Sr. Valdir, 67 anos, há aproximadamente um ano, notou aumento do volume abdominal. Procurou o médico, que detectou ascite no exame clínico e nódulos hepáticos visualizados por ultrassonografia. Referia hábito de consumir pelo menos meia garrafa de cachaça ao dia todos os dias, além de seis latas de cerveja ao dia, nos finais de semana, há cerca de 20 anos. Os exames laboratoriais realizados na ocasião evidenciaram enzimas hepáticas aumentadas, sem alteração das bilirrubinas. Foi solicitada endoscopia digestiva alta, que o paciente não realizou, evadindo-se do serviço.
Recentemente, apresentou episódios de vômito, com eliminação de grande quantidade de sangue vermelho vivo. Foi levado à Emergência por sua esposa, que relatou tremor matinal, irritabilidade/sonolência e diminuição da memória recente. Seus olhos estavam um pouco amarelados e seu abdome mais distendido. Ao exame, o médico da Emergência observou queda do estado de consciência, com abertura dos olhos somente à estimulação intensa. O paciente estava descorado (+++/4+), ictérico (++/4+) e desidratado (++/4+). Havia telangectasias na face superior do tórax, bem como ginecomastia e eritema palmar. No exame do abdome notava-se circulação colateral do tipo porto-cava, distensão, com macicez móvel e sinal do piparote presentes. Não era possível palpar fígado ou baço. Os exames laboratoriais demonstraram, além de anemia, tempo de protrombina, AST, ALT, amilase e bilirrubinas alterados.
Logo a seguir, o paciente apresentou novo episódio de hematêmese, PA de 80x40mmHg e pulso de 120bpm. A volemia foi reposta com concentrado de hemácias, plasma fresco e soro fisiológico. O sangramento foi contido emergencialmente com balão esofágico. Após melhora da condição hemodinâmica, o paciente foi submetido a endoscopia digestiva alta onde foram observadas varizes esofagianas calibrosas, sendo realizada escleroterapia. Algumas horas após, o paciente teve piora de sua condição clínica e evoluiu para o óbito.
Problemas: Foram grifados no texto acima.
Hipóteses:
Sr. Valdir desenvolveu cirrose alcoólica pelo consumo excessivo de álcool.
As enzimas hepáticas estão aumentadas pois, há uma lesão hepática, isto é, morte de hepatócitos.
Os nódulos se desenvolveram em razão da fibrose hepática.
O paciente desenvolveu ascite e circulação colateral devido a hipertensão portal de dano aos sinusóides.
A hematêmese é em razão do rompimento de varizes esofágicas formadas em razão da hipertensão portal.
A perda de volume explica a hipotensão e aumento da FC.
Questões de Aprendizagem:
Defina cirrose
Quais as principais etiologias da cirrose
Descreva a fisiopatologia da cirrose hepática (HND)
Quais as manifestações clínicas da cirrose? (Encefalopatia e ascite)
Explique as alterações laboratoriais e físicas do Sr. Valter (bilirrubina, ginecomastia, etc..).
Quais os exames para o diagnóstico da cirrose?
Quais os principais diagnósticos diferenciais da cirrose
Qual o tratamento da cirrose? (medicamentoso e não medicamentoso)
Quais os padrões de consumo do álcool? (Dose tóxica)
http://gmbahia.ufba.br/index.php/gmbahia/article/viewFile/305/296
Síntese ndividual:
1.Defina cirrose.
A cirrose, que pode constituir o estágio final de qualquer doença hepática crônica, é um processo difuso, caracterizado por fibrose e transformação da arquitetura normal em nódulos estruturalmente anormais. Esses nódulos “regenerativos” não apresentam organização lobular normal e são circundados por tecido fibroso. O processo acomete todo o fígado e, em geral, é considerado irreversível. Embora a cirrose seja, do ponto de vista histológico, um diagnóstico de “tudo ou nada”, ela pode ser clinicamente classificada em compensada ou descompensada. A cirrose descompensada é definida pelo achado de ascite, sangramento varicoso, encefalopatia ou icterícia, que são complicações decorrentes das principais consequências da cirrose: a hipertensão portal e a insuficiência hepática.
A cirrose é caracterizada pela desorganização da arquitetura lobular do fígado, definida histologicamente por fibrose e formação de nódulos regenerativos. A cirrose é classificada de acordo com suas características morfológicas e suas manifestações clínicas.
Morfologicamente, a cirrose é classificada em macronodular, quando formada por nódulos com diâmetro maior ou igual a 3 mm; micronodular, quando constituída por nódulos menores que 3 mm; mista, caracterizada pela presença de nódulos de tamanhos variados. Essa classificação não tem qualquer valor prognóstico, e alguns casos de cirrose de padrão micronodular podem evoluir para padrão macronodular. O padrão micronodular é mais frequentemente visto na etiologia alcoólica, enquanto cirrose macronodular é mais comumente observada nas cirroses secundárias às hepatites virais e à doença de Wilson. Cirrose é um termo histopatológico. Recentemente, tem sido recomendada sua substituição por hepatopatia crônica em fase avançada, que pode ser caracterizada tanto pela análise histopatológica do parênquima hepático, quanto por marcadores não invasivos clínicos, laboratoriais e radiológicos de fibrose hepática. A depender da presença de complicações de insuficiência hepática ou de hipertensão portal, a cirrose é classificada como compensada ou descompensada.
A cirrose compensada é frequentemente assintomática ou oligossintomática, sendo os sinais e sintomas, quando presentes, geralmente inespecíficos, como fadiga, anorexia e perda de massa muscular. Icterícia e sinais periféricos de doença crônica parenquimatosa do fígado (DCPF), como eritema palmar, telangiectasias, ginecomastia e atrofia testicular, podem também estar presentes.
A cirrose é dita descompensada na ocorrência de qualquer complicação secundária à insuficiência hepática ou à hipertensão portal, tais como ascite, hemorragia digestiva varicosa, encefalopatia hepática (EH) e infecções, particularmente, peritonite bacteriana espontânea (PBE), infecção respiratória e urinária.
A descompensação da cirrose pode levar à disfunção de órgãos e sistemas, incluindo fígado, rins, pulmões, sistema nervoso central, sistema circulatório e coagulação. Essa descompensação pode desencadear insuficiência hepática crônica agudizada (IHCA), síndrome associada a altas morbidade e mortalidade intra-hospitalar.
2. Quais as principais etiologias da cirrose.
Tendo em vista que muitos pacientes com cirrose são assintomáticos até que ocorra descompensação, é difícil avaliar a verdadeira prevalência e incidência da cirrose na população geral. A prevalência da doença hepática crônica ou cirrose no mundo inteiro é estimada em 100 (faixa de 25 a 400) por 100.000 indivíduos, porém varia amplamente de um país para outro e de uma região geográfica para outra.
A cirrose é uma causa importante de morbidade e morte no mundo inteiro e nos EUA. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, cerca de 800.000 pessoas morrem anualmente de cirrose. Nos EUA, a cirrose é responsável por cerca de 32.000 mortes por ano, ou uma taxa de mortalidade de 10,3 por 100.000, tornando-a, assim, a décima segunda causa principal de morte. É importante assinalar que, nos EUA, a doença hepática crônica e a cirrose constituem a sexta causa principal de morte em indivíduos entre 25 e 44 anos e a quinta causa principal em indivíduos entre 45 e 64 anos. Como a doença hepática crônica afeta os indivíduos em seus anos mais produtivos de sua vida, ela tem impacto significativo sobre a economia, em consequência de morte prematura, doença e invalidez.
Qualquer doença hepática crônica pode levar à cirrose. A hepatite viral C e a doença hepática alcoólica são as causas mais comuns de cirrose, contudo, com o advento da terapia efetiva da hepatite C e da epidemia de obesidade, a esteato-hepatite não alcoólica está se tornando uma causa mais comum de cirrose. Outras causas de cirrose incluem hepatite B e hepatopatias autoimunes, tais como colangite biliar primária, colangite esclerosante primária, hepatite autoimune e doenças metabólicas, como hemocromatose e doença de Wilson. O estado de portador heterozigoto da variante alfa1-antitripsina Pi*Z, que é encontrada em até 10% das pessoas de ascendência europeia, aumenta o risco de cirrose hepática em pacientes com doença hepática ou abuso de álcool etílico. Quando todas as possíveis causas são investigadas e descartadas, a cirrose é considerada “criptogênica”. Acredita-se hoje que muitos casos de cirrose criptogênica sejam decorrentes de esteato-hepatite não alcoólica.
3. Descreva a fisiopatologia da cirrose hepática (HND).
Fibrose hepática e cirrose
A característica patogênica essencial subjacente à fibrose hepática e cirrose é a ativação das células estreladas hepáticas. As células estreladas do fígado, que são conhecidas como células de Ito ou células perissinusoidais, estão localizadas no espaço de Disse, entre os hepatócitos e as células endoteliais sinusoidais. Normalmente, as células estreladas hepáticas são quiescentes e atuam como principal local de armazenamento de retinoides (vitamina A). Em resposta a uma lesão, as células estreladas hepáticas tornam-se ativadas e, em consequência, perdem seus depósitos de vitamina A, proliferam, desenvolvem um retículo endoplasmático rugoso proeminente e secretam matriz extracelular (colágeno dos tipos I e III, proteoglicanos sulfatados e glicoproteínas). Além disso, transformam-se em miofibroblastos hepáticos contráteis.
Ao contrário de outros capilares, os sinusoides hepáticos normais não têm membrana basal. As próprias células endoteliais sinusoidais apresentam grandes fenestrações (100 a 200 nm de diâmetro), que possibilitam a passagem de grandes moléculas, com massa molecular superior a 250.000 dáltons. O depósito de colágeno no espaço de Disse, como ocorre na cirrose, leva à perda das fenestrações das células endoteliais sinusoidais (“capilarização” dos sinusoides), alterando, dessa maneira, a troca entre o plasma e os hepatócitos, com consequente diminuição do diâmetro dos sinusoides, o que é ainda mais exacerbado pela contração das células estreladas.
Complicações da cirrose
As duas principais consequências da cirrose são a hipertensão portal, acompanhada de um estado circulatório hiperdinâmico, e a insuficiência hepática. O desenvolvimento de varizes e ascite representa uma consequência direta da hipertensão portal e do estado circulatório hiperdinâmico, enquanto a icterícia ocorre como resultado da incapacidade do fígado de excretar a bilirrubina (i. e., insuficiência hepática). A encefalopatia é causada tanto pela hipertensão portal quanto pela insuficiência hepática. Por sua vez, a ascite pode ser complicada por infecção, quando é denominada peritonite bacteriana espontânea, e pela insuficiência renal funcional, que é denominada síndrome hepatorrenal.
Complicações da cirrose em consequência de hipertensão portal e insuficiência hepática. As varizes e a hemorragia varicosa são consequências diretas da hipertensão portal. A ascite resulta de hipertensão portal sinusoidal e pode ser complicada por infecção (peritonite bacteriana espontânea [PBE]) ou disfunção renal (síndrome hepatorrenal [SHR]). A encefalopatia hepática resulta de derivação portossistêmica (i. e., hipertensão portal) e de insuficiência hepática. A icterícia resulta unicamente de insuficiência hepática.
Aumento da pressão sinusoidal hepática na cirrose. No fígado normal (à esquerda), a vascularização intra-hepática é complacente, e o gradiente de pressão venosa hepática, que é a medida de pressão sinusoidal, é 5 mmHg ou menos. No fígado cirrótico (à direita), ocorre distorção da arquitetura sinusoidal pelos nódulos regenerativos e fibrose, resultando em aumento da resistência intra-hepática, hipertensão portal, esplenomegalia e vasos colaterais portossistêmicos; o gradiente de pressão venosa hepática é superior a 5 mmHg. Ocorre desenvolvimento das complicações da cirrose quando o gradiente ultrapassa 10 a 12 mmHg.
Hipertensão portal e estado circulatório hiperdinâmico
Na cirrose, a hipertensão portal resulta tanto do aumento da resistência ao fluxo porta quanto da elevação do influxo venoso porta. O mecanismo inicial consiste em aumento da resistência vascular sinusoidal secundária à (1) deposição de tecido fibroso e compressão subsequente pelos nódulos regenerativos (componente fixo), que, teoricamente, poderia ser acessível a agentes antifibróticos e poderia ser melhorada por meio da resolução do processo etiológico subjacente, e (2) à vasoconstrição ativa (componente funcional), que é passível de resposta à ação de agentes vasodilatadores, como nitroprusseto, e é causada pela deficiência de óxido nítrico (NO) intra-hepático, bem como pela atividade aumentada dos vasoconstritores.
Inicialmente, no processo hipertensivo portal, o baço aumenta de tamanho e sequestra plaquetas e outros elementos figurados do sangue, resultando em hiperesplenismo. Além disso, os vasos que normalmente drenam para o sistema porta, como a veia gástrica esquerda, revertem seu fluxo e causam desvio do sangue do sistema porta para a circulação sistêmica. Esses colaterais portossistêmicas não são suficientes para descomprimir o sistema venoso porta e oferecem resistência adicional ao fluxo porta. À medida que ocorre desenvolvimento de colaterais, um aumento do fluxo sanguíneo porta, que resulta da vasodilatação esplâncnica, mantém o estado hipertensivo portal. Por sua vez, a dilatação arteriolar esplâncnica é secundária ao aumento da produção de NO. Por conseguinte, o paradoxo na hipertensão portal é o fato de que a deficiência de NO na vascularização intra-hepática leva à vasoconstrição e resistência aumentada, enquanto a superprodução de NO na circulação extra-hepática leva à vasodilatação e fluxo porta aumentado.
Além da vasodilatação esplâncnica, ocorre vasodilatação sistêmica que, ao provocar uma redução efetiva do volume sanguíneo arterial, leva à ativação do sistema neuro-humoral (sistema renina-angiotensina-aldosterona), retenção de sódio, expansão do volume plasmático e desenvolvimento de um estado circulatório hiperdinâmico. Esse estado circulatório hiperdinâmico mantém a hipertensão portal, levando, assim, à formação e ao crescimento de varizes e desempenha um importante papel no desenvolvimento de todas as complicações da cirrose.
Varizes e hemorragia varicosa
A complicação da cirrose que resulta mais diretamente da hipertensão portal é o desenvolvimento de colaterais portossistêmicos, dos quais os mais relevantes são os que se formam a partir da dilatação das veias gástrica esquerda e gástricas e constituem varizes gastresofágicas. A formação inicial dos colaterais esofágicos depende de uma pressão portal limiar, clinicamente estabelecida por um gradiente de pressão venosa hepática de 10 a 12 mmHg, abaixo do qual não há desenvolvimento de varizes.
O desenvolvimento de um estado circulatório hiperdinâmico leva a uma dilatação ainda maior e ao crescimento de varizes e, por fim, a sua ruptura e hemorragia varicosa, que é uma das complicações mais temidas da hipertensão portal. A tensão em uma variz determina a ruptura varicosa e é diretamente proporcional ao diâmetro da variz e à pressão intravaricosa e inversamente proporcional à espessura da parede da variz.
Ascite e síndrome hepatorrenal
A ascite, que consiste no acúmulo de líquido intraperitoneal, na cirrose é secundária à hipertensão sinusoidal e à retenção de sódio. A cirrose leva à hipertensão sinusoidal por meio de bloqueio do fluxo venoso hepático, tanto anatomicamente pela fibrose e pelos nódulos regenerativos quanto funcionalmente pelo aumento do tônus vascular pós-sinusoidal. À semelhança da formação das varizes esofágicas, é necessário um gradiente de pressão venosa hepática limiar de 12 mmHg para a formação de ascite. Além disso, a retenção de sódio aumenta o volume intravascular e possibilita a formação contínua de ascite. A retenção de sódio resulta da vasodilatação, que é, em grande parte, decorrente de um aumento da produção de NO, visto que a inibição de NO em animais experimentais aumenta a excreção urinária de sódio, reduz os níveis plasmáticos de aldosterona e diminui a ascite. Com a progressão da cirrose e da hipertensão portal, a vasodilatação é mais pronunciada, levando, assim, a maior ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona e do sistema nervoso simpático, resultando em maior retenção de sódio (ascite refratária), retenção de água (hiponatremia) e vasoconstrição renal (síndrome hepatorrenal).
Peritonite bacteriana espontânea
A peritonite bacteriana espontânea, uma infecção do líquido ascítico, ocorre na ausência de perfuração de um órgão oco ou de um foco inflamatório intra-abdominal, como abscesso, pancreatite aguda ou colecistite. A translocação bacteriana, ou migração de bactérias do lúmen intestinal para os linfonodos mesentéricos e outros locais extraintestinais, constitui o principal mecanismo envolvido na peritonite bacteriana espontânea. O comprometimento das defesas imunes locais e sistêmicas representa um importante elemento na promoção da translocação bacteriana e, juntamente com desvio do sangue para longe das células de Kupffer do fígado por meio dos colaterais portossistêmicos, faz com que a bacteriemia transitória se torne mais prolongada, com consequente colonização do líquido ascítico. Ocorre peritonite bacteriana espontânea em pacientes com mecanismos de defesa reduzidos para a ascite, como baixo nível de complemento no líquido ascítico.
Outro fator que promove a translocação bacteriana na cirrose é a proliferação bacteriana intestinal, atribuída a uma diminuição da motilidade do intestino delgado e do tempo de trânsito intestinal. As infecções, particularmente causadas por bactérias gram-negativas, podem precipitar disfunção renal por meio de agravamento do estado circulatório hiperdinâmico.
Encefalopatia
A encefalopatia hepática consiste em disfunção cerebral causada por insuficiência hepática, derivação portossistêmica ou ambos. A amônia, uma toxina normalmente removida pelo fígado, desempenha um papel essencial na patogenia. Na cirrose, a amônia acumula-se na circulação sistêmica, em decorrência do desvio de sangue por meio dos colaterais portossistêmicos e redução do metabolismo hepático (i. e., insuficiência hepática). Altas concentrações de amônia no encéfalo provocam dano às células cerebrais de sustentação ou astrócitos e leva a alterações estruturais características da encefalopatia hepática (astrocitose de Alzheimer do tipo II). A amônia resulta em suprarregulação dos receptores astrocíticos benzodiazepínicos do tipo periférico, que constituem os estimulantes mais potentes da produção de neuroesteroides. Os neuroesteroides são os principais moduladores do ácido gama-aminobutírico, o que resulta em depressão cortical e encefalopatia hepática. Outras toxinas, como o manganês, também se acumulam no encéfalo, sobretudo no globo pálido, onde levam ao comprometimento da função motora. Outras toxinas que ainda precisam ser elucidadas também podem estar envolvidas na patogenia da encefalopatia.
Icterícia
A icterícia na cirrose é um reflexo da incapacidade do fígado de excretar a bilirrubina e constitui, portanto, o resultado da insuficiência hepática. Entretanto, nas doenças colestáticas que levam à cirrose (p. ex., cirrose biliar primária, colangite esclerosante primária, síndrome do desaparecimento dos ductos biliares), a icterícia deve-se, mais provavelmente, à lesão biliar do que à insuficiência hepática. Outros indicadores de insuficiência hepática, como encefalopatia ou o prolongamento da razão normalizada internacional, ajudam a determinar o contribuinte mais provável para a hiperbilirrubinemia.
Complicações cardiopulmonares
O estado circulatório hiperdinâmico resulta finalmente em insuficiência cardíaca de alto débito, com diminuição da utilização periférica do oxigênio, uma complicação que foi designada como cardiomiopatia cirrótica. A vasodilatação que ocorre na circulação pulmonar leva à hipoxemia arterial, a característica essencial da síndrome hepatopulmonar. Os capilares pulmonares normais têm 8 μm de diâmetro, e os eritrócitos (ligeiramente menos que 8 μm) passam através deles, uma célula de cada vez, facilitando, assim, a oxigenação. Na síndrome hepatopulmonar, os capilares pulmonares estão dilatados até 500 μm, de modo que a passagem dos eritrócitos pelos capilares pulmonares pode ter um diâmetro correspondente a muitas células. Em consequência, um grande número de eritrócitos não é oxigenado, causando o equivalente de um desvio (shunt) direita-esquerda.
Em contrapartida, ocorre hipertensão portopulmonar quando o leito pulmonar é exposto a substâncias vasoconstritoras, que podem ser produzidas na circulação esplâncnica e não sofrer metabolismo hepático; o resultado inicial consiste em hipertensão pulmonar reversível. Entretanto, como esses fatores resultam em proliferação endotelial, vasoconstrição, trombose in situ e obliteração dos vasos, surge hipertensão pulmonar irreversível.
O parênquima hepático está organizado em lóbulos circundados por espaços portais formados por estroma conjuntivo frouxo, veia porta terminal, arteríola hepática e canalículo biliar, com centro constituído por veia hepática central. O ácino é a estrutura funcional tridimensional na qual o sangue, com nutrientes provenientes do intestino carregados pela veia porta e suas ramificações, flui a partir das veias porta terminais para os sinusoides hepáticos, formados por traves de hepatócitos sustentadas por um arcabouço de fibras reticulínicas, para as veias hepáticas centrais que coalescem para formar as veias hepáticas.
Na cirrose, ocorre colapso dos lóbulos hepáticos por agressão hepatocelular e reparo com formação de septos fibrosos e nódulos regenerativos. Vários agentes etiológicos, incluindo células do sistema imune, vírus, álcool, endo-toxinas, ferro, cobre e hipóxia, são capazes de induzir lesão hepatocelular e morte celular por apoptose ou necrose. Esses agentes podem provocar lesão hepática por ação direta ou mais frequentemente por ativação de uma série de mediadores intra e extracelulares e ativação e proliferação de células hepáticas, tais como células de Kupffer, células estrelares e endoteliais. A fibrose ocorre por deposição de matriz extracelular constituída por colágeno, proteo-aminoglicanos e glicoproteínas. A principal célula responsável pela síntese de componentes da matriz extracelular no fígado é a célula de Ito. As células de Ito, também conhecidas como células estrelares ou estreladas, localizam-se no espaço perisinusoidal, sendo, em condições basais, sítio de armazenamento de vitamina A. Na presença de lesão hepatocelular, são ativadas em resposta à consequente produção de citocinas e quimiocinas como fator de crescimento de plaquetas e de endotélio, TGF-beta-1 e fator de necrose tumoral. A ativação de células estrelares induz a sua proliferação, o aumento na síntese de componentes da matriz extracelular, particularmente colágeno do tipo I, o aumento na sua contratilidade, a secreção de citocinas e quimiocinas e a perda dos depósitos intracelulares de vitamina A.
Lesão hepatocelular persistente ou intermitente, com colapso do arcabouço de fibras reticulínicas associada à fibrose por deposição de matriz extracelular, leva à formação de septos porta-porta e porta-centro, à transformação nodular do parênquima hepático pela presença de nódulos hepáticos incompletos e, na presença de nódulos hepáticos constituídos, à caracterização da cirrose.
A cirrose, independentemente dos aspectos peculiares relacionados à sua etiologia, manifesta-se como insuficiência hepática e/ou hipertensão portal associada ou não à disfunção circulatória, traduzindo-se clinicamente pelo aparecimento de ascite, edema de membros inferiores, encefalopatia hepática (EH), infecções, hemorragia digestiva varicosa, síndrome hepatopulmonar (SHP) e hipertensão portopulmonar.
A insuficiência hepática é decorrente da diminuição da massa funcional de hepatócitos, com consequente redução da síntese de proteínas plasmáticas e distúrbios no metabolismo de carboidratos e lipídios, do catabolismo e da biotransformação de aminoácidos, hormônios, agentes xenobióticos, e da neutralização e destruição de microrganismos provenientes do intestino pelo sistema venoso portal.
A hipertensão portal clinicamente relevante é definida hemodinamicamente pelo achado de pressão venosa portal superior a 10 mmHg, sendo secundária ao aumento da resistência intra-hepática do fluxo portal atribuído à cirrose e ao aumento no fluxo sanguíneo portal, decorrente da vasodilatação da circulação esplâncnica característica da cirrose. O aumento da resistência intra-hepática é determinado por alterações estruturais, tais como fibrose, capilarização dos sinusoides e presença de nódulos regenerativos, e por alterações dinâmicas potencialmente reversíveis atribuídas à vasoconstrição sinusoidal secundária à contração das células estreladas em resposta, principalmente à diminuição na produção intra-hepática de óxido nítrico.
O aumento do fluxo sanguíneo portal é decorrente da vasodilatação esplâncnica atribuída ao desequilíbrio local entre mediadores vasoconstritores e vasodilatadores, responsável também pela disfunção circulatória progressiva característica do cirrótico. A disfunção circulatória é caracterizada pelas alterações hemodinâmicas secundárias à vasodilatação esplâncnica e sistêmica observada em pacientes com cirrose e hipertensão portal. O principal mediador da vasodilatação esplâncnica e sistêmica observada em modelos experimentais de cirrose é o óxido nítrico (NO), potente vasodilatador, cuja síntese é elevada em células endoteliais desses territórios vasculares. Por outro lado, observa-se, na cirrose, redução da síntese desse vasodilatador por células endoteliais sinusoidais, que contribui para o aumento da resistência intra-hepática ao fluxo sanguíneo portal.
A primeira manifestação da disfunção circulatória é a vasodilatação esplâncnica, que causa a diminuição do volume plasmático efetivo com a ativação de mecanismos compensatórios, como sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) e consequente retenção de sódio e água.
Com a progressão da disfunção circulatória, ocorre vasodilatação nas circulações esplâncnica e sistêmica, o que determina diminuição da resistência vascular sistêmica e redução progressiva do volume plasmático efetivo, levando à ativação do SRAA, do sistema nervoso autônomo com liberação de catecolaminas e da secreção não osmótica de hormônio antidiurético. Esses eventos são responsáveis pela circulação hiperdinâmica do cirrótico, caracterizada por aumento do índice cardíaco e redução da resistência vascular sistêmica e pelas complicações terminais da cirrose, secundárias à falência desses mecanismos compensatórios: hipotensão, uremia por vasoconstrição renal progressiva e hiponatremia dilucional.
A cirrose é denominada compensada na ausência de complicações relacionadas à insuficiência hepática, à hipertensão portal e/ou à disfunção circulatória.
Alterações nutricionais: fadiga, anorexia e perda de massa muscular podem ser manifestações da desnutrição proteico-calórica, associada à insuficiência hepatocelular, ou podem ser reflexo da ação de citocinas pró-inflamatórias, desencadeadas pelos mecanismos de agressão hepatocelular. Icterícia e colúria podem ser decorrentes da necrose de células hepáticas, dos defeitos na conjugação da bilirrubina e dos distúrbios na excreção biliar em virtude da desorganização da estrutura hepática. Alterações endócrinas e cutâneas: os distúrbios no metabolismo de estrógenos são responsáveis pela presença de aranhas vasculares, ginecomastia, perda ou diminuição da libido e impotência. Ocorrem aumento da resistência periférica à insulina e déficit na produção de substratos energéticos por glicogenólise e gliconeogênese, predispondo ao desenvolvimento de diabetes e hipoglicemia. Alterações na coagulação sanguínea: o fígado é o principal local de síntese de todos os fatores de coagulação (com exceção do fator von Willebrand), do plasminogênio e dos inibidores de protease antitrombina III e proteínas C e S.
O fígado é também o principal local de degradação de fatores de coagulação ativados. Na cirrose, ocorre redução da síntese de fatores pró-coagulantes e anticoagulantes e diminuição da depuração de fatores de coagulação ativados. Concomitantemente, observa-se plaquetopenia, secundária na maioria das vezes ao hiperesplenismo, e disfunção plaquetária de origem multifatorial.
As alterações mais frequentes de coagulação são os distúrbios de hemostasia secundários à deficiência dos fatores de coagulação, demonstradas em laboratório por alargamento do INR e do tempo de protrombina e por alterações quantitativas e qualitativas das plaquetas. No entanto, também podem ocorrer fenômenos tromboembólicos e coagulação intravascular disseminada. A colestase, que ocorre em algumas causas de cirrose, leva, associadamente, à diminuição dos fatores de coagulação dependentes de vitamina K, passível de correção com a administração parenteral de fitomenadiona.
SRAA: sistema renina, angiotensina, aldosterona; HAD: hormônio antidiurético.
4. Quais as manifestações clínicas da cirrose? (Encefalopatia e ascite)
Dependendo do estágio da cirrose, as manifestações clínicas variam amplamente, desde um paciente assintomático sem sinais de doença hepática crônica até um paciente que apresenta confusão mental e icterícia, com grave perda da massa muscular e ascite. A história natural da cirrose caracteriza-se por uma fase inicial, denominada cirrose compensada, seguida de uma fase rapidamente progressiva, que se caracteriza pelo desenvolvimento de complicações da hipertensão portal ou disfunção hepática (ou ambas), designada como cirrose descompensada.
Na fase compensada, a função de síntese hepática está, em sua maior parte, normal, e a pressão portal, apesar de aumentada, é inferior ao valor limiar necessário para o desenvolvimento de varizes ou ascite. À medida que a doença progride, a pressão portal aumenta, e ocorre agravamento da função hepática, resultando, assim, no desenvolvimento de ascite, sangramento gastrintestinal por hipertensão portal, encefalopatia e icterícia.
O desenvolvimento de qualquer uma dessas complicações clinicamente detectáveis caracteriza a transição da fase compensada para a fase descompensada. A progressão para a morte pode ser acelerada pelo desenvolvimento de outras complicações, como sangramento gastrintestinal recorrente, comprometimento renal (ascite refratária, síndrome hepatorrenal), síndrome hepatopulmonar e sepse (peritonite bacteriana espontânea). O desenvolvimento de carcinoma hepatocelular pode acelerar a evolução da doença em qualquer estágio. A transição do estágio compensado para o descompensado ocorre em uma taxa de 5 a 7% por ano. O tempo mediano para a descompensação ou tempo em que metade dos pacientes com cirrose compensada torna-se descompensada, é de cerca de 6 anos.
História natural da cirrose. Qualquer doença hepática crônica levará à cirrose. No início, a cirrose é compensada (sobrevida mediana > 12 anos); entretanto, com o desenvolvimento das complicações (ascite, hemorragia varicosa, encefalopatia, icterícia), torna-se descompensada (sobrevida mediana, 1,6 ano). O carcinoma hepatocelular (CHC) pode desenvolver-se em qualquer estágio e pode precipitar descompensação e morte.
Cirrose compensada
Nesse estágio, a cirrose é principalmente assintomática e é diagnosticada durante a avaliação de doença hepática crônica ou de maneira fortuita, durante um exame físico de rotina, exames bioquímicos, exames de imagem realizados por outros motivos, endoscopia mostrando varizes gastresofágicas ou cirurgia abdominal, na qual se detecta um fígado nodular.
As únicas queixas podem consistir em fadiga inespecífica, perda de peso, diminuição da massa muscular, diminuição da libido ou transtornos do sono. Cerca de 40% dos pacientes com cirrose compensada apresentam varizes esofágicas. As varizes gastresofágicas não hemorrágicas são assintomáticas, e a sua existência (sem sangramento) não denota descompensação.
Cirrose descompensada
Nesse estágio, surgem sinais de descompensação: ascite, varizes hemorrágicas, icterícia, encefalopatia hepática ou qualquer combinação desses achados. A ascite, que é o sinal mais frequente de descompensação, está presente em 80% dos pacientes com cirrose descompensada.
Hemorragia varicosa
Ocorrem varizes gastresofágicas em cerca de 50% dos pacientes com cirrose recém-diagnosticada. A prevalência das varizes correlaciona-se com a gravidade da doença hepática e varia de 40% em pacientes com cirrose Child A a 85% em pacientes com cirrose Child C.
Tanto o desenvolvimento de varizes quanto o crescimento de pequenas varizes ocorrem em uma taxa de 7 a 8% por ano. A incidência do primeiro episódio de hemorragia varicosa em pacientes com pequenas varizes é de cerca de 5% por ano, enquanto o sangramento de varizes médias e grandes ocorre em uma taxa de aproximadamente 15% por ano. As grandes varizes, a doença hepática grave e a presença de vergões vermelhos nas varizes constituem preditores independentes de hemorragia varicosa. O sangramento de varizes gastresofágicas pode manifestar-se como hematêmese franca e/ou melena.
Ascite e hiponatremia
A ascite é a causa mais comum de descompensação na cirrose e ocorre em uma taxa de 7 a 10% por ano. Os sinais mais frequentes associados à ascite incluem aumento da circunferência abdominal, que frequentemente é descrito pelo paciente como cinto ou roupas que apertam ao redor da cintura, e ganho de peso recente. A ascite com volume de líquido pequeno ou moderado pode ser identificada ao exame físico, por flancos protuberantes, macicez nos flancos e macicez de decúbito.
A hiponatremia, que é definida como concentração sérica de sódio inferior a 130 mEq/ℓ, é encontrada em cerca de 25% dos pacientes com cirrose e ascite. Entretanto, os pacientes com cirrose não apresentam, tipicamente, manifestações neurológicas significativas ou hiponatremia, presumivelmente em razão de seu desenvolvimento gradual típico. Entretanto, a hiponatremia é um marcador de gravidade da cirrose e está associada a qualidade de vida mais precária e desenvolvimento de encefalopatia hepática.
A síndrome hepatorrenal é um tipo de lesão pré-renal, que ocorre em pacientes com cirrose e ascite. Representa o extremo do espectro de anormalidades que levam a ascite cirrótica e resulta da vasodilatação periférica máxima, bem como da ativação máxima de hormônios que causam retenção de sódio e de água e intensa vasoconstrição das artérias renais. A síndrome hepatorrenal é dividida em dois tipos, com base nas características clínicas e no prognóstico. A síndrome hepatorrenal do tipo 1 é uma lesão renal aguda rapidamente progressiva, em que ocorre elevação da concentração sérica de creatinina no decorrer de um período de 2 semanas. A síndrome hepatorrenal do tipo 2 é mais lentamente progressiva e está associada à ascite, que é refratária aos diuréticos. Em geral, os pacientes com síndrome hepatorrenal apresentam ascite tensa que responde pouco aos diuréticos, porém não têm um sinal ou sintoma específico que caracterize essa entidade.
Peritonite bacteriana espontânea
Cerca de um terço dos pacientes com cirrose são hospitalizados em decorrência de infecção bacteriana ou contraem uma infecção bacteriana durante a hospitalização, sendo a infecção mais comum a peritonite bacteriana espontânea. Os dois preditores mais comuns do desenvolvimento de infecção bacteriana são a gravidade da doença hepática e a internação em razão de hemorragia digestiva. As manifestações clínicas mais frequentes da peritonite bacteriana espontânea consistem em febre, icterícia e dor abdominal. Ao exame físico, há tipicamente dor à palpação do abdome, com ou sem descompressão dolorosa, ou íleo paralítico (ou ambos). Entretanto, até um terço dos pacientes com peritonite bacteriana espontânea não apresenta, inicialmente, sintomas abdominais nem sintomas de infecção, e podem ter encefalopatia, lesão renal aguda ou evidências de choque.
Encefalopatia hepática
A encefalopatia hepática, que é a manifestação neuropsiquiátrica da cirrose, ocorre em uma taxa de aproximadamente 2 a 3% por ano. A encefalopatia hepática associada à cirrose é de início gradual e raramente fatal. Manifesta-se como um amplo espectro de anormalidades neurológicas e psiquiátricas, incluindo desde alterações subclínicas até coma. Do ponto de vista clínico, caracteriza-se por alterações do nível de consciência e do comportamento, incluindo desde inversão do padrão de sono-vigília e esquecimento (grau 1); confusão, comportamento bizarro e desorientação (grau 2); letargia e desorientação profunda (grau 3) até coma (grau 4). Ao exame físico, os estágios iniciais podem demonstrar apenas tremor distal, porém a característica essencial da encefalopatia hepática franca consiste em asterixe. Além disso, os pacientes com encefalopatia hepática podem apresentar hálito de odor adocicado, uma característica denominada hálito hepático.
Complicações pulmonares
A síndrome hepatopulmonar está associada à dispneia aos esforços, que pode levar à debilitação extrema. Ao exame físico, pode-se observar baqueteamento dos dedos das mãos, cianose e aranhas vasculares. A síndrome hepatopulmonar é observada em aproximadamente 5 a 10% dos pacientes que aguardam um transplante de fígado.
A hipertensão portopulmonar manifesta-se como dispneia aos esforços, síncope e dor torácica. Ao exame, uma segunda bulha cardíaca (B2) hiperfonética e hipertrofia ventricular direita são proeminentes
As manifestações clínicas da cirrose são variáveis, a de pender da causa subjacente da doença crônica parenquimatosa de fígado e da descompensação da doença com cirrose compensada podem apresentar quadro assintomático ou oligossintomático, sendo frequentes sintomas inespecíficos, tais como fadiga, astenia e perda de peso. Na cirrose descompensada, o quadro clínico é dominado por complicações da insuficiência hepática e/ou da hipertensão portal, tais como aumento de volume abdominal, secundário à ascite ou peritonite bacteriana espontânea; hematêmese, melena ou enterorragia em decorrência da hemorragia por varizes gastroesofágicas ou por gastropatia hipertensiva; EH; infecções do líquido ascítico, urinária e respiratória; dispneia e ortopneia secundárias à ascitevolumosa; presença de hidrotórax ou síndrome hepatopulmonar e oligúria associada ou não a sinais de uremia por causa da síndrome hepatorrenal.
O histórico clínico deve incluir questionamento acerca da ocorrência de sintomas de descompensação da doença, tais como icterícia e colúria; febre; aumento de volume abdominal e edema de membros inferiores; dispneia, ortopneia e platipneia; enterorragia, melena, hematêmese e alterações do nível de consciência associadas à EH. Visando a rastrear a etiologia da cirrose, deve-se atentar para antecedentes de consumo abusivo de álcool; uso crônico de medicações; antecedentes familiares de cirrose, doenças autoimunes e consanguinidade. Deve ser aventada a possibilidade de exposição parenteral a vírus hepatotrópicos (vírus B e C), o que inclui transfusão de sangue, hemoderivados e transplante de órgãos anterior a 1992; hemodiálise; uso de drogas intravenosas com compartilhamento de seringas e agulhas; emprego de cocaína inalatória; tatuagem e piercing. Também devem ser questionados no histórico clínico fatores de risco para transmissão sexual e vertical do vírus da hepatite B, incluindo vida sexual promíscua e passado de doenças sexualmente transmissíveis.
O exame físico pode demonstrar presença de estigmas periféricos de cirrose, como ginecomastia, eritema palmar e aranhas vasculares (ou telangiectasias), particularmente em áreas expostas ao sol. Podem ainda ser observadas alterações, como perda de massa muscular; sinais de coagulopatia, como equimoses e petéquias; redução volumétrica do fígado à hepatimetria e/ou palpação e sinais de hipertensão portal (esplenomegalia e circulação colateral periumbilical). Dados de histórico e exame físico auxiliam no diagnóstico etiológico da cirrose e no rastreameno de complicações da doença. Certas manifestações clínicas são especificamente associadas a determinadas causas de cirrose. Prurido, xantomas e xantelasmas são mais frequentemente observados nas doenças colestáticas do fígado.
Sinais de feminilização, como ginecomastia e atrofia testicular, além de contratura palmar de Dupuytren, são tipicamente associados à cirrose alcoólica. Ocasionalmente, manifestações extra-hepáticas de cirrose podem ser proeminentes em casos de infecção pelos vírus das hepatites B e C, hepatite autoimune, cirrose biliar primária, colangite esclerosante primária, hemocromatose, doença de Wilson e deficiência de alfa-1-antitripsina. A cirrose pode acometer outros órgãos, produzindo as síndromes hepatorrenal, hepatopulmonar e portopulmonar, osteoporose, insuficiência adrenal e cardiomiopatia cirrótica. É importante ressaltar que as complicações da cirrose podem ocorrer simultânea ou consecutivamente. Cerca de 30 a 50% dos pacientes internados com cirrose, complicada por hemorragia digestiva, desenvolvem infecções, particularmente peritonite bacteriana espontânea.
EH é outra complicação ocasionalmente observada após episódio hemorrágico, pela maior absorção de substâncias nitrogenadas, secundária à presença de sangue no tubo digestivo, e pela ocorrência frequente de infecções nesses pacientes. Síndrome hepatorrenal pode também ser desencadeada por hemorragia digestiva com instabilidade hemodinâmica e frequentemente por infecções, particularmente, peritonite bacteriana espontânea, em decorrência da piora da vasodilatação esplâncnica observada na presença de infecção intraperitoneal com consequente produção de citocinas pró-inflamatórias.
Alguns tipos de descompensação de cirrose, principalmente infecções que evoluem para sepse podem desencadear disfunção de múltiplos órgãos e sistemas (DMOS) no paciente hepatopata crítico. Para melhor caracterizar esses pacientes, foi recentemente proposto o termo IHCA para descrever uma síndrome complexa habitualmente manejada em unidade de terapia intensiva, com prognóstico reservado, proporcional ao número e gravidade das disfunções orgânicas.
5. Explique as alterações laboratoriais e físicas do Sr. Valter (bilirrubina, ginecomastia, etc..).
Primeiro Momento:
Enzimas hepáticas aumentadas:
Sem alteração das bilirrubinas:
Segundo Momento:
Vômito, com eliminação de grande quantidade de sangue vermelho vivo:
Tremor matinal:
Irritabilidade/sonolência:
Diminuição da memória recente:
Telangectasias na face superior do tórax:
Ginecomastia:
Eritema palmar:
Circulação colateral do tipo porto-cava:
Distensão, com macicez móvel:
Sinal do piparote presentes:
Anemia:
Tempo de protrombina:
AST, ALT:
Amilase:
Bilirrubinas:
Hematêmese:
PA de 80x40mmHg:
Pulso de 120bpm:
Varizes esofagianas calibrosas:
6. Quais os exames para o diagnóstico da cirrose?
Deve-se considerar o diagnóstico de cirrose em qualquer paciente com doença hepática crônica. Em pacientes assintomáticos com cirrose compensada, pode não haver sinais típicos de cirrose, e o exame físico e exames laboratoriais podem ser totalmente normais. Com frequência, o diagnóstico pode exigir confirmação histológica por biopsia hepática, que constitui o padrão de referência para o diagnóstico de cirrose. Entretanto, a biopsia de fígado é um procedimento invasivo, sujeito a erros de amostragem, e a cirrose frequentemente pode ser confirmada de maneira não invasiva por uma associação de biomarcadores séricos, técnicas de imagem e mensuração da rigidez hepática.
Exame físico
Ao exame físico, os estigmas da cirrose consistem em atrofia muscular, acometendo principalmente as regiões dos músculos temporais e as eminências tenar e hipotenar; angiomas aracneiformes, principalmente no tronco, na face e nos membros superiores; e eritema palmar envolvendo as eminências tenar e hipotenar e as pontas dos dedos das mãos.
Embora a atrofia muscular seja um marcador de insuficiência hepática, aranhas vasculares e eritema palmar são marcadores de vasodilatação e circulação hiperdinâmica.
Os homens podem apresentar queda dos pelos no tórax e no abdome, ginecomastia e atrofia testicular. Petéquias e equimoses podem ser consequência de trombocitopenia ou de prolongamento do tempo de protrombina. A contratura de Dupuytren, que é um espessamento da fáscia palmar, ocorre principalmente na cirrose alcoólica. Uma característica patognomônica da cirrose hepática é o achado, ao exame do abdome, de um lobo hepático direito pequeno, com menos de 7 cm na percussão, e um lobo esquerdo palpável, que é nodular com consistência aumentada. A esplenomegalia também pode ocorrer e é indicativa de hipertensão portal. A circulação colateral na parede abdominal (cabeça de Medusa) também pode se desenvolver em consequência da hipertensão portal. A ausência de qualquer um desses achados físicos não descarta a possibilidade de cirrose.
Exames laboratoriais
Os resultados dos exames laboratoriais sugestivos de cirrose incluem até mesmo anormalidades sutis nos níveis séricos de albumina ou bilirrubina ou elevação da RNI. O achado laboratorial mais sensível e específico sugestivo de cirrose no contexto da doença hepática crônica é uma baixa contagem de plaquetas (< 150.000/mℓ), que ocorre em consequência da hipertensão portal e hiperesplenismo. Outros marcadores séricos que frequentemente estão anormais incluem níveis de AST, gamaglutamil transpeptidase (γGT), ácido hialurônico, alfa2-macroglobulina, haptoglobina, inibidor da metaloproteinase tecidual 1 e apolipoproteína A. Combinações desses testes têm sido usadas para prever a presença de cirrose, porém não são tão acuradas quanto os exames de imagem.
Exames de imagem
Os exames de imagem confirmatórios incluem TC, US e RM. Os achados compatíveis com cirrose consistem em contorno nodular do fígado, fígado pequeno com ou sem hipertrofia do lobo esquerdo ou caudado, esplenomegalia e, em particular, identificação de vasos colaterais intra-abdominais indicadores de hipertensão portal. Com o aumento da fibrose, o fígado torna-se rígido, e essa rigidez pode ser medida por US (elastografia transitória, imagem de impulso de força com radiação acústica) ou RM. A medição da rigidez hepática, que é uma nova técnica não invasiva, parece ser útil no diagnóstico de cirrose e na exclusão de sua existência. Esses exames estão se tornando mais amplamente disponíveis, e os achados típicos em qualquer um desses exames de imagem, juntamente com um quadro clínico compatível, são indicadores de cirrose. A biopsia do fígado não seria então necessária, a não ser que o grau de inflamação ou outras características exijam uma investigação.
Tomografia computadorizada em um paciente com cirrose compensada. O parênquima hepático é heterogêneo, há esplenomegalia e, mais importante, há colaterais portossistêmicos.
Na cirrose descompensada, a detecção de ascite, sangramento varicoso ou encefalopatia na vigência de doença hepática crônica estabelece essencialmente o diagnóstico de cirrose, de modo que não há necessidade de biopsia hepática para estabelecer o diagnóstico. Os pacientes com cirrose descompensada frequentemente exibem desnutrição, perda da massa muscular mais grave, numerosas aranhas vasculares, hipotensão e taquicardia em consequência do estado circulatório hiperdinâmico.
Complicações da cirrose
Varizes e hemorragia varicosa
A endoscopia digestiva alta continua sendo o principal método para o diagnóstico de varizes e hemorragia varicosa. As varizes são classificadas como pequenas (veias retas e minimamente elevadas acima da superfície mucosa do esôfago), médias (veias tortuosas que ocupam menos de um terço do lúmen esofágico) ou grandes (que ocupam mais de um terço do lúmen esofágico). O diagnóstico de hemorragia varicosa é estabelecido quando a esofagogastroduodenoscopia (EGD) revela um dos seguintes achados: sangramento ativo de uma variz, um “mamilo branco” sobrejacente a uma variz, coágulos sobrejacentes a uma variz ou varizes sem outra fonte potencial de sangramento.
Ascite
A causa mais comum de ascite é a cirrose, que representa 80% dos casos. A doença maligna peritoneal (p. ex., metástases peritoneais de tumores gastrintestinais ou câncer de ovário), a insuficiência cardíaca e a tuberculose peritoneal respondem por outros 15% dos casos. O método inicial, mais custo-efetivo e menos invasivo para confirmar a ascite é a US abdominal.
A paracentese diagnóstica é um procedimento seguro, que deve ser realizado em todo paciente com ascite de início recente, mesmo naqueles com coagulopatia. Deve-se utilizar a US como guia em pacientes nos quais a percussão não consegue localizar a ascite ou naqueles em que a primeira tentativa de paracentese não forneceu líquido. O líquido em um paciente com ascite de início recente deve ser sempre avaliado com determinação da albumina (com dosagem simultânea da albumina sérica), proteína total e contagem de leucócitos polimorfonucleares (PMN), e devem-se efetuar culturas bacteriológicas e exame citológico. A contagem de leucócitos PMN e a cultura bacteriológica são úteis para excluir a possibilidade de infecção (peritonite bacteriana espontânea ou secundária), e a avaliação citológica é necessária se houver suspeita de carcinomatose peritoneal. Dependendo do quadro clínico, outras determinações podem ser obtidas no líquido: níveis de glicose e de lactato desidrogenase (se houver suspeita de peritonite bacteriana secundária), esfregaço e cultura para bacilos álcool-acidorresistentes (BAAR) (se houver suspeita de tuberculose peritoneal) e nível de amilase (se houver suspeita de ascite pancreática).
O gradiente de albumina sérico-ascítica e os níveis de proteína do líquido ascítico são úteis no diagnóstico diferencial da ascite. O gradiente de albumina sérico-ascítica correlaciona-se com a pressão sinusoidal e, conseguinte, estará elevado (> 1,1 g/dℓ) em pacientes cuja origem da ascite é o sinusoide hepático (p. ex., cirrose e ascite cardíaca). Os níveis de proteína no líquido ascítico constituem um marcador indireto da integridade dos sinusoides hepáticos: os sinusoides normais são estruturas permeáveis, que possibilitam o “extravasamento” de proteínas, enquanto os sinusoides na cirrose estão “capilarizados” e não perdem tanta proteína. As três causas principais de ascite – cirrose, doença maligna ou tuberculose peritoneais e insuficiência cardíaca – podem ser facilmente diferenciadas pela combinação dos resultados do gradiente de albumina sérico-ascítica e conteúdo de proteína total do líquido ascítico. Tipicamente, a ascite cirrótica apresenta um alto gradiente de albumina sérico-ascítica e baixo nível de proteína; a ascite cardíaca tem um elevado gradiente de albumina sérico-ascítica e alto conteúdo de proteína; e a ascite secundária à doença maligna peritoneal apresenta, tipicamente, baixo gradiente de albumina sérico-ascítica e alto conteúdo de proteína. Um nível sérico elevado de peptídio natriurético tipo B apresenta alta acurácia diagnóstica para o diagnóstico de ascite em consequência de insuficiência cardíaca.
Síndrome hepatorrenal
A síndrome hepatorrenal (SHR) é um diagnóstico de exclusão; entretanto, os pacientes apresentam, tipicamente, ascite que não responde aos diuréticos e, com frequência, hiponatremia. O diagnóstico diferencial inclui condições que agravam a vasodilatação, como sepse, uso de vasodilatadores e paracentese de grande volume não acompanhada de infusão de albumina; condições que diminuem o volume de sangue arterial efetivo, como hemorragia digestiva, diurese excessiva ou diarreia (frequentemente induzida por superdosagem de lactulose); condições que induzem vasoconstrição renal, como AINEs, e lesões nefrotóxicas, como as causadas por aminoglicosídios. Em consequência, o diagnóstico de SHR só pode ser estabelecido após a interrupção de diuréticos, exclusão ou tratamento de qualquer condição que leve ao agravamento do estado hemodinâmico do paciente cirrótico e expansão do volume intravascular com albumina.
Peritonite bacteriana espontânea
Um alto índice de suspeita e o estabelecimento precoce do diagnóstico são fundamentais no tratamento da PBE. Deve-se efetuar uma paracentese diagnóstica em todo paciente com sintomas ou sinais de PBE, incluindo encefalopatia inexplicável e disfunção renal. Como a PBE é, com frequência, assintomática e frequentemente adquirida na comunidade, deve-se efetuar uma paracentese diagnóstica quando qualquer paciente cirrótico for hospitalizado, independentemente da causa da internação.
O diagnóstico de PBE é estabelecido por uma contagem de PMN no líquido ascítico superior a 250/μℓ. Bactérias são isoladas no líquido ascítico em apenas 40 a 50% dos casos, mesmo com métodos sensíveis, como inoculação diretamente em frasco de hemocultura. A PBE é, na maioria dos casos, uma infecção monobacteriana, habitualmente por microrganismos gram-negativos entéricos. Entretanto, o uso disseminado de profilaxia antibiótica na cirrose resultou em aumento da prevalência de infecção por microrganismos multifármaco-resistentes (MFR). Os anaeróbios e os fungos muito raramente causam PBE; o achado desses microrganismos, bem como uma infecção polimicrobiana, deve levantar suspeita de peritonite bacteriana secundária.
Encefalopatia hepática
O diagnóstico de encefalopatia hepática franca é principalmente clínico e baseia-se na anamnese e no exame físico, mostrando alterações da consciência e do comportamento, bem como asterixe. Os níveis de amônia não são confiáveis, e existe pouca correlação entre o grau de encefalopatia hepática e os níveis sanguíneos de amônia. Entretanto, níveis elevados (> 150 μmol/ℓ) são indicadores de encefalopatia hepática e podem ser úteis na avaliação de um paciente com distúrbios neurocognitivos de origem desconhecida. Testes psicométricos e eletroencefalograma (EEG), que tipicamente mostra ondas lentas generalizadas e ondas trifásicas, são usados, em geral, na pesquisa, mas geralmente não são realizados para diagnóstico clínico. A encefalopatia hepática mínima ou subclínica, que é encontrada em 80% dos pacientes com cirrose, é diagnosticada exclusivamente com base nos resultados anormais dos testes psicométricos e neuropsicológicos de atenção (p. ex., teste de conexão de números, teste de símbolos de dígitos) e função psicomotora (p. ex., tabuleiro com furos e pinos [grooved pegboard]). O rastreamento de pacientes com cirrose para encefalopatia hepática mínima não é amplamente recomendado, visto que os exames diagnósticos não estão padronizados, e os benefícios do tratamento são incertos.
Síndrome hepatopulmonar e hipertensão portopulmonar
Os critérios de diagnóstico para a síndrome hepatopulmonar consistem em hipoxemia com PaO2 inferior a 80 mmHg ou um gradiente alveoloarterial de oxigênio acima de 15 mmHg, juntamente com evidências de derivação vascular pulmonar no ecocardiograma com contraste, ou cintilografia com albumina macroagregada marcada com 99mTc, demonstrando o desvio anormal de radioatividade para o encéfalo. A hipertensão portopulmonar é diagnosticada pelo achado de pressão arterial pulmonar média superior a 25 mmHg no cateterismo cardíaco direito, contanto que a pressão capilar pulmonar seja inferior a 15 mmHg.
A Encefalopatia Hepática no cirrótico é classificada em:
1. Episódica: definida como delírio agudo ou distúrbio de consciência, acompanhado por alterações cognitivas em pacientes previamente hígidos do ponto de vista neuropsiquiátrico. A EH episódica é subclassificada em:
a. Precipitada, quando associada aos fatores desencadeantes (como sangramento gastrintestinal, infecções, medicamentos, distúrbios hidroeletrolíticos, disfunção renal, hipoxemia e transgressão dietética).
b. Espontânea, na ausência dos fatores citados.
c. Recorrente, quando os episódios de EH (precipitada ou espontânea) repetem-se com frequência superior a pelo menos dois episódios por ano.
2. Persistente: definida pela presença contínua e ininterrupta de sinais e sintomas neuropsiquiátricos, geralmente alterações extrapiramidais, disartria, distúrbios de personalidade, de memória e do ciclo de sono e vigília, sendo graduada em:
a. Leve.
b. Acentuada.
c. Dependente de tratamento, ou seja, compensada apenas com o uso contínuo de medicações e dieta.
3. Mínima: caracterizada por um estágio pré-clínico de EH, em que pacientes com cirrose demonstram déficit em testes neuropsicológicos ou neurofisiológicos, sem alteração do estado mental nem anormalidades neurológicas evidentes.
Recentemente, foi proposto o sistema SONIC para classificar a EH em ausente, encoberta ou manifesta, onde a encefalopatia encoberta passou a englobar a EH mínima e grau I de West Haven.
Hemorragia digestiva por hipertensão portal pode ser decorrente de sangramento por varizes esofágicas e ectópicas, gastropatia e colopatia da hipertensão portal. O sangramento varicoso manifesta-se por hemorragia, clinicamente expressa por hematêmese, melena ou enterorragia e frequentemente associada à instabilidade hemodinâmica. A hemorragia digestiva varicosa apresenta mortalidade de cerca de 10%-20% e continuamente precipita outras complicações de DCPF, como EH, infecções, disfunção renal e síndrome hepatorrenal.
Visando à instituição de medidas profiláticas, é recomendado que todo paciente com DCPF submeta-se à endoscopia digestiva alta para avaliação da presença de varizes de esôfago. Caso sejam identificadas varizes de médio e grosso calibre, é indicada profilaxia primária para redução de risco de sangramento.
Recomenda-se repetição da endoscopia digestiva a cada 2 anos para pacientes classificados como Child-Pugh A e que não apresentam varizes gastroesofágicas, e anualmente para pacientes classificados como Child-Pugh B ou C sem varizes ou com varizes de fino calibre, independentemente da classificação Child-Pugh. O carcinoma hepatocelular (CHC) ocorre numa frequência de 3 a 5% ao ano em pacientes com DCPF, particularmente secundário a hepatites B e C, álcool, esteatohepatite não alcoólica e hemocromatose. Em fases avançadas, pode-se manifestar por icterícia progressiva, emagrecimento, dor em hipocôndrio direito e ascite hemorrágica por trombose tumoral de veia porta. O diagnóstico precoce de CHC é importante para indicação de transplante de fígado, principal terapia de caráter curativo para o CHC relacionado à cirrose. O rastreamento de CHC com ultrassonografia abdominal associado ou não à dosagem de alfafetoproteína a cada seis meses é recomendado para pacientes com DCPF em fase cirrótica. Na presença de nódulos e/ou elevação de alfafetoproteína, o diagnóstico pode ser comprovado por tomografia computadorizada ou ressonância magnética.
A síndrome hepatopulmonar ocorre em aproximadamente 11 a 32% dos pacientes com DCPF, a qual tem sido recentemente associada à gravidade da doença hepática e à redução de sobrevida em portadores de DCPF em lista de transplante hepático.
É definida como uma tríade clínica caracterizada por:
1. Doença hepática.
2. Elevação do gradiente alveoloarterial de oxigênio com ou sem hipoxemia.
3. Dilatações vasculares intrapulmonares, detecta-das usualmente pelo ecocardiograma contrastado com microbolhas.
Suas principais manifestações são dispneia e platipneia, associada à ortodeoxia e à fadiga, além dos achados clínicos de cianose, hipocratismo digital e aranhas vascu-lares. No entanto, a maioria dos pacientes acometidos não apresenta sintomas e apenas 5 a 13% deles têm hipoxe-mia clinicamente evidente. A hipertensão portopulmonar é observada em 5% dos pacientes cirróticos, sendo caracterizada hemodinamicamente pelo achado de pressão média de artéria pulmonar superior a 25 mmHg, com pressão capilar pulmonar usualmente inferior a 15 mmHg. Manifesta-se habitualmente por quadro clínico compatível com cor pulmonale e é geralmente rastreada pelo ecocardiograma bidimensional. A hipertensão portopulmonar aumenta a taxa de morbidade e mortalidade em casos de transplante de fígado e pode ser um empecilho para a realização do procedimento a depender dos níveis de pressão da artéria pulmonar e de resistência vascular pulmonar.
7. Quais os principais diagnósticos diferenciais da cirrose.
8. Qual o tratamento da cirrose? (medicamentoso e não medicamentoso).
O tratamento da cirrose deve ter por objetivo ideal a interrupção ou reversão da fibrose. Embora os fármacos antifibróticos não tenham demonstrado reverter consistentemente a fibrose ou melhorar os desfechos em pacientes com cirrose, a erradicação do vírus da hepatite C ou da hepatite B tem sido associada a uma regressão da fibrose. Atualmente, o tratamento da cirrose compensada é direcionado para a prevenção do desenvolvimento de descompensação por meio de
(1) tratamento da doença hepática subjacente (p. ex., terapia antiviral da hepatite C ou B), de modo a reduzir a fibrose e evitar a descompensação;
(2) evitar fatores passíveis de agravar a doença hepática, como álcool, fármacos hepatotóxicos e infecções virais sobrepostas; e
(3) redução da pressão porta por meio do uso de bloqueadores beta-adrenérgicos não seletivos (p. ex., carvedilol, propranolol) que comprovadamente evitam hemorragia varicosa e descompensação em pacientes com cirrose hepática compensada e
(4) rastreamento de carcinoma hepatocelular (de modo pode ser tratado em um estágio mais inicial).
O tratamento da cirrose descompensada concentra‑se em eventos descompensatórios específicos e na opção de transplante de fígado. Cada vez mais, os dados disponíveis revelam que diferentes terapias para a mesma complicação podem ser aplicadas a pacientes com diferentes perfis de risco, baseando-se, em grande parte, na gravidade da doença.
Varizes e sangramento varicoso
A redução da pressão portal diminui o risco de desenvolvimento de varizes e hemorragia varicosa, bem como o risco de ascite e morte. Os bloqueadores beta-adrenérgicos não seletivos (propranolol, nadolol) reduzem a pressão portal por meio de vasoconstrição esplâncnica e diminuição do fluxo venoso porta. Em pacientes com cirrose e varizes médias ou grandes que nunca sangraram, os agentes betabloqueadores não seletivos reduzem de modo substancial o risco de primeira hemorragia varicosa. As opções de tratamento têm incluído o propranolol (iniciado em uma dose de 20 mg VO, 2 vezes/dia) e o nadolol (iniciado em uma dose de 20 mg VO, todos os dias), com titulação da dose para promover uma frequência cardíaca em repouso de cerca de 50 a 55 bpm, contanto que a pressão arterial sistólica (PAS) não caia abaixo de 90 mmHg. Os bloqueadores beta-adrenérgicos também podem diminuir o risco de desenvolvimento de ascite. A ligadura endoscópica de varizes, um tratamento que visa obliterar varizes por meio da colocação de anéis de borracha nas colunas de varizes, é pelo menos tão útil quanto os betabloqueadores não seletivos tradicionais para prevenir a primeira hemorragia varicosa. A ligadura não tem efeito sobre a pressão porta e pode levar à hemorragia em consequência de úlceras induzidas pela própria ligadura. O carvedilol (um betabloqueador não seletivo com propriedades vasodilatadoras, em uma dose de 12,5 mg/dia) demonstrou ser superior à ligadura e reduzir a pressão porta em pacientes que não respondem ao propranolol; entretanto, seu uso em pacientes com ascite pode não ser aconselhável em razão de seu efeito vasodilatador. Uma conduta racional consiste em iniciar o tratamento com propranolol ou nadolol e utilizar a ligadura em pacientes que não consigam tolerar os betabloqueadores ou que tenham contraindicações para o seu uso.A4b No paciente compensado, o carvedilol pode ser utilizado naqueles que não conseguem tolerar o propranolol ou o nadolol.
A endoscopia para rastreamento deve ser repetida a cada 2 a 3 anos em pacientes sem varizes, a cada 1 a 2 anos em pacientes com pequenas varizes e mais cedo em pacientes com doença descompensada, de modo que o tratamento efetivo possa ser instituído antes que as varizes aumentem de tamanho e sangrem.
Os pacientes com cirrose e hemorragia varicosa necessitam de reanimação em uma unidade de terapia intensiva. Entretanto, deve-se evitar transfusão excessiva, visto que isso pode precipitar sangramento recorrente. Os níveis de hemoglobina devem ser mantidos em cerca de 8 g/dℓ. Os antibióticos profiláticos devem ser utilizados nesse contexto, não apenas para prevenir infecções bacterianas, mas também para diminuir o sangramento recorrente e a morte. O antibiótico recomendado é o norfloxacino oral, em uma dose de 400 mg 2 vezes/dia, durante 5 a 7 dias, embora a ceftriaxona intravenosa, em uma dose de 1 g/dia durante 5 a 7 dias, seja preferível no caso de doença hepática avançada (desnutrição, ascite, encefalopatia e icterícia) ou naqueles que já estiverem recebendo profilaxia com norfloxacino.
O tratamento específico mais efetivo para o controle da hemorragia varicosa ativa consiste na combinação de um vasoconstritor com terapia endoscópica. Os vasoconstritores seguros incluem a terlipressina, a somatostatina e os análogos da somatostatina, octreotida e vapreotida; esses fármacos podem ser iniciados no momento da internação e continuados durante 2 a 5 dias. Nos EUA, o vasoconstritor atualmente disponível é a octreotida, que é utilizada na forma de bolus intravenoso de 50 μg, seguido de infusão de 50 μg/h. A ligadura de varizes esofágicas é a terapia endoscópica preferida para o controle da hemorragia varicosa.A5b Quando o sangramento persiste, apesar do uso de vasoconstritores e da ligadura, o uso de um stent esofágico parece ser mais efetivo como ponte para um tratamento mais definitivo e é mais seguro do que o tamponamento por balão, embora possa não reduzir a taxa de mortalidade.A6
A derivação intra-hepática portossistêmica transjugular (TIPS) é geralmente recomendada para pacientes que não respondem à terapia convencional (Figura 144.7). Em pacientes com alto risco de insucesso, pacientes com Child C (pontuação de 10 a 13) e pacientes com Child B que apresentam varizes com hemorragia ativa na endoscopia, a colocação profilática de TIPS (24 a 48 horas após a internação) está associada a redução na taxa de insucesso e a melhora significativa da sobrevida. Por conseguinte, a TIPS profilática “precoce” deve ser considerada em subpopulações de pacientes de alto risco com hemorragia varicosa.A6b,A6d8 Embora pacientes com cirrose e coagulopatia (prolongamento da RNI ou diminuição da contagem de plaquetas) corram maior risco de não responder à hemostasia para a hemorragia varicosa ou o sangramento em consequência de procedimentos (ligadura, paracentese, TIPS, cirurgia), nem o fator VII recombinante nem o eltrombopague demonstraram ser benéficos em ensaios clínicos randomizados, e nenhum é recomendado.
Após o controle da hemorragia, a recorrência da hemorragia em 1 ano sem tratamento é alta, alcançando cerca de 60%. Por conseguinte, deve-se instituir o tratamento para prevenção deve-se instituir o tratamento para prevenção de sangramento recorrente antes do paciente receber alta. O tratamento recomendado é uma combinação de betabloqueadores não seletivos (propranolol ou nadolol) e ligadura endoscópica de varizes.A7 A dose de betabloqueadores deve ser a dose máxima tolerada, e deve-se repetir a ligadura endoscópica de varizes a cada 2 a 4 semanas, até que as varizes sejam obliteradas. Os pacientes com TIPS, colocada durante o episódio de hemorragia varicosa aguda, não necessitam de betabloqueadores nem de ligadura, mas precisam de exame periódico com Doppler da derivação para avaliar a sua desobstrução.
O tratamento com derivação, seja cirúrgico ou por meio de colocação radiológica de TIPS, deve ser usado em pacientes com sangramento varicoso persistente ou recorrente, apesar do tratamento farmacológico e endoscópico combinado. Ambos os tipos de derivação são igualmente efetivos, e a escolha dependerá da experiência local. Embora ocorra oclusão frequente no TIPS sem revestimento, os stents mais recentes revestidos com politetrafluoroetileno estão associados a menores taxas de oclusão e menores taxas de encefalopatia hepática. Em um ensaio clínico randomizado, os stents revestidos foram mais efetivos do que os betabloqueadores na prevenção do sangramento varicoso recorrente em pacientes com cirrose; entretanto, produziram ligeiramente mais eventos adversos, sem aumentar o tempo de sobrevida ou a qualidade de vida.A8
Ascite
A restrição de sal e a administração de diuréticos constituem a base do tratamento da ascite. A ingestão dietética de sódio deve ser restrita a 2 g/dia. Não se recomenda uma dieta mais restritiva, que pode comprometer o estado nutricional do paciente.
A espironolactona, que é mais efetiva do que os diuréticos de alça, deve ser iniciada em uma dose de 100 mg/dia (1 vez/dia, pela manhã).8b A dose deve ser ajustada a cada 3 a 4 dias até alcançar uma dose efetiva máxima de 400 mg/dia. A furosemida, em dose escalonada de 40 a 160 mg/dia, pode ser iniciada concomitantemente com a espironolactona se a ascite for tensa ou acrescentada subsequentemente se a perda de peso for inadequada ou se houver desenvolvimento de hiperpotassemia com espironolactona isolada. A meta é uma perda de peso de 1 kg na primeira semana e 2 kg/semana, subsequentemente. Entretanto, o uso de diuréticos deve ser reduzido se a taxa de perda de peso for de mais de 0,5 kg/dia em pacientes sem edema periférico ou mais de 1 kg/dia em pacientes com edema periférico. Os efeitos colaterais do tratamento com diuréticos consistem em hiponatremia hipovolêmica, hiperpotassemia, disfunção renal, encefalopatia e, com a espironolactona, ginecomastia dolorosa. Na situação aguda, a infusão de albumina isoladamente não parece ser benéfica.A8b Todavia, a combinação de albumina humana (40 mg 2 vezes/semana durante 2 semanas, depois 40 g semanalmente) e espironolactona e furosemida consegue reduzir significativamente ascite recorrenteA8c e melhora a sobrevida em 18 meses.
Para os 10 a 20% dos pacientes com ascite que forem refratários aos diuréticos, uma conduta razoável consiste em paracentese de grande volume, destinada a remover todo ou quase todo o líquido, além de albumina, em uma dose intravenosa de 6 a 8 g por litro de ascite removido, sobretudo quando são removidos mais de 5 ℓ de uma só vez. A frequência da paracentese de grande volume é determinada pela velocidade com que a ascite se acumula novamente. O TIPS com stents não revestidos é mais efetivo do que a paracentese de grande volume com albumina na prevenção da ascite recorrente, porém está associado a uma taxa mais elevada de encefalopatia. Em pacientes que necessitam de paracentese de grande volume frequente (mais de duas vezes por mês), um TIPS com stent revestido com politetrafluoroetileno pode melhorar a sobrevida. A derivação peritônio-venosa, com uso de um tubo de silicone introduzido por via subcutânea, que transfere a ascite da cavidade peritoneal para a circulação sistêmica, pode ser utilizada em pacientes que não sejam candidatos ao TIPS ou ao transplante de fígado. Bombas de fluxo automático para mobilizar o líquido ascítico para a bexiga podem reduzir a necessidade de paracentese de grande volume e melhorar a qualidade de vida em pacientes com ascite clinicamente intratável.
Hiponatremia
Recomenda-se a restrição de líquido para 1,5 ℓ/dia em caso de hiponatremia grave (concentração sérica de sódio < 130 mEq/ℓ), porém a adesão a essa recomendação é precária. Embora os antagonistas dos receptores V2, como a tolvaptana, sejam algumas vezes efetivos para aumentar a excreção de água livre e elevar o nível sérico de sódio em pacientes cirróticos com hiponatremia, eles não têm efeito global na sobrevida e não estão aprovados pela FDA para esse uso, em virtude de sua hepatotoxicidade potencial. Como a hiponatremia é um marcador de disfunção neurológica e aumento da taxa de mortalidade, o uso da tolvaptana (15 mg/dia, com aumento para 30 a 60 mg/dia, se necessário) a curto prazo pode estar indicado apenas como “ponte” até o transplante de fígado em pacientes quando o transplante é iminente.
Síndrome hepatorrenal
A SHR é uma lesão renal funcional, que resulta de anormalidades hemodinâmicas em decorrência de doença hepática em estágio terminal e hipertensão portal grave. A síndrome hepatorrenal está associada a alta mortalidade, apesar do tratamento específico. Em consequência, SHR documentada, na ausência de azotemia pré-renal ou de necrose tubular aguda, representa uma prioridade para transplante. Os tratamentos específicos para a síndrome hepatorrenal que têm sido utilizados como medidas contemporizadoras (“ponte”) até o transplante incluem vasoconstritores (terlipressina, norepinefrina, octreotida mais midodrina) juntamente com albumina, TIPS e diálise extracorpórea de albumina, que é um método de diálise de hemofiltração experimental, que utiliza um dialisato de albumina.9 A maior experiência é com o uso de terlipressina que, em uma dose de 0,5 a 2,0 mg IV, a cada 4 a 6 horas, leva a maior taxa de reversão da síndrome hepatorrenal em comparação com placebo.A12 Todavia, terlipressina também pode causar eventos adversos, inclusive insuficiência respiratória, e tem de ser usada com cautela.A12b Outra opção é octreotida (100 a 200 mg SC, 3 vezes/dia) com midodrina (7,5 a 12,5 mg VO, 3 vezes/dia), com ajuste da dose para obter um aumento de pelo menos 15 mmHg na pressão arterial média. A melhora pode tornar-se clinicamente visível em 7 dias.
Peritonite bacteriana espontânea
A antibioticoterapia empírica com uma cefalosporina de terceira geração (p. ex., cefotaxima, 2 g IV, a cada 12 horas, ou ceftriaxona, 2 g IV, a cada 24 horas) deve ser iniciada tão logo se estabeleça o diagnóstico e antes da obtenção dos resultados de cultura; a duração mínima do tratamento deve ser de 5 dias. A resposta aos antibióticos empíricos recomendados é significativamente menor em pacientes com infecções associadas aos cuidados de saúde (i. e., infecções que ocorrem em pacientes que estiveram em uma unidade de saúde nos 3 meses anteriores) e particularmente baixa nas infecções hospitalares (i. e., infecções que ocorrem > 48 horas após a hospitalização), visto que mais infecções são causadas por microrganismos MFR.9b Nesse contexto, antibióticos de espectro mais amplo (p. ex., vancomicina-tazobactam, imipeném, ertapeném) devem ser administrados inicialmente e, em seguida, modificados após a obtenção dos resultados de cultura e do antibiograma. Os aminoglicosídios devem ser evitados, em virtude da alta incidência de nefrotoxicidade em pacientes com cirrose.
A paracentese diagnóstica deve ser repetida 2 dias após o início dos antibióticos, quando o número de neutrófilos PMN no líquido ascítico deve ter diminuído em mais de 25% em relação aos valores basais. A ausência de resposta deve levar a investigações complementares para excluir a possibilidade de peritonite secundária. A disfunção renal associada à peritonite bacteriana espontânea pode ser evitada pela administração intravenosa de albumina, sobretudo em pacientes que apresentam alguma evidência de disfunção renal (ureia sanguínea > 30 mg/dℓ e/ou creatinina > 1 mg/dℓ) ou concentração sérica de bilirrubina superior a 4 mg/dℓ por ocasião do diagnóstico. A albumina em uma dose de 1,5 g/kg de peso corporal no momento do diagnóstico, repetida no terceiro dia em uma dose intravenosa de 1 g/kg de peso corporal pode reduzir o risco de insuficiência renal e mortalidade aguda. Entretanto, essa dose é empírica, não deve ultrapassar 100 g por dose e não diminui a taxa de mortalidade em 3 meses de pacientes cirróticos com outras infecções além da peritonite bacteriana espontânea.
A administração de antibióticos não absorvíveis (ou pouco absorvíveis) pode evitar o desenvolvimento de peritonite bacteriana espontânea e outras infecções na cirrose ao eliminar seletivamente os microrganismos gram‑negativos do intestino. Entretanto, norfloxacino, que era usado para esse propósito, foi retirado do mercado norte-americano em 2014. Uma alternativa razoável é ciprofloxacino (500 mg/dia VO), embora não haja evidências diretas apoiando esse esquema. Profilaxia prolongada com antibióticos, pode ser justificada apenas em dois grupos: pacientes que se recuperaram de um episódio anterior de peritonite bacteriana espontânea e pacientes que apresentam um nível de proteína ascítica inferior a 1 g/ℓ com disfunção hepática e circulatória avançada, conforme evidenciado por icterícia, hiponatremia ou disfunção renal.
Encefalopatia hepática
O diagnóstico de encefalopatia hepática franca começa pela exclusão de outras causas de alteração do estado mental. Uma vez estabelecido o diagnóstico de encefalopatia hepática, o tratamento envolve a identificação e o tratamento do fator precipitante e a redução dos níveis de amônia.10 Os fatores precipitantes incluem infecções, diurese excessiva, hemorragia digestiva, elevada carga de proteína oral e constipação intestinal. Os narcóticos e os sedativos contribuem para a encefalopatia hepática via depressão direta da função cerebral. O TIPS é um precipitante comum da encefalopatia hepática, e pode ser necessária a redução ou oclusão do shunt (derivação). Entre os agentes cujo objetivo é diminuir a produção de amônia no intestino, a lactulose (15 a 30 mℓ VO, 2 vezes /dia, ajustada para obter duas ou três evacuações de fezes de consistência pastosa diariamente) constitui o tratamento de primeira escolha da encefalopatia franca episódica. Entretanto, a solução eletrolítica de polietilenoglicol 3350 (4 ℓ VO ou por tubo nasogástrico durante 4 horas) pode proporcionar uma resposta clínica mais rápida. Outros agentes incluem antibióticos não absorvíveis administrados por via oral, como a rifaximina (550 mg 2 vezes/dia), a neomicina (500 mg a 1 g, 3 vezes/dia) e o metronidazol (250 mg 2 a 4 vezes/dia). Os fármacos que podem aumentar a fixação da amônia no fígado, como a L-ornitina-L-aspartato, benzoato e fenilbutirato de glicerol, estão sendo estudados.
Após a resolução de um episódio de encefalopatia franca, recomenda-se a profilaxia secundária com lactulose. Se um fator precipitante tiver sido identificado e estiver bem controlado, ou quando a função hepática ou o estado nutricional tiverem melhorado, pode-se suspender a terapia profilática. Em pacientes com encefalopatia recorrente, a rifaximina juntamente com lactulose é útil na prevenção de recorrência futura. A mudança da proteína dietética de origem animal para a de origem vegetal pode ser benéfica na encefalopatia recorrente ou persistente; entretanto, a restrição proteica não é necessária e não deve ser usada de maneira crônica. Abordagens experimentais em camundongos podem levar à criação de microbiota intestinal por engenharia para reduzir a atividade da urease, porém não se sabe se essa abordagem pode ser estendida para os seres humanos.
Complicações pulmonares
A síndrome hepatopulmonar raramente apresenta resolução espontânea, e o tratamento farmacológico é decepcionante. Em geral, não se recomenda o TIPS. O único tratamento viável é o transplante de fígado.
Por outro lado, o transplante de fígado só está indicado para um subgrupo de pacientes com hipertensão portopulmonar. De fato, uma pressão arterial pulmonar média superior a 45 mmHg representa uma contraindicação absoluta para o transplante de fígado. Nesses pacientes, deve-se considerar o uso de vasodilatadores.
Tratamento cirúrgico
Transplante de fígado
O transplante de fígado ortotópico, que é o tratamento definitivo para a cirrose, está indicado quando o risco de morte por doença hepática é maior do que o risco de morte por transplante, conforme determinado por um escore de Child-Pugh de 7 ou mais ou por um escore Model for End-Stage Liver Disease (MELD) de 15 ou mais. O MELD e o MELD-Na, que estimam o risco de morte em 3 meses, são utilizados para determinar a prioridade para transplante de fígado. O número disponível de doadores cadavéricos de órgãos é menor do que o número de pacientes que aguardam por um transplante de fígado; em consequência, 15 a 20% dos pacientes que aguardam pelo transplante nos EUA morrem antes da disponibilidade de um órgão.
CHC: hepatocarcinoma; US: ultrassom; AFP: alfafetoproteína; RNI: cálculo feito ao se dividir o seu tempo de ativação de protrombina e o tempo normal da população. EGD: endoscopia digestiva alta; PBE: peritoite bacteriana espontânea.
O tratamento da cirrose será abordado de acordo com a descompensação da doença. A abordagem terapêutica da cirrose compensada inclui:
1. Orientação quanto ao estilo de vida, tratamento de comorbidades e suporte nutricional.
2. Tratamento da causa subjacente da doença.
3. Tratamento dos sintomas associados.
4. Prevenção de complicações e de descompensação da doença.
5. Suporte nutricional.
6. Avaliação para transplante de fígado.
Todos os pacientes com cirrose compensada e que apresentem sobrepeso e obesos devem ser orientados a perder peso. Pacientes com cirrose descompensada devem receber orientação nutricional para evitar perda de massa muscular. Deve-se restringir o uso de medicações hepatotóxicas, o consumo de álcool e cigarro. Abstinência alcoólica é obrigatória para pacientes com doença alcoólica de fígado. Fatores precipitantes de EH, incluindo obstipação intestinal e uso de benzodiazepínicos, devem ser evitados. Vacinação para hepatites A e B em pacientes não imunes deve ser considerada. Algumas causas de cirrose podem ter indicação de tratamento específico, mesmo quando a doença encontra-se em fase avançada, visando a diminuir sua progressão e o risco de descompensação clínica. As principais doenças do fígado na fase cirrótica que merecem consideração de tratamento são as hepatites pelos vírus B e C, hepatite autoimune, hemocromatose hereditária e doença de Wilson.
Entre os sintomas associados à causa subjacente da cirrose, o prurido é uma manifestação frequente e, em muitos casos, incapacitante, levando à acentuada redução da qualidade de vida. Colestiramina, ácido ursodeoxicólico e anti-histamínicos podem ser alternativas terapêuticas iniciais. Se houver refratariedade, pode-se considerar o uso de drogas como naltrexone, sertralina e rifampicina em casos selecionados. O edema de membros inferiores é uma manifestação comum, mesmo na ausência de ascite, e pode requerer restrição de sal e uso de diuréticos. Pacientes com varizes de esôfago podem requerer profilaxia primária com betabloqueadores não seletivos (BBNS) ou tratamento endoscópico com ligadura elástica de varizes de esôfago (LEVE) para evitar o primeiro episódio de ruptura.
Os portadores de cirrose com varizes de fino calibre com sinais vermelhos ou com doença hepática avançada Child-Pugh C tem risco elevado de sangramento e devem ser tratados com BBNS. Portadores de varizes de médio e grosso calibre, independentemente da presença de sinais vermelhos e da classificação de Child-Pugh, devem tam-bém ser submetidos à profilaxia primária com BBNS ou LEVE. Nesses pacientes, a escolha do tipo de intervenção deve ser baseada nos recursos e expertise locais, características e preferências do paciente e perfil de efeitos colaterais e contraindicações. O uso de betabloqueadores não seletivos (propranolol e nadolol) reduz o risco de sangramento em 45%. Devem ser empregados em doses crescentes gradativamente até a dose máxima tolerada ou até o desenvolvimento de frequência cardíaca abaixo de 50-55 bpm e pressão arterial sistólica abaixo de 85 mmHg, não excedendo doses de 320 mg por dia para propranolol e 240 mg por dia para nadolol. Na presença de contraindicações ou efei-tos colaterais ao uso de BBNS ou ascite refratária pode-se optar preferencialmente por LEVE.
Deve ser recomendada dieta hipossódica para pacientes com retenção hidrossalina, não sendo necessária para todo o paciente com DCPF. No entanto, o consumo abusivo de sal deve ser evitado. Desnutrição proteico-calórica é frequentemente observada em portadores de DCPF, a qual é agravada por medidas dietéticas inadequadas como dieta hipoproteica prolongada, empregada inadvertidamente para prevenção ou tratamento de EH. A desnutrição é um fator associado à pior sobrevida e deve ser tratada com suporte nutricional adequado para alcançar valor energético total de 30-40 kcal/dia, com aporte proteico diário de 0,8-1,3 g se não houver EH.
Embora controversa, a profilaxia primária de PBE com antimicrobianos, geralmente norfloxacino (dose de 400 mg/dia) ou trimetropin/sulfametoxazol (dose de 800 mg/160 mg, uma vez ao dia, 5 dias por semana), pode ser justificada no caso de pacientes com maior risco de desenvolver essa complicação infecciosa, incluindo cirróticos com ascite cujo teor de proteína total seja igual ou inferior a 1,5 g/dL e que apresentem:
1) doença avançada expressa por pontuação Child-Pugh igual ou superior a 9 e/ou níveis de bilirrubina sérica igual ou superior a 3 mg/dL ou;
2) creatinina igual ou superior a 1,2 mg/ml; ou 3) sódio igual ou inferior a 130 mEq/L.
São também considerados fatores de risco para PBE: classificação de Child-Pugh C, sangramento por varizes esofageanas, historia prévia de PBE, uso de inibidores de bomba de prótons e desnutricão. A abordagem terapêutica da cirrose descompensada está voltada para o tratamento específico das complicações da doença, sua profilaxia secundária e a avaliação da elegibilidade para o transplante de fígado.
O tratamento adequado de ascite, peritonite bacteriana espontânea, EH, hemorragia varicosa e síndrome hepatorrenal é crucial para redução da alta morbidade e mortalidade associada a esses eventos e para prevenção do surgimento consecutivo de complicações associadas a cada descompensação da cirrose. Algumas causas de cirrose merecem consideração de tratamento em centros especializados, mesmo na presença de descompensação, incluindo hepatite pelo vírus B, hepatite autoimune, hemocromatose e doença de Wilson.
Tratamento da ascite:
O tratamento inicial indicado é a dieta hipossódica com 2 g de NaCl/dia e o uso de diuréticos. O tratamento diurético é iniciado com doses escalonadas de antagonistas da aldosterona (geralmente espironolactona na dose de 100-400 mg/dia) associado ou não ao diurético de alça de Henle (geralmente furosemida na dose de 40-160 mg/ dia).
Os antagonistas da aldosterona atuam no hiperal-dosteronismo secundário que ocorre na cirrose, fator fundamental na retenção de sódio. Por outro lado, esses agentes levam à hiperpotassemia, que pode ser controlada com o uso dos diuréticos de alça. Doses maiores de diuréticos (até 400 mg de espironolactona e 120 mg de furosemida) podem ser empregadas, mas habitualmente associam-se à ocorrência de distúrbios hidroeletrolíticos, à disfunção renal e à EH. Recomenda-se monitorização rotineira dos eletrólitos e da função renal. Na ausência de edema de membros inferiores, deve-se almejar perda ponderal de até 500 g/dia com o trata-mento diurético.
Pacientes que apresentem ginecomastia com uso de espironolactona podem se beneficiar da substituição do agente por triantereno ou amilorida. Deve-se monitorizar a função renal e os eletrólitos para detecção precoce dos distúrbios hidroeletrolíticos e disfunção renal. Restrição hídrica não é recomendada, exceto se o sódio sérico for inferior a 125 mEq/L.
Pacientes com ascite tensa podem se beneficiar de paracentese terapêutica com infusão de albumina (8 g de albumina para cada litro retirado), particularmente em retiradas de volumes superiores a 5 litros, no intuito de evitar disfunção renal pós-paracentese. Pacientes com ascite refratária que não respondem às doses máximas de diuréticos (ascite resistente aos diuréticos) ou que apresentam frequentemente complicações associadas ao uso de diuréticos (ascite não tratável com diuréticos) podem se beneficiar de paracenteses esvaziadoras de grande volume e de repetição, com infusão de albumina por veia periférica.
Tratamento da síndrome hepatorrenal:
O diagnóstico de SHR, particularmente SHR tipo 1, é um reconhecido fator de prognóstico adverso, na ausência de tratamento específico. O uso de vasoconstritores esplâncnicos (terlipressina e noradrenalina), associado a altas doses de albumina, vem sendo relacionado à reversão de SHR tipo 1 em cerca de 40 a 50% dos casos, sem recidiva de disfunção renal após a interrupção do uso desses agentes. Embora existam ainda poucas evidências na literatura médica, seu uso vem sendo recomendado para o tratamento da SHR tipo I em pacientes em lista de transplante de fígado. O transplante de fígado deve ser considerado para todo paciente com cirrose descompensada, particularmente naqueles com pontuação igual ou maior a 7 pela classificação de Child-Pugh. Maior benefício com ganho de sobrevida é observado quando o transplante é realizado em pacientes cirróticos com pontuação MELD superior a 15. Os aspectos clínicos do procedimento são abordados em capítulo específico.
Prognóstico:
O estadiamento de Child-Pugh correlaciona-se com o prognóstico e as taxas de sobrevida de pacientes com cirrose. As classes A, B e C representam uma redução na função hepática de aproximadamente 30, 50 e 90%, respectivamente. A sobrevida em 5 anos situa-se em torno de 95, 75 e 55% para os estádios A, B e C, respectivamente. A classificação MELD tem melhor correlação prognóstica quando comparada com a Child-Pugh, sendo atualmente empregada para alocação e distribuição de órgãos para transplante de fígado no Brasil.
A presença e o tipo de descompensação de cirrose também influencia o prognóstico da doença. Na estratificação da cirrose em cinco estádios, na qual estádio 1 corresponde a cirrose compensada sem varizes de esôfago; estádio 2 a cirrose compensada com varizes de esôfago; estádio 3 a sangramento varicoso sem outras complicações; estádio 4 a qualquer outra descompensação com exceção de sangramento varicoso; e estádio 5 ocorrência de mais de uma descompensação, observou-se mortalidade em 5 anos nos estádios 1 a 5 de, respectivamente, 1,5, 10, 20, 30 e 88%39 Por outro lado, a ocorrência de IHCA se associa a um prognóstico ainda mais sombrio com sobrevida inferior a 50% em 90 dias nos estádios mais avançados da síndrome.
9. Quais os padrões de consumo do álcool? (Dose tóxica).
Não há dose segura de álcool, depende da pessoa.