Vítimas do cotidiano: vidas com origens arrancadas.

"O que acontece quando as pessoas são retiradas à força de suas vidas e inseridas num contexto social totalmente diferente daquele a que estão acostumadas? Como esse processo tem sido para os atingidos do desastre da Samarco?"

As atividades relacionadas à mineração, em muitas cidades no Brasil, são parte do cotidiano da população, gerando empregos e movimentando a economia. Mas será que essas atividades só trazem benefícios para as cidades e seus residentes? O conhecido rompimento da barragem de Fundão, em Mariana-MG, prova que não. Causando muitos danos ambientais e sociais, o desastre da Samarco transformou a paisagem e trouxe muita tristeza e dor para inúmeras comunidades ao longo da bacia do Rio Doce.

Motivada pela preocupação com as possíveis consequências sociais do desastre, uma mestranda da Universidade de Caxias do Sul, através de entrevistas com os atingidos, buscou compreender os contrastes entre antes e depois do rompimento e como tem sido o cotidiano da população considerada atingida. A pesquisa buscou entender quais são os principais problemas enfrentados por essas pessoas e como elas participam da tomada de decisões após o desastre.

Devemos considerar que estamos inseridos no sistema capitalista, e que a sua forma de produção é exploratória e prioriza o lucro, transformando bens naturais coletivos em mercadoria, em um simples produto com valor monetário. Assim, a natureza acaba sendo explorada por empresas privadas e de origem externa à realidade local, ou seja, sem qualquer comprometimento afetivo com a comunidade que vive no local a ser explorado. A atividade minerária tem um objetivo estritamente econômico e gera em seu funcionamento uma enorme quantidade de resíduos, além de uma multiplicidade de riscos e impactos. Isso se agrava conforme as técnicas se aperfeiçoam e exploram mais profundamente a natureza, com métodos de extração que podem gerar consequências irreversíveis. As paisagens passam por transformações, assim como os sistemas viários e as dinâmicas próprias do meio urbano do entorno, e a mineração passa a fazer parte de cada fração do território e da sociedade.

Após o rompimento da barragem de Fundão, com a interrupção da atividade minerária na região, ficou claro como os municípios dependem economicamente da mineração e como essa atividade já havia se imposto sobre as dinâmicas locais, se tornando parte da comunidade. A partir dos relatos, podemos reconhecer que praticamente todas as atividades de Mariana dependiam de certa forma da mineração, já que serviam de base para as necessidades da população que migrava para o município, atraída por essa atividade. Uma das assistentes sociais entrevistadas afirma, por exemplo, que o setor imobiliário havia crescido e que grande parte da comunidade local se sustentava a partir dos aluguéis pagos pelos trabalhadores da mineradora: “a gente não aprendeu a viver com outra coisa”, afirma.

Uma das ruas de Bento Rodrigues antes do rompimento, é bem ilustrativa do modo de vida próprio da roça que existia no distrito, onde o uso de animais e o bate-papo na porta de casa, por exemplo, eram costumes cotidianos. Fonte: captura de imagem do site google.com.br/maps em jul/2012

Os relatos dos atingidos que foram forçados a se deslocar de seus povoados nos auxiliam a delinear os direitos humanos que foram desrespeitados com esse desastre, direitos necessários ao cumprimento da dignidade e da cidadania de cada uma dessas pessoas. Ao destruir casas, praças e igrejas, o crime ambiental destrói o ambiente em que as identidades individuais e coletivas foram criadas, ou seja, rompe com todos os vínculos afetivos estabelecidos com o lugar. Percebe-se a perda imaterial de cada indivíduo e do grupo, algo que jamais poderá ser substituído por qualquer tipo de indenização. Os atingidos perdem também suas fontes de renda e de trabalho, algo que dificulta ainda mais a recuperação dessas pessoas frente ao desastre. Tudo isso, é claro, afeta muito mais intensamente os grupos vulneráveis. Vale lembrar que Bento Rodrigues, mesmo se localizando no município de Mariana, estava longe de seu centro urbano, o que acabava criando um distanciamento social entre as localidades.

A foto acima demonstra que a cidade de Mariana tem um porte muito maior se comparada aos distritos mais afastados. Os modos de vida são diferentes, as oportunidades de estudo e trabalho são mais diversas, e isso acaba criando um choque, com a convivência de indivíduos tão distintos.Fonte: https://www.turismoouropreto.com/blog/curiosidades-sobre-mariana.

Esses relatos convergem para uma narrativa comum. O momento anterior ao rompimento é descrito como tranquilo e sossegado, próprio da roça onde essas pessoas estavam acostumadas a viver, um ambiente em que todos se conheciam e se sentiam apoiados pelo laço afetivo que os unia, um sentimento de felicidade e segurança em atitudes simples, como plantar o próprio alimento, passar os fins de semana conversando na praça ou confiar nos vizinhos para cuidar das crianças. Outro cenário surge quando se fala do presente. A maioria dos entrevistados não se sente parte da cidade de Mariana, onde a maioria mora atualmente. Não se sentem confortáveis com sua nova vizinhança e sequer sabem onde todos os seus conhecidos estão morando, já que familiares, amigos e antigos vizinhos estão espalhados por toda a cidade.

Agora, essas pessoas são vítimas do cotidiano, considerando que, dia após dia, se veem num contexto social que não lhes pertence. Por isso, o processo de reassentamento dessas pessoas deve considerar suas vontades, numa tentativa de restabelecer os antigos laços existentes.

A partir da fala dos assistentes sociais, percebemos que a nova realidade dessas pessoas tem sido bastante dura. Quase todos apresentam sinais de doenças psicológicas e emocionais e têm como principal evento da semana, a visita ao psiquiatra. Outra questão preocupante é a discriminação que os deslocados têm sofrido na cidade de Mariana, já que seu estilo de vida é totalmente diferente do meio urbano e, por vezes, não possuem o mesmo nível de instrução, algo que afeta a todos (incluindo os casos de bullying com crianças e adolescentes). Uma das motivações para esse preconceito é o desemprego no município, que cresceu após a paralisação das atividades da mineradora e de empresas prestadoras de serviço.

O cenário atual não pode ser considerado otimista. Mesmo quando sabemos de todos os riscos e impactos causados pelo atual formato da atividade minerária, não percebemos uma diminuição no consumo dos materiais produzidos e extraídos por essa atividade. É fundamental que a “matéria-prima”, motora do mercado e geradora de produção e lucro, seja considerada primeiro como bem natural e coletivo, condição para a geração de vida, alimento, cultura e identidade e, por isso, cada passo da monetização da natureza deve depender da aprovação das comunidades locais e possivelmente afetadas. “O dano causado ao meio ambiente pode comprometer e minar todos os direitos humanos”.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:
PAAZ, C.; SOUZA, L. R. As consequências sociais do rompimento da barragem de Fundão em Mariana (Minas Gerais – Brasil): uma análise por meio de pesquisa de campo. Revista Catalana de Direito Ambiental. Vol. 9, n° 2, p. 1 – 50, 2018.