressão, genética.
Devido ao seu histórico familiar, Jefferson, já apresenta características hereditárias de uma TDM e pelo fator da cronicidade, pode ter evoluído para uma esquizofrenia. Com os seguintes sinais e sintomas; alucinações visuais e auditivas, autocuidado prejudicado, delírio persecutório, agressividade, isolamento social, anedonia, paranoia.
O uso crônico (6 anos) de maconha pode desencadear episódios de esquizofrenia principalmente na idade de desenvolvimento neural e cognitivo.
Antes de concluir o diagnóstico de Jefferson, devemos investigar causas orgânicas como tumor, febre reumática, lúpus, além do uso de substâncias psicoativas.
Risperidona é um antipsicótico de ação rápida e deve ser utilizada em casos agudos. Também pode ser utilizado em transtornos bipolares, TEA, esquizofrenia e irritabilidade.
Questões:
Defina a esquizofrenia e sua epidemiologia.
Explique a fisiopatologia da esquizofrenia.
Caracterize o quadro clínico, diagnóstico e diagnóstico diferencial da esquizofrenia.
Qual o tratamento farmacológico e não farmacológico da esquizofrenia?
Qual o manejo durante uma crise?
Explique o mecanismo de ação da Risperidona.
Psicoses Agudas:
Caracterizam-se pela perda abrupta do contato com a realidade, tornando-se clinicamente perceptíveis em minutos, horas ou dias. São síndromes que se manifestam na forma de alucinações, delírios, pensamento desorganizado, comportamento pouco usual, inquietação, agitação psicomotora e, algumas vezes, na forma catatônica. Podem estar presentes nas seguintes condições médicas:
1. Esquizofrenia: na fase aguda ou produtiva da doença, através de delírios de grandeza, paranoides ou místicos. Apresentam também alucinações auditivas, como vozes de comando, alucinações visuais e comportamento bizarro, catatônico ou agitação psicomotora.
2. Transtornos de Humor: em episódios maníacos com sintomas de euforia, aceleração do pensamento, delírios de grandeza e agitação. Em episódios depressivos com sintomas de tristeza profunda, irritação, anedonia, pensamentos de ruína e lassidão.
3. Psicoses induzidas por intoxicação de substâncias psicoativas: euforia, aceleração do pensamento, comportamento inadequado, podendo ocorrer delírios e alucinações.
4. Delirium: caracterizado por flutuação do nível de consciência, alternando sonolência profunda com alucinações e delírios. Comuns em situações pós-operatórias, ou em pessoas debilitadas por outras doenças.
5. Síndromes de abstinência: pacientes em abstinência de substâncias psicotrópicas podem apresentar psicose. Delirium tremens, causado por abstinência alcoólica, é a mais grave. Instala-se em 24h-48h após abstinência e pode levar à morte em até 30% dos casos.
6. Psicose orgânica ou Síndrome cerebral orgânica: causada por condições médicas não-psiquiátricas, como doenças da tireoide, encefalites, insuficiência hepática, traumas ou processos expansivos crânioencefálicos e doenças autoimunes. A maior chance de erro médico em emergência psiquiátrica é tratar um paciente com uma doença não psiquiátrica como caso puramente psiquiátrico.
Psicoses Transitórias Breves:
São dinâmicas, reativas e podem durar horas ou dias, geralmente mais brandas, sem alucinações. Comuns em pacientes com organização de personalidade limítrofe, quando enfrentam dificuldades nas relações interpessoais. Podem fracassar no teste de realidade, na capacidade de pensar e descarregam seus impulsos diretamente na área motora. Ficam propensos a atos suicidas, homicidas, agressões verbais e/ou físicas. São comuns também o auto-flagelo como cortes na pele ou o bater a cabeça na parede, respondendo até com agitação psicomotora.
Pessoas consideradas saudáveis e sem diagnóstico psiquiátrico prévio, diante de situações de estresse de grande magnitude, podem apresentar sintomas psicóticos transitórios ou desenvolver distúrbios de estresse póstraumáticos.
Psicoses Crônicas:
Psicoses crônicas geralmente são caracterizadas por sintomas residuais crônicos de doenças mentais tais como esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo ou transtorno afetivo bipolar. Também podem estar presentes em pacientes com déficit cognitivo grave, como no retardo mental e nas demências. Tais pacientes apresentam um deterioramento global das funções mentais, com incapacidade de se autogerir e pensamento desorganizado. Geralmente os delírios e alucinações são constantes e, muitas vezes, perturbam menos estes pacientes do que aqueles com quadros agudos.
Costumam vir à emergência trazidos por seus cuidadores devido à exaustão familiar. Em alguns casos, são internados para ajuste de medicação ou para a família poder se reabilitar da exaustão.
Síntese Individual:
1.Defina a esquizofrenia e sua epidemiologia.
O que é esquizofrenia? É possível uma evolução favorável? Como é feito o diagnóstico diferencial?
As estimativas mais recentes indicam uma prevalência do transtorno entre 0,2 e 0,4% da população em geral, com proporção semelhante entre homens e mulheres, mas começando de forma mais precoce e tendendo a maior gravidade entre os homens. É considerada umas das principais causas de perda de anos de vida saudável entre jovens, pois os primeiros sintomas em geral aparecem entre o final da adolescência e o início da vida adulta, gerando, na maioria das vezes, um prejuízo funcional persistente. As mulheres apresentam um segundo pico por volta dos 40 anos.
As pessoas com esquizofrenia têm grande redução em sua expectativa de vida, entre 10 e 20 anos, que vem se acentuando ao longo dos anos. Estima-se que 10% da mortalidade seja por suicídio. No entanto, a principal causa de excesso de mortalidade nesse grupo são as doenças cardiovasculares. Possivelmente, esse aumento da diferença na expectativa de vida entre a população em geral e as pessoas com esquizofrenia reflete maior exposição a fatores de risco cardiovasculares, como obesidade, tabagismo e diabetes, menor adoção de estilo de vida saudável, como atividade física, e menor acesso aos serviços de saúde.
Meio influência;
Drogas;
Genética;
Idade;
2. Explique a fisiopatologia da esquizofrenia.
Ao cunhar o termo demência precoce, Kraepelin deixava claro um raciocínio fisiopatológico. Para ele, a esquizofrenia seria uma apresentação precoce da demência descrita anteriormente por Alois Alzheimer. Essa hipótese foi logo afastada pela ausência de gliose reativa, alteração patológica típica da doença de Alzheimer, mas as repercussões da noção de esquizofrenia como doença neurodegenerativa e de má evolução persistem até hoje, mesmo com os novos dados clínicos e de pesquisa sugerindo a possibilidade de evoluções mais favoráveis.
TEORIA DOPAMINÉRGICA E ALTERAÇÃO DA SALIÊNCIA
A teoria dopaminérgica foi a primeira teoria de neurotransmissores para a esquizofrenia, tendo sido possível graças a compreensão dos mecanismos de ação dos antipsicóticos. Pode-se identificar três formulações para ela.
A primeira, na década de 1960, propunha que o aumento dos níveis de dopamina causaria os sintomas típicos da doença. No entanto, os resultados mostraram grande variabilidade entre os pacientes nas medidas disponíveis para investigar a hipótese.
A segunda formulação propôs que haveria um aumento dos níveis da dopamina em regiões subcorticais e uma redução em regiões pré-frontais, explicando tanto os sintomas positivos como os negativos. Novamente, os dados mostraram resultados conflitantes para suportar essa hipótese.
A terceira formulação, proposta por Kapur, sugere uma perspectiva mais dinâmica, em que haveria uma alteração funcional da transmissão dopaminérgica com liberações de grandes quantidades fora de contexto, o que alteraria um processo cognitivo denominado saliência (a capacidade de atribuir relevância a um objeto ao mudar o foco atencional) – função essencial à sobrevivência e ao convívio social.
A liberação excessiva, fora de contexto, levaria a atribuir saliência de forma errática e inadequada. Em contrapartida, não se atribuiria saliência aos estímulos adequados, o que também causaria uma quebra no padrão de comportamento esperado. O bloqueio de receptores dopaminérgicos D2 pelos antipsicóticos impediria o processo de atribuição aberrante de saliência, mas
1) não reverte os processos que causam a liberação excessiva e fora de contexto;
2) não corrige a redução de atribuição de saliência a estímulos esperados.
OUTRAS TEORIAS DE NEUROTRANSMISSORES
Alterações em vários sistemas de neurotransmissores foram identificadas na esquizofrenia e sugeridas para explicar manifestações específicas da doença.
O sistema glutamatérgico tem se destacado por permitir ligar as evidências que indicam alterações do neurodesenvolvimento encontradas na esquizofrenia e a modulação do sistema dopaminérgico. De fato, em modelos animais, o uso de agentes glutamatérgicos induz não só sintomas positivos, mas também sintomas negativos, enquanto modelos animais com agentes dopaminérgicos mimetizam apenas sintomas positivos. No entanto, até a publicação deste capítulo, nenhum agente glutamatérgico se mostrou eficaz para o controle de sintomas da esquizofrenia.
A teoria serotoninérgica surgiu a partir da observação de que vários agentes alucinógenos apresentavam ação agonista ou agonista parcial em receptores 5-HT2A, como o LSD e a mescalina. Posteriormente, o papel da serotonina foi reforçado, pois a maior parte dos antipsicóticos de segunda geração apresentava importante antagonismo 5-HT2A. Sugeriu-se que essa ação poderia explicar o melhor perfil de efeitos colaterais, em especial, o menor risco de sintomas extrapiramidais (SEPs). Esse efeito seria explicado por interações entre a transmissão dopaminérgica e serotoninérgica.
A teoria serotoninérgica postula que existe excesso de liberação de serotonina pelos receptores 5-HT2A e/ou aumento de sua expressão na região cortical, o que causaria liberação subsequente de glutamato. Por sua vez, o aumento de glutamato em neurônios projetados para a área tegumentar ventral poderia então hiperativar a via mesolímbica, resultando em excesso de dopamina e, por fim, causando delírios ou alucinações auditivas.
Em conjunto, as teorias dopaminérgica, serotoninérgica e glutamatérgica trazem uma compreensão mais integrativa da esquizofrenia.
TEORIA DO NEURODESENVOLVIMENTO
No final dos anos 1980, Weinberger, nos Estados Unidos, e Murray e Lewis, na Inglaterra, propuseram, de modo independente, que a esquizofrenia seria uma doença do neurodesenvolvimento, não neurodegenerativa.
Essa proposta apoiava-se em achados de neuroimagem, genética e epidemiologia. Em resumo, a doença estaria associada a uma vulnerabilidade genética que seria afetada pela exposição precoce ou tardia a fatores ambientais de risco, levando a uma trajetória de desenvolvimento cerebral alterada, propiciando não só o início da psicose, mas a sua persistência, associada a outros prejuízos e sintomas identificados na esquizofrenia.
TEORIA DA DESCONECTIVIDADE
Apesar de o conceito do neurodesenvolvimento representar um avanço em relação à hipótese de que a esquizofrenia seria uma doença neurodegenerativa, os mecanismos envolvidos nesse processo permanecem não completamente elucidados. A teoria da desconectividade, portanto, surge de maneira complementar à teoria do neurodesenvolvimento, propondo um modelo que explique a ligação entre a fisiopatologia molecular e neuronal e o aparecimento dos sintomas e o perfil cognitivo da doença.
Assim, sugere-se que a esquizofrenia seria o resultado de falhas integrativas na conectividade neuronal, mais bem explicada em termos funcionais – como alterações na dinâmica de diferentes regiões corticais que afetam, então, a sua efetividade conectiva – do que em termos estruturais ou anatômicos. De fato, diversos estudos com ressonância funcional encontraram alterações de integração entre regiões e entre redes cerebrais específicas nos pacientes com esquizofrenia, apesar de achados robustos indicando um padrão exclusivo não terem sido identificados ainda.
FATORES AMBIENTAIS
Existem fatores de exposição ambiental consistentemente associados à esquizofrenia, como complicações obstétricas, migração, urbanicidade, uso de maconha e exposição a eventos traumáticos. Essa associação também é complexa e varia para cada fator, mas alguns elementos comuns podem ser identificados:
Não determinam a doença, aumentam o risco. De modo geral, a maior parte das pessoas expostas a esses fatores não desenvolve a doença – por exemplo, indivíduos que migram de um país para outro, ou o conjunto de pessoas que tiveram alguma complicação obstétrica ou mesmo já fizeram uso de maconha. Isso se explica pela baixa incidência da esquizofrenia (1 para 10 mil). Assim, mesmo com um aumento de quatro a cinco vezes no risco para a doença, o risco geral persiste baixo (4 a 5 para 10 mil).
A exposição e o risco subsequente dependem da fase de desenvolvimento. Assim, no estudo de Caspi e colaboradores, houve uma associação para quem fez uso de maconha antes dos 18 anos, mas não para quem iniciou o uso depois. Dessa forma, parece haver uma janela de desenvolvimento para o efeito de cada fator ambiental.
Há sobreposição quanto aos fatores de risco, como violência, migração e urbanicidade. Logo, sua interpretação deve ser cuidadosa, mas a adversidade social emerge como um tema comum, assim como insultos diretos ao cérebro, como uso de substâncias e hipóxia.
FATORES GENÉTICOS
A evidência inicial da participação de fatores genéticos na esquizofrenia foi a observação de haver agregação familiar. Ter um parente de primeiro grau aumenta em 10% a chance de ser afetado. Esse padrão se mantém, e verifica-se que, quanto maior o compartilhamento genético, maior o risco de desenvolver esquizofrenia – no caso de um gêmeo monozigótico ser afetado, há uma chance de 40 a 50% de o outro também ser. Ao considerar que a prevalência de esquizofrenia é estimada em 0,2 a 0,4%, é um aumento exponencial de risco.
A herdabilidade é uma estimativa de quanto um fenótipo é explicado por fatores genéticos. A herdabilidade da esquizofrenia é uma das mais altas entre os transtornos psiquiátricos, com estimativas normalmente em torno de 80%.
No entanto, a busca por genes e variantes genéticas especificamente associados à doença tem sido particularmente difícil. Estudos de genes candidatos trouxeram muitas associações, mas com baixa replicação e especificidade. Os estudos de varredura genômica têm identificado grande número de variantes, mas com baixo risco individual. Assim, parece que o melhor modelo para explicar o risco genético da esquizofrenia é de uma doença complexa, com centenas a milhares de variantes, cada uma conferindo um pequeno risco, mas, se uma pessoa herdar uma quantidade de variantes genéticas que componha um risco global que ultrapasse um limiar, passa a ter maior probabilidade de desenvolver o transtorno.
Além do grande número de variantes genéticas associadas, a interação com a exposição ambiental ajuda a explicar a complexidade do risco para a esquizofrenia. Ambos os tipos de fatores, genéticos e ambientais, interagindo, sugerem também um processo neurodesenvolvimental.
HIPÓTESE INFLAMATÓRIA
Diversos estudos genéticos, de neuroimagem, com biomarcadores e epidemiológicos, têm apontado evidências sobre o papel da inflamação e da resposta imunológica na esquizofrenia, com mecanismos possivelmente multifatoriais. Assim, variações genéticas no sistema complemento, bem como aumento de citocinas pró-inflamatórias (p. ex., IL-6, TNF-alfa), têm sido identificados em indivíduos com esquizofrenia e naqueles com ultra alto risco (UHR, do inglês ultra high risk) para a doença. Outra linha de estudos investiga o desequilíbrio entre a produção de radicais livres de oxigênio e os mecanismos de defesa antioxidantes. O excesso de radicais livres estimula e perpetua a inflamação.
Em linha com a teoria do estresse/vulnerabilidade, exposições pré-natais a agentes infecciosos (p. ex., vírus influenza, Toxoplasma gondii) parecem ativar o sistema imunológico materno e têm sido associadas a aumento do risco para a esquizofrenia na adolescência e na idade adulta. O mecanismo envolvido seria um aumento da sensibilidade a estímulos (priming) da micróglia, que, em resposta ao estresse/trauma na infância e adolescência, se tornaria excessivamente ativada. Isso levaria a um excesso de poda sináptica em uma janela crítica do desenvolvimento e que, em um contexto de inflamação persistente, contribuiria para a patologia cortical e o surgimento da esquizofrenia.
A partir da compreensão de que a dopamina exerce papel apenas parcial na fisiopatologia da esquizofrenia, surgiu a hipótese do ácido quinurênico para a doença. Essa hipótese postula que um desequilíbrio do sistema imunológico com predominância de citocinas pró-inflamatórias (p. ex., IL-6) ativaria a enzima indoleamina 2,3-dioxigenase, que intensifica o metabolismo do triptofano para a via da quinurenina, resultando em um aumento da produção do ácido quinurênico, um antagonista natural do receptor N-metil D-aspartato (NMDA). Em excesso, o ácido quinurênico levaria a uma hipofunção do receptor NMDA, que está envolvida na patologia da esquizofrenia.
Em linha com essa hipótese, estudos utilizando medicações com propriedades anti-inflamatórias e antioxidantes como terapia adjuvante ao tratamento com antipsicóticos têm se mostrado promissores no tratamento da esquizofrenia, porém, ainda com tamanhos de efeito reduzidos e resultados inconsistentes. Entre os agentes mais utilizados, estão anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) não seletivos e seletivos para a COX-2, o ácido acetilsalicílico, a N-acetil cisteína – com propriedades antioxidante e anti-inflamatória –, a minociclina – um antibiótico com propriedades anti-inflamatórias e neuroprotetoras, o ácido graxo ômega-3 e as estatinas. Limitações desses estudos são a curta duração e o uso de amostras pequenas e não estratificadas. Além desses, agentes imunomoduladores têm sido estudados, porém, ainda com pouca evidência de eficácia e segurança.
NEUROIMAGEM
Uma primeira onda de estudos de neuroimagem procurou identificar se haveria alterações no cérebro de pessoas com esquizofrenia. Esses resultados foram muito claros, indicando haver uma redução global do volume cerebral total e de substância cinzenta, evidente pelo aumento do volume ventricular e mais acentuada em regiões frontais e temporais.
A segunda etapa foram estudos voltados para identificar quais regiões seriam as mais afetadas, os quais investigaram diferentes regiões do cérebro. Os achados regionais não foram observados em todos os pacientes, e a maioria não é específica para esquizofrenia. Estudos de neuroimagem funcional, voltados para regiões específicas, também não produziram achados consistentes. Esses resultados sugerem que a esquizofrenia não é uma doença localizada, mas sim produto de uma alteração global do cérebro.
Posteriormente, houve a investigação de redes de conectividade funcional, que não identificou nenhuma rede especificamente afetada em todos os pacientes com esquizofrenia. De modo interessante, verificou-se que há maior chance de regiões associativas, os hubs que concentram o fluxo de informação no cérebro. Assim, novamente as evidências sugerem uma alteração do funcionamento global do cérebro, achado que segue o mesmo sentido dos estudos de neuroimagem estrutural.
O aparecimento de sintomas psicóticos francos marca o início formal do primeiro episódio psicótico, no qual o paciente apresenta uma quebra de contato com a realidade, por meio de sintomas como delírios, alucinações, alterações de psicomotricidade e discurso ou comportamento desorganizados. A avaliação do primeiro surto psicótico é essencialmente clínica e, após a exclusão de causas orgânicas e quadros induzidos pelo uso de substâncias, o paciente deve ser acompanhado longitudinalmente para que sejam estabelecidos diagnóstico nosológico específico e plano terapêutico. Apesar do grande estigma associado aos transtornos psicóticos, vale ressaltar que, após o primeiro episódio, dados de uma revisão sistemática mostram que aproximadamente 60% dos pacientes atingem remissão dos sintomas, com taxas crescentes nos últimos anos.
Anterior à manifestação do primeiro surto, é possível que pacientes apresentem funcionamento pré-mórbido subótimo em graus variados na infância e adolescência e, no período que precede o primeiro episódio (fase prodrômica), sintomas inespecíficos muitas vezes passam despercebidos. Entre as manifestações mais comuns do pródromo, pode-se citar alterações de sono, sintomas depressivos, ansiedade, irritabilidade, oscilações de humor, isolamento social, hipobulia, redução da concentração, sensação de estranhamento com o mundo e consigo mesmo, desconfiança não estruturada e discurso vago.
Nas últimas décadas, houve maior interesse na identificação de tais sinais de maneira prospectiva. Foi proposto o conceito de UHR para identificar síndromes que, quando descobertas, aumentariam o risco de conversão para um transtorno psicótico. Esse termo foi sugerido em substituição ao conceito de pródromo, pois este indicaria uma evolução inevitável para um transtorno psicótico e essas síndromes não se encaixam nessa perspectiva mais restrita. Foram sugeridas três síndromes de UHR:
1) sintomas positivos atenuados;
2) sintomas psicóticos breves e intermitentes; ou
3) risco genético associado a prejuízo funcional, definido por história familiar positiva para transtornos psicóticos em parente de primeiro grau ou personalidade esquizotípica.
Em todas as síndromes, deve-se apresentar piora significativa do funcionamento ou funcionamento basal ao longo do último ano, o que enfatiza o caráter progressivo do risco, em contraposição a uma característica já estável.
Populações de UHR apresentam taxas de conversão para a psicose que variam entre 18 (em seis meses de seguimento) e 36% (em três anos), e alguns ensaios clínicos mostram efeito benéfico de intervenções farmacológicas e psicossociais, possivelmente atrasando o aparecimento dos sintomas psicóticos e até mesmo reduzindo as taxas de conversão. Apesar de tais esforços, o custo-benefício do rastreio de pacientes com alto risco em larga escala ainda é questionável pela falta de consistência nesses resultados. Em contrapartida, existem evidências robustas apontando a importância da intervenção precoce no primeiro episódio psicótico, com diversos estudos indicando o tempo de psicose não tratada (DUP, do inglês duration of untreated psychosis) como um dos principais fatores modificáveis e de maior impacto na evolução dos quadros de psicose. A identificação rápida e o início imediato do tratamento são, portanto, essenciais para garantir prognósticos mais favoráveis, assim como o seguimento com médico psiquiatra e equipe multidisciplinar.
Neurotransmissores e circuitos na esquizofrenia
Dopamina
A principal hipótese para a esquizofrenia baseia-se no neurotransmissor dopamina. Para entender o potencial papel da dopamina na esquizofrenia, é importante inicialmente rever como a dopamina é sintetizada, metabolizada e regulada, bem como a função dos receptores de dopamina e a localização das vias dopaminérgicas essenciais no cérebro.
Neurônios dopaminérgicos
Os neurônios dopaminérgicos utilizam a dopamina (DA) como neurotransmissor. A dopamina é sintetizada nos terminais nervosos dopaminérgicos, a partir do aminoácido tirosina após sua captação do espaço extracelular e da corrente sanguínea no neurônio por uma bomba ou transportador de tirosina (Figura 4.5). A tirosina é convertida em DA inicialmente pela enzima tirosina hidroxilase (TOH) limitadora de velocidade e, em seguida, pela enzima DOPA descarboxilase (DDC) (Figura 4.5). A seguir, a DA é captada em vesículas sinápticas por um transportador vesicular de monoaminas (VMAT2) e armazenada dentro dessas vesículas até ser utilizada durante a neurotransmissão.
O neurônio DA tem um transportador pré-sináptico (bomba de recaptação), denominado DAT, que é exclusivo para a DA e que interrompe a ação sináptica da DA ao retirá-la rapidamente da sinapse e transportá-la de volta ao terminal nervoso pré-sináptico. Neste último, pode ser novamente armazenada em vesículas sinápticas para reutilização subsequente em outra neurotransmissão (Figura 4.6). Os DAT não estão presentes em grande densidade nos terminais axônicos de todos os neurônios DA. Por exemplo, no córtex pré-frontal, os DAT são relativamente esparsos e a DA é inativada por outros mecanismos. O excesso de DA que escapa de seu armazenamento em vesículas sinápticas pode ser destruído dentro do neurônio pelas enzimas monoamina oxidases (MAO)-A ou B, ou fora do neurônio pela enzima catecol-O-metiltransferase (COMT) (Figura 4.6). A DA que se difunde a partir das sinapses também pode ser transportada por transportadores de noradrenalina (NAT) como substrato “falso”, interrompendo, dessa maneira, a ação da DA.
Síntese da dopamina. A tirosina (TYR), precursora da dopamina, é captada nos terminais nervosos dopaminérgicos por um transportador de tirosina e convertida em DOPA pela enzima tirosina hidroxilase (TOH). A DOPA é, então, convertida em dopamina (DA) pela enzima DOPA descarboxilase (DDC). Após sua síntese, a dopamina acondiciona-se em vesículas sinápticas pelo transportador vesicular de monoaminas (VMAT2), no qual é armazenada até a sua liberação na sinapse durante a neurotransmissão.
Os receptores de dopamina também regulam a neurotransmissão dopaminérgica (Figura 4.7). O transportador de DA, DAT, e o transportador vesicular, VMAT2, são tipos de receptores. Existe uma pletora de outros receptores de dopamina, como, pelo menos, cinco subtipos farmacológicos e várias isoformas moleculares. Talvez o receptor de dopamina mais extensamente investigado seja o receptor de dopamina 2 (D2), visto que é estimulado por agonistas dopaminérgicos no tratamento da doença de Parkinson e bloqueado por antipsicóticos antagonistas dopaminérgicos no tratamento da esquizofrenia. Conforme discutido de modo mais pormenorizado no Capítulo 5, referente aos antipsicóticos, os receptores de dopamina 1, 2, 3 e 4 são todos bloqueados por alguns antipsicóticos atípicos. No entanto, ainda não foi esclarecido até que ponto os receptores de dopamina 1, 3 ou 4 contribuem para as propriedades clínicas desses fármacos
Término da ação da dopamina. A ação da dopamina pode ser interrompida por meio de múltiplos mecanismos. A dopamina pode ser transportada para fora da fenda sináptica, de volta ao neurônio pré-sináptico pelo transportador de dopamina (DAT), no qual pode ser novamente acondicionada para uso futuro. Por outro lado, a dopamina pode ser degradada no meio extracelular pela enzima catecol-O-metiltransferase (COMT). Outras enzimas que degradam a dopamina são a monoamina oxidase A (MAO-A) e a monoamina oxidase B (MAO-B), que estão presentes nas mitocôndrias dentro do neurônio pré-sináptico e em outras células, como a glia.
Receptores de dopamina. São mostrados aqui receptores para a dopamina, que regulam sua neurotransmissão. Responsável pela eliminação do excesso de dopamina na sinapse, o transportador de dopamina (DAT) é encontrado na região pré-sináptica. O transportador vesicular de monoaminas (VMAT2) capta a dopamina em vesículas sinápticas para neurotransmissão futura. Existe também um autorreceptor de dopamina D2 pré-sináptico, que regula a liberação de dopamina pelo neurônio pré-sináptico. Além disso, existem vários receptores pós-sinápticos, como os D1, D2, D3, D4 e D5. As funções dos receptores D2 estão mais bem elucidadas, já que se trata do principal sítio de ligação para praticamente todos os agentes antipsicóticos, bem como para os agonistas da dopamina usados no tratamento da doença de Parkinson.
Os receptores de dopamina 2 podem ser pré-sinápticos, atuando como autorreceptores (Figura 4.7). Os receptores D2 pré-sinápticos atuam, portanto, como “guardiões”, o que torna possível a liberação de DA quando não estão ocupados pela DA (Figura 4.8A) ou inibindo sua liberação quando a DA acumula-se na sinapse e ocupa esses autorreceptores pré-sinápticos “guardiões” (Figura 4.8B). Esses receptores estão localizados no terminal axônico (Figura 4.9) ou na outra extremidade do neurônio, na área somatodendrítica (Figura 4.10). Em ambos os casos, a ocupação desses receptores D2 proporciona um impulso de retroalimentação negativa ou uma ação de freio para a liberação de dopamina do neurônio pré-sináptico.
Vias dopaminérgicas essenciais no cérebro
As cinco vias dopaminérgicas no cérebro estão ilustradas na Figura 4.11. Envolvem a via dopaminérgica mesolímbica, a via dopaminérgica mesocortical, a via dopaminérgica nigroestriatal, a via dopaminérgica tuberoinfundibular e uma quinta via que inerva o tálamo.
Autorreceptores de dopamina 2 (D2) pré-sinápticos.
Os autorrecepotores D2 pré-sinápticos são “guardiões” para a dopamina. Isto é, quando esses receptores guardiões não estão ligados à dopamina (nenhuma dopamina na mão do guardião), eles abrem uma comporta molecular, o que possibilita a liberação de dopamina (A).
Entretanto, quando a dopamina liga-se aos receptores guardiões (o guardião tem dopamina em sua mão), eles fecham a comporta molecular e impedem a liberação de dopamina (B).
Autorreceptores de dopamina-2 pré-sinápticos.
Os autorreceptores D2 pré-sinápticos podem estar localizados no terminal axônico, conforme ilustrado aqui. Quando ocorre acúmulo de dopamina na sinapse (A), ela se torna disponível para se ligar ao autorreceptor, que, então, inibe sua liberação (B).
Autorreceptores de dopamina-2 somatodendríticos. Os autorreceptores D2 também podem se localizar na área somatodendrítica, conforme ilustrado aqui (A). Quando a dopamina se liga a esse receptor, ela interrompe o fluxo de impulsos neuronais no neurônio dopaminérgico (ver perda dos raios no neurônio em (B), o que interrompe a liberação adicional de dopamina.
Cinco vias dopaminérgicas no cérebro.
A neuroanatomia das vias neuronais dopaminérgicas no cérebro pode explicar os sintomas da esquizofrenia, bem como os efeitos terapêuticos e efeitos colaterais dos antipsicóticos.
(a) A via dopaminérgica nigroestriatal, que se projeta da substância negra para os núcleos da base ou o estriado, faz parte do sistema nervoso extrapiramidal e controla a função motora e o movimento.
(b) A via dopaminérgica mesolímbica projeta-se da área tegmental ventral do mesencéfalo para o nucleus accumbens, uma parte do sistema límbico do cérebro que se acredita estar envolvida em muitos comportamentos, como sensação de prazer, euforia intensa produzida por uso abusivo de substâncias psicoativas, bem como delírios e alucinações da psicose.
(c) Uma via relacionada com a via dopaminérgica mesolímbica é a via dopaminérgica mesocortical. Essa via também se projeta da área tegmental ventral do mesencéfalo, porém envia axônios para áreas do córtex pré-frontal, onde podem desempenhar um papel na mediação dos sintomas cognitivos (córtex pré-frontal dorsolateral, CPFDL) e sintomas afetivos (córtex pré-frontal ventromedial, CPFVM) da esquizofrenia.
(d) A quarta via dopaminérgica de interesse, a via dopaminérgica tuberoinfundibular, projeta-se do hipotálamo para a adeno-hipófise e controla a secreção de prolactina.
(e) A quinta via dopaminérgica surge de múltiplos locais, como substância cinzenta central, parte ventral do mesencéfalo, núcleos hipotalâmicos e núcleo parabraquial lateral, e projeta-se para o tálamo. Sua função atualmente não está bem elucidada.
Hipótese dopaminérgica da esquizofrenia | Via dopaminérgica mesolímbica e sintomas positivos da esquizofrenia
A via dopaminérgica mesolímbica projeta-se dos corpos celulares dopaminérgicos na área tegmental ventral do tronco encefálico até terminais axônicos em uma das áreas límbicas do cérebro, isto é, o nucleus accumbens no estriado ventral (Figura 4.11). Acredita-se que essa via desempenhe um importante papel em vários comportamentos emocionais, inclusive os sintomas positivos da psicose, como delírios e alucinações (Figura 4.12). A via dopaminérgica mesolímbica também é importante para a motivação, o prazer e a recompensa.
Por mais de 40 anos, foi observado que as doenças ou fármacos que aumentam a dopamina produzem sintomas psicóticos positivos ou os amplificam, enquanto os fármacos que diminuem a dopamina reduzem ou interrompem esses sintomas positivos. Por exemplo, substâncias estimulantes, como a anfetamina e a cocaína, liberam dopamina, e, se forem usadas repetidamente, podem causar psicose paranoide praticamente indistinguível dos sintomas positivos da esquizofrenia. As substâncias e os fármacos estimulantes são discutidos detalhadamente em outros capítulos sobre o tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e sobre seu uso abusivo.
Todos os antipsicóticos conhecidos capazes de tratar os sintomas psicóticos positivos são bloqueadores do receptor de dopamina D2. Essas observações foram formuladas em uma teoria da psicose denominada “hipótese dopaminérgica da esquizofrenia”. Talvez uma designação moderna mais precisa seja “hipótese dopaminérgica mesolímbica dos sintomas positivos da esquizofrenia”, visto que se acredita ser a hiperatividade, especificamente nessa via dopaminérgica particular, que medeia os sintomas positivos da psicose (Figura 4.13). A hiperatividade da via dopaminérgica mesolímbica hipoteticamente responde pelos sintomas psicóticos positivos, sejam esses sintomas parte da doença esquizofrênica, da psicose induzida por fármacos ou dos sintomas psicóticos positivos que acompanham a mania, a depressão ou a demência. A hiperatividade dos neurônios dopaminérgicos mesolímbicos também pode desempenhar um papel nos sintomas agressivos e hostis na esquizofrenia e doenças relacionadas, particularmente se o controle serotoninérgico da dopamina for anormal em pacientes que carecem de controle dos impulsos. Embora não se saiba o que provoca essa hiperatividade da dopamina mesolímbica, as teorias atuais sustentam que ela represente a consequência distal de disfunção na atividade do glutamato no córtex pré-frontal e no hipocampo, conforme discutido adiante.
Via dopaminérgica mesolímbica. A via dopaminérgica mesolímbica, que se projeta da área tegmental ventral no tronco encefálico para o nucleus accumbens no estriado ventral (A), está envolvida na regulação dos comportamentos emocionais, e acredita-se que seja a via predominante que regula os sintomas positivos da psicose. Especificamente, acredita-se que a hiperatividade dessa via seja responsável pelos delírios e alucinações (B).
Hipótese dopaminérgica mesolímbica. A hiperatividade dos neurônios dopaminérgicos na via dopaminérgica mesolímbica teoricamente medeia os sintomas positivos da psicose, como delírios e alucinações. Essa via também está envolvida no prazer, na recompensa e no comportamento de reforço, e muitas substâncias de uso abusivo interagem aqui.
Via dopaminérgica mesocortical e sintomas cognitivos, negativos e afetivos da esquizofrenia
Outra via, que também surge de corpos celulares na área tegmental ventral, mas que se projeta para áreas do córtex pré-frontal, é conhecida como via dopaminérgica mesocortical (Figuras 4.14 e 4.15). Foi formulada a hipótese de que ramos dessa via no córtex pré-frontal dorsolateral regulam a cognição e as funções executivas (Figura 4.14), enquanto os ramos nas partes ventromediais do córtex pré-frontal supostamente regulam as emoções e o afeto (Figura 4.15). O papel exato da via dopaminérgica mesocortical na mediação dos sintomas da esquizofrenia continua sendo um assunto controverso. Entretanto, muitos pesquisadores acreditam que os sintomas cognitivos e alguns sintomas negativos da esquizofrenia possam ser atribuídos a um déficit da atividade da dopamina nas projeções mesocorticais para o córtex pré-frontal dorsolateral (Figura 4.14), enquanto os sintomas afetivos e outros sintomas negativos da esquizofrenia resultariam de um déficit da atividade da dopamina nas projeções mesocorticais para o córtex pré-frontal ventromedial (Figura 4.15).
O estado de déficit comportamental sugerido pelos sintomas negativos certamente implica atividade deficiente ou falta de funcionamento apropriado das projeções dopaminérgicas mesocorticais, que podem ser a consequência de anormalidades de neurodesenvolvimento no sistema glutamatérgico NMDA (N-metil-D-aspartato), descrito na próxima seção. Qualquer que seja a causa, um corolário da hipótese DA original da esquizofrenia incorpora, hoje em dia, as teorias para os sintomas cognitivos, negativos e afetivos. Assim, poderia ser designada com mais precisão como a “hipótese dopaminérgica mesocortical dos sintomas cognitivos, negativos e afetivos da esquizofrenia”. Isso porque se acredita que seja a atividade deficiente, especificamente nas projeções mesocorticais para o córtex pré-frontal, que medeia os sintomas cognitivos, negativos e afetivos da esquizofrenia (Figura 4.16).
Teoricamente, o aumento da dopamina na via dopaminérgica mesocortical poderia melhorar os sintomas negativos, cognitivos e afetivos da esquizofrenia. Entretanto, como existe, hipoteticamente, excesso de dopamina em outras partes do cérebro – dentro da via dopaminérgica mesolímbica –, qualquer aumento da dopamina nessa via iria, na verdade, agravar os sintomas positivos. Dessa maneira, esse estado de atividade da dopamina no cérebro de pacientes com esquizofrenia representa um dilema terapêutico: como aumentar a dopamina na via mesocortical e, simultaneamente, diminuir sua atividade na via dopaminérgica mesolímbica? No Capítulo 5, será discutido até que ponto os antipsicóticos atípicos oferecem uma solução para esse dilema terapêutico.
Via mesocortical para o córtex pré-frontal dorsolateral. Outra importante via dopaminérgica é a via dopaminérgica mesocortical, que se projeta da área tegmental ventral para o córtex pré-frontal (A). Acredita-se que as projeções especificamente para o córtex pré-frontal dorsolateral (CPFDL) estejam envolvidas nos sintomas negativos e cognitivos da esquizofrenia. Neste caso, acredita-se que a expressão desses sintomas esteja associada à hipoatividade dessa via (B).
Via mesocortical para o córtex pré-frontal ventromedial. Acredita-se que as projeções dopaminérgicas mesocorticais especificamente para o córtex pré-frontal ventromedial (CPFVM) medeiem os sintomas negativos e afetivos associados à esquizofrenia (A). Acredita-se ainda que esses sintomas decorram da hipoatividade dessa via (B).
Hipótese dopaminérgica mesocortical dos sintomas negativos, cognitivos e afetivos da esquizofrenia. A hipoatividade dos neurônios dopaminérgicos na via dopaminérgica mesocortical teoricamente medeia os sintomas cognitivos, negativos e afetivos da esquizofrenia.
Via dopaminérgica mesolímbica, recompensa e sintomas negativos
Quando um paciente com esquizofrenia perde a motivação e o interesse e apresenta anedonia e falta de prazer, esses sintomas também podem indicar funcionamento deficiente da via dopaminérgica mesolímbica, e não apenas função deficiente da via dopaminérgica mesocortical. Essa ideia é sustentada por observações de que o tratamento de pacientes com antipsicóticos, particularmente com os antipsicóticos convencionais, produz agravamento dos sintomas negativos e um estado de “neurolepsia”, que se assemelha muito aos sintomas negativos da esquizofrenia. Como o córtex pré-frontal não tem alta densidade de receptores D2, isso significa possível deficiência de funcionamento dentro do sistema dopaminérgico mesolímbico, o que resulta em mecanismos de recompensa inadequados, na forma de comportamentos, como anedonia e uso abusivo de substâncias psicoativas, além de sintomas negativos, manifestados por falta de interação social gratificante e pela falta de motivação geral e de interesse. Talvez a incidência muito maior de uso abusivo de substâncias psicoativas na esquizofrenia, em comparação com adultos saudáveis, particularmente de nicotina, mas também de estimulantes e outras substâncias, seja explicada, em parte, como uma tentativa de reforçar a função dos centros dopaminérgicos mesolímbicos de prazer deficientes, possivelmente à custa da ativação de sintomas positivos.
Via dopaminérgica nigroestrital
Outra via dopaminérgica importante no cérebro é a via dopaminérgica nigroestriatal, que se projeta de corpos celulares dopaminérgicos na substância negra do tronco encefálico através de axônios que terminam nos núcleos da base ou no estriado (Figura 4.17). A via dopaminérgica nigroestriatal faz parte do sistema nervoso extrapiramidal e controla os movimentos motores. A deficiência de dopamina nessa via provoca distúrbios do movimento, como a doença de Parkinson, a qual se caracteriza por rigidez, acinesia/bradicinesia (i. e., falta ou lentidão do movimento) e tremor. A deficiência de dopamina nos núcleos da base também pode produzir acatisia (um tipo de inquietação motora) e distonia (movimentos de torção, particularmente da face e do pescoço). Esses distúrbios do movimento podem ser reproduzidos por fármacos que bloqueiam os receptores D2 nessa via, o que será discutido de modo sucinto no Capítulo 5.
Acredita-se que a hiperatividade da dopamina na via nigroestriatal esteja na base de vários distúrbios hipercinéticos do movimento, como coreia, discinesias e tiques. O bloqueio crônico dos receptores D2 nessa via pode resultar em distúrbio de movimento hipercinético, conhecido como discinesia tardia induzida por neurolépticos. Esse distúrbio também será discutido de modo sucinto no Capítulo 5. Na esquizofrenia, a via nigroestriatal em pacientes não tratados pode estar relativamente preservada (Figura 4.17).
Via dopaminérgica nigroestriatal. A via dopaminérgica nigroestriatal projeta-se da substância negra para os núcleos da base ou o estriado. Faz parte do sistema nervoso extrapiramidal e desempenha um papel essencial na regulação dos movimentos. Quando a dopamina está deficiente, pode causar parkinsonismo com tremor, rigidez e acinesia/bradicinesia. Quando presente em excesso, a DA pode causar movimentos hipercinéticos, como tiques e discinesias. Na esquizofrenia sem tratamento, acredita-se que a ativação dessa via seja “normal”.
Via dopaminérgica tuberoinfundibular
Os neurônios dopaminérgicos que se projetam do hipotálamo para a adeno-hipófise fazem parte da via dopaminérgica tuberoinfundibular (Figura 4.18). Normalmente, esses neurônios são ativos e inibem a liberação de prolactina. Entretanto, no estado pós-parto, a atividade desses neurônios dopaminérgicos diminui. Assim, os níveis de prolactina podem aumentar durante a amamentação, de modo que a lactação possa ocorrer. Se o funcionamento dos neurônios dopaminérgicos tuberoinfundibulares for interrompido por lesões ou substâncias, pode ocorrer também elevação dos níveis de prolactina. Os níveis elevados de prolactina estão associados à galactorreia (secreção da mama), à amenorreia (perda da ovulação e dos períodos menstruais) e, possivelmente, a outros problemas, como disfunção sexual. Esses problemas podem ser observados após o tratamento com muitos antipsicóticos, que bloqueiam os receptores D2, conforme discutido de modo mais pormenorizado no Capítulo 5. Na esquizofrenia sem tratamento, a função da via tuberoinfundibular pode estar relativamente preservada (Figura 4.18).
Via dopaminérgica tuberoinfundibular. A via dopaminérgica tuberoinfundibular do hipotálamo para a adeno-hipófise regula a secreção de prolactina na circulação. A dopamina inibe a secreção de prolactina. Na esquizofrenia sem tratamento, acredita-se que a ativação dessa via seja “normal”.
Via dopaminérgica talâmica
Recentemente, foi descrita uma via dopaminérgica que inerva o tálamo nos primatas. Origina-se de múltiplos locais, como a substância cinzenta central, a parte ventral do mesencéfalo, vários núcleos hipotalâmicos e o núcleo parabraquial lateral (Figura 4.11). Sua função ainda está em fase de investigação, mas pode estar envolvida nos mecanismos do sono e da ativação por meio de controle das informações que passam pelo tálamo até o córtex e outras áreas do cérebro. Não há evidências, a essa altura, de qualquer funcionamento anormal dessa via dopaminérgica na esquizofrenia.
Glutamato
Nos últimos anos, o neurotransmissor glutamato conquistou um papel teórico essencial na hipótese fisiopatológica da esquizofrenia, bem como em vários outros transtornos psiquiátricos, inclusive a depressão. Hoje em dia, o glutamato também constitui um importante alvo de novas substâncias psicofarmacológicas para futuros tratamentos da esquizofrenia e da depressão. Para a compreensão das teorias acerca do glutamato na esquizofrenia e em outros transtornos psiquiátricos, de como o funcionamento inadequado dos sistemas glutamatérgicos tem impacto sobre os sistemas dopaminérgicos na esquizofrenia e de como os sistemas glutamatérgicos poderão se tornar alvos importantes de novas substâncias terapêuticas para a esquizofrenia, é necessário rever a regulação da neurotransmissão glutamatérgica. O glutamato é o principal neurotransmissor excitatório do sistema nervoso central e, às vezes, considerado como o “interruptor-mestre” do cérebro, uma vez que ele pode excitar e ativar praticamente todos os neurônios do SNC. A síntese, o metabolismo, a regulação dos receptores e as principais vias do glutamato são, portanto, de suma importância para o funcionamento do cérebro e serão revisados aqui.
3. Caracterize o quadro clínico, diagnóstico e diagnóstico diferencial da esquizofrenia.
Os critérios diagnósticos mais usados são os da American Psychiatric Association (APA) e os da Organização Mundial da Saúde (OMS), respectivamente, o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – 5ª edição (DSM-5)6 e a Classificação internacional de doenças – 11ª edição (CID-11).7 Ambos apresentam estrutura que descreve uma lista de sintomas.
O tempo mínimo de sintomas ativos é de um mês, mas o DSM-5 exige um tempo total de prejuízo no funcionamento de seis meses, incluindo a fase prodrômica – anterior ao início do primeiro episódio psicótico – e sintomas residuais. No DSM-5, exige-se prejuízo claro no funcionamento, enquanto, na CID-11, não. Os subtipos da doença – paranoide, desorganizado/hebefrênico e catatonia – foram retirados de ambas as classificações, sob a justificativa de terem pouca tradução para a clínica, não indicando tratamento ou prognóstico específicos. Atualmente, propõe-se agrupar os sintomas em dimensões, nas quais a intensidade pode variar, não sendo apenas uma questão de apresentar ou não o sintoma, mas de quão intenso ele é. O modelo dimensional mais aceito é composto por cinco dimensões: sintomas positivos, negativos, cognitivos, de desorganização e de humor/ansiedade.
A dimensão dos sintomas positivos é composta por delírios (alteração do conteúdo do pensamento) e alucinações (alterações da sensopercepção). Os delírios autorreferentes e persecutórios e as alucinações auditivas são as manifestações mais comuns na esquizofrenia. Outros conteúdos podem ocorrer, e o diagnóstico não deve ser realizado exclusivamente pelo conteúdo das experiências psicóticas, mas pelo modo como os sintomas se apresentam em conjunto (“o todo da vida psíquica”). Seguindo ainda a linha proposta inicialmente por Karl Jaspers, um elemento semiológico essencial seria a presença da vivência delirante primária, ou seja, como o todo do comportamento passa a ser direcionado pela vivência psicótica. Isso implica ir além do conteúdo do delírio, entendendo como as ações do paciente são influenciadas pela psicose no seu dia a dia. Essa perspectiva ainda tem valor atual, ao complementar a investigação baseada em sintomas proposta por critérios e entrevistas diagnósticas padronizadas, evitando erros de se tomar sintomas isolados pelo todo da vida psíquica. Em última análise, é assim que se configura a ideia de alteração do juízo de realidade, a incapacidade de avaliar e responder às informações contextuais de forma semelhante à da maior parte das pessoas.
A dimensão dos sintomas negativos foi assim chamada como um contraponto à ideia de sintomas resultantes da excitação neuronal, princípio que define o termo “positivo”. Mais diretamente, esses sintomas dizem respeito à ausência de determinados comportamentos esperados, mais notadamente na expressão do afeto e da vontade. O prejuízo na vontade é apontado, em especial, como o principal preditor de prejuízo funcional nas pessoas com esquizofrenia. De forma mais detalhada, o consenso do National Institute of Mental Health (NIMH)10 propôs cinco domínios para os sintomas negativos: alogia, alteração do afeto, associabilidade, avolição e anedonia. São aspectos que devem ser explorados, de preferência, com informações de familiares, pois, muitas vezes, os pacientes não têm crítica da sua condição e minimizam seu impacto. Perguntas mais objetivas sobre sair espontaneamente de casa, detalhando frequência na última semana ou mês, ajudam a delinear melhor a gravidade dos sintomas.
Os sintomas cognitivos têm ganhado espaço, a ponto de alguns autores sugerirem que a esquizofrenia deveria ser definida como uma doença cognitiva. Praticamente todos os domínios cognitivos podem ser afetados pela doença. Os principais achados apontam para alterações na atenção, na velocidade de processamento, nas funções executivas e na aprendizagem. Além de serem manifestações mais diretamente ligadas às alterações neurobiológicas, junto com os sintomas negativos, são importantes preditores das dificuldades cotidianas dos pacientes. Mesmo quando há a remissão dos sintomas positivos, permanecem dificuldades no planejamento de tarefas, o que pode levar a um grande aumento da ansiedade ao terem que lidar com demandas de maior complexidade, resolução de conflitos ou harmonização de diferentes perspectivas.
Os sintomas de desorganização se manifestam no pensamento, sendo observados principalmente no discurso e no comportamento, este último avaliado durante a entrevista e a partir de relatos de familiares. O elemento central é a falta do encadeamento lógico esperado para a conclusão de um raciocínio ou ação. Às vezes, os pacientes conseguem articular uma lógica intrínseca, mas absurda, o que não deixa de denotar também certa desorganização de conceitos. A desorganização pode chegar aos fenômenos da desagregação de pensamento, neologismos e salada de palavras, em que o discurso perde quase que inteiramente o nexo.
Os sintomas de humor/ansiedade chamam a atenção para o fato de muitas manifestações da doença se associarem a alterações esperadas no conteúdo emocional. Um exemplo simples seria maior ansiedade ou tristeza provocadas pelo fato de o paciente se sentir perseguido, vítima de um complô. Além dos sintomas que acompanham as alterações psicóticas, os pacientes podem evoluir com sintomas depressivos na fase pós-psicótica, quando entram em contato com a crise e suas consequências. Nesses casos, há a descrição do quadro conhecido como depressão pós-psicótica, mais comum em jovens e em pacientes com maior nível educacional. Esse quadro requer identificação e tratamento precoces, pois pode associar-se a maior risco de suicídio.
Essa psicopatologia ampliada permite melhor compreensão dos fenômenos associados ao construto da esquizofrenia e auxilia no uso mais crítico dos critérios diagnósticos, aumentando sua utilidade clínica.
Um resumo dos principais critérios diagnósticos dos transtornos psicóticos, de acordo com o DSM-5 e a CID-11,6,7 encontra-se a seguir, no Quadro 19.1.
*Os sintomas negativos são definidos pela perda de funções psíquicas e por um empobrecimento global da vida psíquica e social do indivíduo.*
Os principais sintomas negativos são:
1. Embotamento afetivo: perda da capacidade de sintonizar afetivamente com as pessoas, de demonstrar ressonância afetiva no contato interpessoal. Corresponde ao que Bleuler chama de autismo;
2. Retração social: o paciente vai se isolando progressivamente do convívio social;
3. Empobrecimento da linguagem e do pensamento;
4. Diminuição da fluência verbal;
5. Diminuição da vontade e apragmatismo, ou seja, dificuldade ou incapacidade de realizar tarefas ou ações que exijam um mínimo de iniciativa e persistência;
6. Autonegligência: falta de higiene e cuidado consigo mesmo, desinteresse pela própria aparência, etc.;
7. Lentificação psicomotora.
*Os sintomas positivos são definidos por manifestações produtivas do processo esquizofrênico.*
Os principais sintomas positivos são:
1. Alucinações auditivas (mais frequentes), visuais, ou de outros tipos;
2. Ideias delirantes paranoides, autorreferentes, de influência, ou de outra natureza;
3. Comportamento bizarro e atos impulsivos;
4. Agitação psicomotora;
5. Ideias bizarras, não necessariamente delirantes;
6. Produções linguísticas como neologismos.
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
O diagnóstico diferencial começa com a identificação de sintomas psicóticos, e a primeira etapa é investigar se eles seriam mais bem explicados por uso de substância ou uma condição clínica. Essa avaliação deve ser realizada a partir de um histórico detalhado, e exames físico e neurológico devem ser feitos sempre que possível. A obtenção de uma história objetiva com os familiares sobre a origem dos sintomas e possíveis alterações que indiquem organicidade – idades atípicas, rebaixamento do nível de consciência, rápida deterioração cognitiva e alterações focais ao exame neurológico – é sugerida. Muitas vezes, pela própria desorganização ou alteração cognitiva associada à crise psicótica, o paciente não relata adequadamente a evolução dos sintomas, sendo importante entrevistar os familiares.
Os exames complementares devem ser solicitados de acordo com a avaliação clínica e o exame físico. Em caso de dúvidas, exames toxicológicos para uso de substâncias (sempre informados) podem ser úteis.
Excluído que os sintomas sejam secundários ao uso de substâncias ou a uma condição clínica, passa-se ao diagnóstico diferencial entre os transtornos psiquiátricos. Historicamente, esse é o momento de distinguir quadros psicóticos associados a um transtorno do humor dos quadros psicóticos primários. Essa diferenciação deve ser feita de acordo com o histórico de apresentação de sintomas e seu curso. O conteúdo dos sintomas psicóticos (como delírio de ruína na depressão e de grandeza na mania) pode ser útil, mas não deve ser considerado patognomônico, pois pode haver uma sobreposição de diagnósticos considerando apenas esse aspecto.
Descartado se tratar de um quadro de humor, passa-se ao diagnóstico diferencial entre os transtornos psicóticos primários. A diferenciação se faz inicialmente pelo tempo: menos de 30 dias – psicose breve; entre um e seis meses – transtorno esquizofreniforme; mais de seis meses – transtorno delirante persistente e esquizofrenia. O transtorno delirante costuma ser mais tardio e de evolução mais favorável.
4. Qual o tratamento farmacológico e não farmacológico da esquizofrenia?
TRATAMENTO FARMACOLÓGICO
Os antipsicóticos representam as medicações de escolha para o tratamento farmacológico da esquizofrenia e devem ser usados tanto na fase aguda, para o controle dos sintomas durante crises, quanto na de manutenção, com o objetivo de prevenir recaídas.
Desde a descoberta da clorpromazina, em 1950, diversos antipsicóticos foram sintetizados, com diferentes perfis farmacológicos; porém, até o momento, antipsicóticos antagonistas dopaminérgicos permanecem como o único tratamento aprovado para a esquizofrenia, sendo o bloqueio de receptores dopaminérgicos D2 em via mesolímbica o seu principal mecanismo de ação.
Os antipsicóticos são agrupados em duas classes: primeira geração (ou típicos) e segunda geração (atípicos). Os antipsicóticos de primeira geração (APGs) têm em comum uma alta afinidade por receptores D2 e, em relação aos de segunda geração (ASGs), apresentam maior potencial para induzir SEPs (p. ex., tremores, rigidez e bradicinesia), como resultado do bloqueio dopaminérgico em via nigroestriatal. Os ASGs, por sua vez, têm perfis de ligação muito heterogêneos, envolvendo, também, antagonismo serotonérgico (5-HT2A, principalmente), entre outros mecanismos, e se associam mais frequentemente com maior ganho de peso e alterações metabólicas.
Em geral, diretrizes e manuais clínicos dão preferência à prescrição de ASGs, principalmente nos casos de primeiro episódio psicótico, devido a maior risco de aparecimento de SEPs nesses pacientes. No entanto, a maior recomendação de ASGs em relação à de APGs está ligada a diferenças de tolerabilidade – um importante preditor de adesão ao tratamento medicamentoso – e não à eficácia. Os APGs apresentam menor custo e são as únicas medicações disponíveis em diversos contextos clínicos no Brasil, sendo indicado, nessas situações, o seu uso em doses baixas para reduzir o risco de SEPs. Na Figura 19.1, encontra-se o algoritmo de tratamento da esquizofrenia do International Psychopharmacology Algorithm Project (IPAP).
Algoritmo IPAP para tratamento da esquizofrenia.
APG: antipsicótico de primeira geração; ASG: antipsicótico de segunda geração; ECT: eletroconvulsoterapia.
A escolha do medicamento e de sua posologia, portanto, deve ser individualizada de acordo com as características clínicas do paciente, história pregressa, tolerabilidade aos efeitos colaterais, rede de suporte disponível e contexto do tratamento.
Antipsicóticos mais sedativos, por exemplo, podem ser utilizados para pacientes com quadros de agitação psicomotora mais intensa, assim como a associação de benzodiazepínicos.
Pacientes em primeiro surto psicótico devem receber, inicialmente, doses mais baixas, pois, em geral, apresentam melhora de sintomas com dosagens menores que pacientes com múltiplos episódios.
Além disso, antipsicóticos injetáveis de longa duração devem sempre ser considerados para pacientes com histórico de baixa adesão. Na Tabela 19.1, encontra-se um resumo com as posologias e principais efeitos colaterais de antipsicóticos específicos.
Preconiza-se a titulação gradual da dose conforme resposta terapêutica, até que a menor dose eficaz seja alcançada. Entretanto, na prática clínica, costuma-se definir uma dose-alvo (valor entre as dosagens mínimas e máximas do antipsicótico) e avaliar resposta e efeitos adversos. Em alguns casos, é possível observar efeitos terapêuticos nos primeiros dias, mas recomenda-se que o antipsicótico seja usado por um período de quatro a seis semanas para determinar se houve resposta satisfatória e avaliar aumento da dose ou troca de medicamento.
Após o controle do quadro agudo, inicia-se a fase de manutenção, na qual é necessário manter a medicação, a fim de garantir a remissão dos sintomas e promover melhora de qualidade de vida e reabilitação funcional e social do paciente. Deve-se monitorar e manejar cuidadosamente os efeitos colaterais.
Não existe um consenso sobre o tempo para retirada do antipsicótico após o primeiro episódio, porém, se orienta avaliar caso a caso e manter os medicamentos por um período mínimo de um ano após a remissão dos sintomas.
Além disso, é essencial realizar a psicoeducação adequada do paciente e de seus familiares, enfatizando a importância de manter o esquema terapêutico proposto, pois a falta de adesão medicamentosa representa uma das principais causas de recaída psicótica. Os principais motivos para a falta de adesão são efeitos colaterais, falta de eficácia, posologias inconvenientes, custo ou falta de acesso aos medicamentos e o próprio estigma em relação ao uso de medicações psiquiátricas.
Nesse sentido, os antipsicóticos de depósito apresentam uma vantagem importante em relação aos medicamentos orais, visto que proporcionam melhor adesão. De fato, estudos apontam que o uso de antipsicóticos injetáveis de longa duração estão associados a menores taxas de recaídas e internações e prognósticos globais mais favoráveis, mesmo para pacientes nas fases iniciais da doença.
Por fim, sempre que possível, encoraja-se a decisão compartilhada pelo médico e paciente (shared decision-making), levando em conta os interesses do paciente, pois uma maior percepção sobre a autonomia do tratamento também pode aumentar a adesão.
Vale ressaltar que os efeitos terapêuticos das medicações antipsicóticas atingem essencialmente os sintomas positivos e, embora o controle de tais sintomas seja indispensável, a ausência de medicamentos eficazes para o tratamento dos sintomas negativos e cognitivos representa um dos maiores desafios no manejo da esquizofrenia. Estudos mostram que os sintomas negativos e o prejuízo cognitivo são preditores importantes para a recuperação funcional dos pacientes, e as intervenções psicossociais têm se mostrado mais promissoras em seu tratamento.
ABORDAGENS PSICOSSOCIAIS
Como exposto anteriormente, a esquizofrenia é um transtorno complexo, que afeta múltiplos domínios da vida do indivíduo. O tratamento medicamentoso é fundamental para aliviar sintomas e prevenir recaídas, porém, não é suficiente para reestabelecer relacionamentos sociais, manter-se no emprego ou viver de forma independente. Nesse sentido, as intervenções psicossociais associadas ao tratamento farmacológico são fundamentais para melhorar a qualidade de vida das pessoas com esquizofrenia e ajudá-las na recuperação dos domínios da vida prejudicados.
Diversas dessas estratégias têm mostrado resultados consistentes no tratamento do indivíduo com esquizofrenia, cada uma delas com indicações específicas. O Quadro 19.2 resume as principais abordagens psicossociais usadas na esquizofrenia.
5. Qual o manejo durante uma crise?
ATENDIMENTO DE URGÊNCIA
Pode englobar tanto caso de psicose aguda como transitória. Os casos de urgência são aqueles em que a intervenção não é prioritariamente imediata, podendo ocorrer em dias ou semanas. São pacientes psicóticos devido a doença mental como esquizofrenia ou transtorno de humor. Podem estar com pensamento desorganizado, assim como apresentar delírios e/ou alucinações, mas são capazes de manter impulsos psicóticos em nível aceitável, aliado a um suporte familiar adequado.
A conduta deve ser de intervenção psicofarmacológica.
Haloperidol 5mg, 1comprimido (cp) via oral (VO) ou Risperidona 1mg, 1 cp VO ou Olanzapina 5mg 1 cp VO se o paciente, mesmo com discurso psicótico, se mantiver relativamente calmo em contato com o médico.
Clorpromazina 25mg VO ou Haloperidol 5mg intramuscular (IM) caso o paciente esteja muito inquieto e progressivamente se exaltando.
Encaminhamento para consulta em ambulatório de Psiquiatria.
Nas situações de urgência, também encontramos pacientes sem história de doença mental psicótica ou com organização de personalidade limítrofe. Ameaçam suicídio e/ou agressão física. Impulsivos e inquietos, na sala de emergência sentem-se mais contidos e protegidos e conseguem estabelecer uma aliança terapêutica aceitável com o médico. A conduta também será de psicoeducação, orientação à busca de ajuda especializada. A medicação poderá ser prescrita, tal como esquema proposto acima.
EMERGÊNCIA
Engloba casos de psicose aguda ou transitória. São situações em que a intervenção deve ser imediata. Geralmente encontramos um paciente com a produção de pensamento psicótica, sem perceber que seu problema é de origem interna e não externa, sendo dirigido por impulsos psicóticos. Pode ter o pensamento desorganizado ou, se organizado, muito delirante. Pode ou não apresentar alucinações. Os impulsos não são contidos no pensamento e sim descarregados progressivamente na área motora.
Podemos dividir a emergência em três situações básicas:
Psicose sem descarga intensa dos impulsos no sistema motor:
Pacientes psicóticos agudos com sintomatologia mental intensa e que, no entanto, não descarregam os impulsos psicóticos no sistema motor. Desta forma, mesmo que altamente desorganizados ou paranoides, delirantes ou com alucinações, permanecem sem alteração de comportamento importante. Podem estar, inclusive, apáticos ou até catatônicos. Esta situação permite ao médico examinar o paciente, colher informações com a família e planejar a conduta com calma.
Conduta:
- Haloperidol 5mg 1 cp VO ou Risperidona 1mg 1 cp VO ou Olanzapina 5mg 1 cp VO se o paciente, mesmo com discurso psicótico, se mantiver calmo e em contato aceitável com o médico.
- Clorpromazina 25mg VO ou Haloperidol 5mg IM caso paciente esteja muito inquieto e progressivamente se exaltando.
- Encaminhamento para Psiquiatria para avaliar necessidade de internação hospitalar.
Psicose com sinais de risco iminente de descarga dos impulsos no sistema motor:
Geralmente trata-se de paciente irritado, na maioria das vezes com delírios paranoides. A identificação dos sinais de violência iminente é crucial para evitar desfechos traumáticos que possam pôr em risco a integridade física de todos envolvidos nessas situações.
São sinais de risco iminente:
-Falar alto, aos berros, com xingamentos e palavrões.
-Deambular inquieto durante a consulta, bater com a mão na mesa ou contra a parede.
-Permanecer de punhos cerrados em sinal de luta.
-Olhar arregalado e expressão facial de raiva.
Conduta: não confrontar ou desafiar o paciente. Oferecer medicamentos para acalmá-lo e falar que violência não é tolerada no recinto. Tenha uma equipe de contenção pronta para agir. De preferência, fique mais perto da porta, caso necessite deixar a sala.
A medicação pode ser VO ou IM, conforme médico julgar necessário:
-Haloperidol 5mg 1 cp VO ou Risperidona 1mg 1 cp VO ou Olanzapina 5mg 01 cp VO se o paciente, mesmo com discurso psicótico, apresentar sinais fracos de violência iminente, embora colaborativo ainda. Pode ser necessário repetir em 30-40 min, até 3 vezes.
-Clorpromazina 25mg VO ou Haloperidol 5mg IM caso o paciente esteja muito inquieto e progressivamente se exaltando, mas ainda aceitando manejo do médico.
Psicose com descarga intensa dos impulsos no sistema motor/agitação psicomotora:
A identificação de um quadro de agitação psicomotora se auto impõe pela apresentação. O paciente perde capacidade de pensar ou postergar o descarregamento de seus impulsos no sistema motor e seu comportamento fica à mercê de impulsos psicóticos desordenados. O médico deve pré-avaliar a segurança antes do atendimento. Nestes casos a compleição física e a força do paciente são levadas em conta. Informações sobre histórico de brigas corporais, envolvimento prévio em atos violentos e saber se já machucou outras pessoas são informações muito úteis para o médico decidir se o manejo será em equipe.
Contenção mecânica: deve ser realizada por 5 pessoas, uma para cada membro do corpo e uma para segurar e proteger a cabeça do paciente. O paciente deve ser colocado no leito e ter seus quatro membros contidos com faixas de contenção apropriados com cuidado para não garrotear. Uma faixa de contenção no peito é necessária. Frequentemente uma contenção mecânica apropriada já acalma o paciente, pois ajuda no descontrole do comportamento. Se descartada outra condição médica clínica que esteja causando estes sintomas, passa-se à contenção química.
Contenção química: Pode-se usar Haloperidol 5mg IM, repetindo-se a dosagem em 40-60min até o paciente sedar. Costuma-se associar ao Haloperidol injetável uma ampola de Prometazina 50mg IM para potencializar a sedação do paciente. Em substituição ao Haloperidol, pode-se usar também clorpromazina 25mg IM. Outra opção seria Olanzapina 10mg IM, eficaz no controle da agitação em esquizofrenia, mania e demência. Como é uma droga de custo elevado, tem-se usado pouco no nosso meio4,5 . Uma vez que o paciente tenha sido contido mecânica e quimicamente, o médico poderá proceder o devido encaminhamento do caso para a internação hospitalar em unidade psiquiátrica.
https://docs.bvsalud.org/biblioref/2018/04/883039/11-psicose.pdf
6. Explique o mecanismo de ação da Risperidona.
Risperidona
Trata-se de um antipsicótico “dona” que, portanto, apresenta estrutura química e perfil farmacológico diferentes daqueles dos “pina”. A risperidona tem propriedades de um antipsicótico atípico, particularmente em doses mais baixas. No entanto, talvez se torne mais “convencional” em doses altas, visto que podem ocorrer SEP se a dose for elevada demais.
Assim, a risperidona tem uso preferencial não apenas na esquizofrenia e na mania bipolar em doses moderadas, mas também em outras condições em que possam ser usadas doses mais baixas ou moderadas de antipsicóticos, como em crianças e adolescentes com transtornos psicóticos.
A risperidona foi aprovada para o tratamento da irritabilidade associada ao transtorno autístico em crianças e adolescentes(entre 5 e 16 anos de idade), com sintomas de agressão a outras pessoas, autolesão proposital, ataques de cólera e rápida mudança do humor, com transtorno bipolar(entre 10 e 17 anos) e esquizofrenia(13 a 17 anos).
Em certas circunstâncias, a risperidona em baixa dose é usada “sem indicação na bula” para o tratamento convencional – devido a uma advertência de segurança de tarja preta – da agitação e psicose associadas à demência. Isso ocorre apesar do fato de que os pacientes idosos com psicose associada à demência tratados com qualquer antipsicótico atípico correm maior risco de morte em comparação com o placebo, embora o risco global seja baixo.
Naturalmente, os riscos e os benefícios devem ser avaliados com cuidado para cada paciente antes de se prescrever um antipsicótico atípico para qualquer uso.
A risperidona também está disponível em formulação injetável de depósito de ação longa, com duração de 2 semanas. Essas formulações podem melhorar a adesão ao tratamento. Além disso, se a adesão aumentar, podem-se obter melhores resultados a longo prazo. Dispõe-se, também, de um comprimido de desintegração oral e formulação líquida da risperidona.
Apesar de ser “atípica” em termos de redução dos SEP em doses mais baixas, a risperidona eleva os níveis de prolactina até mesmo em doses baixas. A risperidona apresenta risco moderado de ganho de peso e dislipidemia. O ganho de peso pode ser particularmente um problema em crianças.
Stahl, Stephen M. Psicofarmacologia - Bases Neurocientíficas e Aplicações Práticas. Disponível em: Minha Biblioteca, (4th edição). Grupo GEN, 2014.