LOUCURA NA GRÉCIA ANTIGA: A DESRAZÃO VALORIZADA
A desrazão é entendida como tudo aquilo que uma sociedade enxerga como sendo seu “outro”: a estranheza, a ameaça, a alteridade radical. Essa dimensão pode ser identificada em diversas épocas e, inclusive, pode ser percebida como essencial nas mais variadas formações histórico-sociais. Entretanto, apesar desse lugar de exclusão sempre ter existido, nem sempre coube ao louco a tarefa de representar a desrazão. Inicialmente, por mais que pareça estranho aos olhos de hoje, pode-se afirmar que a experiência com a loucura nem sempre foi considerada algo negativo, muito menos uma doença. Pelo contrário, na Grécia antiga ela já foi considerada até mesmo um privilégio. Filósofos como Sócrates e Platão ressaltaram a existência de uma forma de loucura tida como divina e, inclusive, utilizavam a mesma palavra (manikê) para designar tanto o “divinatório” como o “delirante”. Era através do delírio que alguns privilegiados podiam ter acesso a verdades divinas. Isso não quer dizer que essas pessoas fossem consideradas normais ou iguais, mas que eram portadoras de uma desrazão, a qual, apesar de habitar a vizinhança do homem e do seu discurso, precisava ser mantida numa distância, separando o sagrado das experiências terrenas.
ANTIGUIDADE CLÁSSICA: O ROMPIMENTO ENTRE O MÍSTICO E O RACIONAL
Paulatinamente, a loucura vai se afastando do seu papel de portadora da verdade e vai se encaminhando em uma direção completamente oposta. Na fascinante obra intitulada História da Loucura, pode-se perceber como esse corte entre misticismo e razão pode ser percebido em vários âmbitos da experiência humana. Um dos exemplos abordados na obra é a descrição de como se deu esse rompimento no espaço das artes, através da crescente dissociação entre imagem e escrita, observada nesse período. Com o fim do simbolismo gótico, a imagem é liberada da sabedoria e da lição que a ordenavam e começa a gravitar ao redor de sua própria loucura, através de abundância de significações, de multiplicação do sentido por ele mesmo: “o sentido não é mais lido numa percepção imediata, a figura deixa de falar por si mesma. Entre o saber que a anima e a forma para qual se transpõe, estabelece-se um vazio. Ele está livre para o onirismo”.
Na pintura, pode-se destacar obras como a Nau dos Loucos, a Tentação de Lisboa e o Jardim das Delícias, as quais mostram animais, caras grotescas, pássaros de pescoço alongado. Esses elementos fascinam o espectador, encarnando a loucura em forma de tentação, expondo o mundo com tudo que nele existe de impossível, de fantástico, de inumano. As imagens, ainda que carregadas de fantasmas, exercem sobre o homem do século XV mais poderes de atração do que a realidade.
Por outro lado, na produção escrita do mesmo período, a loucura atrai, mas não fascina: “enquanto Bosh, Brughel e Dürer eram espectadores terrivelmente terrestres, e implicados nessa loucura que viam brotar à sua volta, Erasmo observa-a a uma distância suficiente para estar fora de perigo; observa-a do alto do seu Olimpo, e se canta seus louvores é porque pode rir dela com o riso inextinguível dos deuses”.
Assim, essa brecha entre experiência mística e consciência crítica foi aberta durante a Renascença e nunca mais deixou de se abrir, acentuando um vazio entre o trágico e o crítico que nunca mais será preenchido. A loucura já não é mais porta-voz da verdade divina e em pouco tempo passará a ocupar o lugar de representante simbólico do mal.
IDADE MÉDIA: SAI O LEPROSO, ENTRE O LOUCO
Até o final da Idade Média, aquele espaço da alteridade radical, referido anteriormente no início do texto, era representada pelo leproso. Encarnando o mal e representando o castigo divino, a lepra se espalha rapidamente causando pavor e sentenciando seus portadores à exclusão. Entretanto, com o fim das Cruzadas e a ruptura com os focos orientais de infecção, a lepra retira-se, deixando aberto um espaço que vai reivindicar um novo representante. Alguns séculos depois, essas estruturas de exclusão social passam a ser ocupadas pela figura do louco.
Apesar de se perceber que desde a Idade Média já existiam mecanismos de exclusão do louco, ainda não é aí que a loucura vai ser percebida como um fenômeno que requeira um saber específico, pois os primeiros estabelecimentos criados para circunscrever a loucura destinavam-se simplesmente a retirar do convívio social as pessoas que não se adaptavam a ele. Somente no próximo período histórico é que se transformará essa relação.
SÉCULO XVIII: A LOUCURA COMO OBJETO DO SABER MÉDICO
É o século XVIII que vem, definitivamente, marcar a apreensão do fenômeno da loucura como objeto do saber médico, caracterizando-o como doença mental e, portanto, passível de cura. É o Século das Luzes, onde a razão ocupa um lugar de destaque, pois é através dela que o homem pode conquistar a liberdade e a felicidade. Ocorre valorização do pensamento científico e é em meio a esse contexto que ocorre o surgimento do hospital como espaço terapêutico. Entretanto, deve-se ter cuidado ao imprimir a esse acontecimento uma ótica humanitária e altruísta, pois essa medicalização do hospital não se deu visando “uma ação positiva sobre o doente ou a doença, mas simplesmente uma anulação dos efeitos negativos do hospital”.
Para garantir seu funcionamento, o modelo hospitalar necessitava da instauração de medidas disciplinares que viessem garantir a nova ordem. Assim, surge uma arte de delimitação desse espaço físico, onde são fundamentais os princípios de vigilância constante e registro contínuo, de forma a garantir que nenhum detalhe escape a esse saber.
Dentro desse espaço esquadrinhado, percebe-se uma institucionalização das relações lá exercidas, tornando-se um mundo à parte, afastando cada vez mais o indivíduo de suas relações exteriores. O discurso que alimenta esse sistema percebe os loucos como seres perigosos e inconvenientes que, em função de sua “doença”, não conseguem conviver de acordo com as normas sociais. Retira-se, então, desse sujeito todo o saber acerca de si próprio e daquilo que seria sua doença, ao mesmo tempo em que se delega esse saber ao especialista.
PÓS-GUERRA: MOMENTO PROPÍCIO PARA REFORMAS
Somente no período pós-guerra desponta um cenário propício para o surgimento dos movimentos reformistas da psiquiatria na contemporaneidade. Começam a surgir, em vários países, questionamentos quanto ao modelo hospitalocêntrico, apontando para a necessidade de reformulação. Alguns desses movimentos colocavam em questão o próprio dispositivo médico psiquiátrico e as instituições a ele relacionadas, como exemplo, a experiência de Franco Basaglia nas cidades italianas de Gorizia e Trieste, as quais tinham como principal referência a defesa da desinstitucionalização.
Uma importante questão nessa concepção de reforma diz respeito ao conceito de “doença mental”, o qual passa a ser desconstruído para dar lugar a nova forma de perceber a loucura enquanto “existência-sofrimento” do sujeito em relação com o corpo social. A reforma psiquiátrica brasileira encontra seus principais fundamentos teóricos nessa concepção, propondo-se a seguir a visão teórica adotada na reforma italiana. Entretanto, vale ressaltar que o processo histórico do lidar com a loucura no Brasil teve peculiaridades que o distinguem bastante daquele observado na Europa.
A atenção específica ao doente mental no Brasil teve início com a chegada da Família Real. Em virtude das várias mudanças sociais e econômicas ocorridas e para que se pudesse ordenar o crescimento das cidades e das populações, fez-se necessário o uso de medidas de controle, entre essas, a criação de um espaço que recolhesse das ruas aqueles que ameaçavam a paz e a ordem sociais. Posteriormente, em 1852, é criado o primeiro hospício brasileiro. Tendo o hospital psiquiátrico como cenário e o isolamento como principal técnica, o psiquiatra passou a necessitar de um profissional que servisse de vigilante e, ao mesmo tempo, seguisse suas instruções quanto ao tratamento: “o ‘enfermeiro’ é um agente situado entre o guarda e o médico do hospício, devendo estabelecer entre aquele e o doente a corrente do olhar vigilante”.
Assim, no ano de 1890, foi criada a Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras visando sistematizar a formação de enfermeiros para atuarem no espaço asilar. Num país subdesenvolvido, com um modelo de assistência à saúde centrado na prática curativa e assistencialista, foi fácil transformar a doença mental em mercadoria rentável. Ao se associar a lógica do capital (lucro) à lógica do modelo manicomial (poder disciplinar), não fica difícil perceber que a “assistência” limitava-se ao mínimo que fosse preciso para manter os loucos sob dominação, sem precisar gastar muito.
Na década de 70, não suportando a busca desenfreada pelo lucro dos empresários da saúde, a previdência social entra em crise, mostrando a ineficiência desse modelo e apontando para a necessidade de reformulação. Vale ressaltar que esses questionamentos vieram à tona em meio a um quadro político e econômico específico, caracterizado pelo fim do “milagre econômico”.
No Brasil, desde a época do império, a saúde mental já tinha certa atenção, decorrente da chegada da família real. As pessoas portadoras de algum transtorno mental que fossem oriundas de famílias tradicionais e ricas da sociedade carioca, eram tratadas em espécies de asilos ou intituladas Casas de Misericórdia para que fossem então afastadas do convívio social. Causava um grande espanto e vergonha às famílias abastadas ter em seu convívio um parente que fosse considerado doente mental ou, de acordo com o termo utilizado à época, loucos (SANTOS; MIRANDA, 2015).
A assistência prestada ao indivíduo com problemas mentais surgiu quando se definiu a pessoa louca na sociedade. A partir do século XVII começou-se a ocorrer uma distinção entre as pessoas ''normais'', das que não eram ''normais''. Era preciso libertar a sociedade daqueles que a perturbavam. Se um indivíduo se diferenciasse dos padrões de normalidade da sociedade, ele era considerado como um louco, ou então improdutivo socialmente (CORDEIRO et al., 2012).
De acordo com Santos, Miranda (2015), a forma de excluir os portadores de doenças mentais deu-se por anos e anos, em princípio pelo conceito de anormal e normal. Esta exclusão gerou a necessidade de abrigar os doentes mentais em ambientes segregadores, como uma forma de extirpá-los do meio social e, assim tratar as suas patologias em locais de contenção por suas subjetividades e diferenças. Todavia, o objetivo maior da criação desses locais, denominados de hospitais psiquiátricos era o de resolver os problemas gerados pelos anormais, o caráter de dar uma assistência humanizada ficou em último plano e, devido a isso, o surgimento dos manicômios, no Brasil, se associa em muito ao modelo prisional, e não terapêutico (SANTOS; MIRANDA, 2015).
Historicamente, durante muitos anos, havia várias suposições para a loucura aparecer, segundo Figueirêdo, Delevati, Tavares (2014, p. 124):
Com a antiguidade clássica, até a era cristã, a loucura era vista sob alguns enfoques: o de Homero com um enfoque mitológico-religioso; o de Eurípedes com a concepção passional ou psicológica; e o de Hipócrates e Galeno com o as disfunções somáticas (RAMMINGER, 2002). Na idade média iniciou-se a predominância da loucura como possessão diabólica feita por iniciativa própria ou a pedido de alguma bruxa. Havia duas possibilidades de possessão, sendo a primeira o alojamento do diabo no corpo da pessoa, e a segunda a obsessão, na qual o demônio altera percepções e emoções da pessoa.
De acordo com Saraiva, Santos, Sousa (2016), historicamente, a partir do período em que o louco é definido como aquele que foge dos padrões de normalidade, esse indivíduo precisava ser excluído da sociedade. Desta forma, não havia a menor preocupação com a criação de propostas de tratamentos para a recuperação dessas pessoas, diferente do que acontecia nas outras especialidades médicas, onde os doentes recebiam seus cuidados.
Pelo Decreto n. 82/1841, no Rio de Janeiro foi fundado o Hospício Dom Pedro II, inaugurado no ano de 1852, e renomeado tempos depois de Hospício Nacional de Alienados. Deste modo, o Brasil tornou-se o primeiro país na América Latina a fundar um grande manicômio com base no alienismo que havia na frança, onde o mesmo manteve uma tradição asilar de abrigar os desviantes de todos os tipos, com procedimentos das mais variadas formas e arbitrariedades (QUIMARÃES et al., 2013).
No ano de 1912, foi promulgada a primeira Lei Federal de Assistência aos então tidos como Alienados, seguindo do ganho de status de uma especialidade médica autônoma aos médicos psiquiatras, aumentando assim o número das instituições destinadas aos doentes portadores de transtornos mentais. A criação dessas estruturas manicomiais visava à criação de espaços de poder disciplinadores por meio de hospitais ou de clínicas especializadas. A disciplina realizada nessas instituições também produzia socialmente a normalização dos comportamentos, sendo passíveis de intervenção do saber médico psiquiátrico, sendo uma atuação de higienização da sociedade. Nessa direção, outros dispositivos disciplinadores foram criados, orientando as práticas médicas no tratamento dos loucos (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014).
De acordo com Guimarães et al. (2013), a partir desse momento, foram construídos vários asilos e manicômios em todo o país. Deste modo, ao longo de muitos anos, a assistência ao paciente psiquiátrico esteve-se completamente atrelada ao tratamento restrito no interior dos grandes manicômios espalhados por todo o país, com a internação prolongada e a manutenção da segregação dos doentes mentais do espaço familiar e social. As internações ocorriam de maneira automática e arbitrária, pode-se considerar uma verdadeira autorização de sequestro, privando o indivíduo de sua liberdade, mantendo-os em cativeiro. O foco da atenção não era a pessoa, o indivíduo, mas sim a sua doença.
Os portadores de transtorno mental eram marginalizados e desprovidos de qualquer autonomia, não eram vistos como indivíduos ativos da sua terapêutica. A esses hospitais cabia somente a responsabilidade de acabar com os sintomas da então desordem psíquica. No tratamento eram utilizados diversos recursos, que variavam desde a internação em si, às técnicas de hidroterapia, a administração exagerada de medicamentos, e até aplicação de estímulos elétricos ou até mesmo o uso de procedimentos cirúrgicos. O objetivo destas instituições psiquiátricas era o de utilizar dispositivos que causassem a correção do que era sinalizado como uma anormalidade (QUIMARÃES et al., 2013).
Os pacientes internados nos manicômios, com os mais diversos transtornos mentais não eram respeitados, não tinham direitos como indivíduos que estavam em grande sofrimento psíquicos, mais eram tratados com violências, com total desrespeito. Segundo Guimarães et al., (2013, p. 362):
Foi no interior do manicômio, que surgiu a enfermagem brasileira. Sua origem não objetivou melhorar a assistência aos internos, mas vigiar, controlar e puni-los por seus atos. Não existiam trocas sociais entre trabalhadores de saúde e os internos, como comunicação, afetividade e acolhimento, os portadores de transtorno mental não recebiam tratamento digno, muitas vezes eram tratados com violência e, por não serem estimulados, suas potencialidades eram reduzidas até se tornarem incapazes de regressar ao convívio social.
De acordo com Santos, Miranda (2015), em sua grande maioria, tais asilos eram organizados e comandados pela Igreja Católica, onde eram deixados os que fossem considerados nocivos à vida em sociedade com o pretexto de que esses indivíduos estariam incomodando a sociedade. Assim, entre os que eram nocivos a sociedade estava os leprosos, os mendigos, os ladrões, as prostitutas, os doentes mentais e qualquer que fossem considerados perigosos. A primeira vista, as Casas de Misericórdia possuíam caráter religioso, mas a realidade era outra, estas funcionavam muito mais como cárceres do que como um ambiente religioso, pois os que ali internados estavam não possuíam qualquer tratamento humanizado, eram tratados de forma miserável, muitas das vezes, sem alimentação e uma higiene necessária. Factualmente no século XIX é que no Brasil aconteceram as transformações referentes à assistência prestada aos pacientes psiquiátricos, onde a psiquiatria científica passou a ser implementada.
Após a 2ª Guerra Mundial, surgiu na Europa e nos Estados Unidos, movimentos que não concordava com a então tradicional forma de tratamento dos pacientes com transtornos mentais. O Movimento Institucional na França e as Comunidades Terapêuticas da Inglaterra foram exemplos desses movimentos, que culminaram com movimentos mais amplos da antipsiquiatria. Esses movimentos defendiam as perspectivas humanistas em relação à saúde mental. Desses movimentos de reforma, no Brasil, iniciou-se ao final da década de 1970, com a o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, a partir das denúncias contra as violências nos asilos e nas péssimas condições de trabalho dentro das instituições psiquiátricas (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014).
De acordo com Cordeiro et al. (2012), somente a partir de muito tempo é que a saúde mental começou a ganhar um olhar diferenciado, com a criação da psiquiatria positiva, que pode ser definida como uma ciência e prática clínica que procura entender e promover o bem-estar dos indivíduos, tratando o doente e cultivando o que há de bom em cada pessoa, e também a criação do modelo asilar do século XIX, que marca o início da medicalização e terapeutização.
De 1950 em diante, as políticas de saúde mental passaram por muitas modificações, essas mudanças começaram em países como a Itália, a França e os Estados Unidos, que posteriormente influenciaram o Brasil. Essas mudanças se intensificaram nas décadas de 80, 90 e do século XX. O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental reivindicava mudanças no modelo assistencial, que incorpora outros segmentos sociais, os usuários, suas famílias e associações, o que configura num movimento de luta antimanicomial que prega a desinstitucionalização, e focaliza no cuidar das pessoas com transtornos mentais (HIRDES, 2009).