A lama da Samarco causa câncer?

E se, além de todos os danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, o rejeito liberado ainda possuísse um potencial cancerígeno? Para dar início a essa discussão, estudos foram feitos para testar a capacidade tóxica da lama no nível da reprodução celular.

A contaminação pela lama liberada no rompimento da barragem de Fundão na bacia do rio Doce foi alvo de estudo de um grupo de pesquisadores de diversas universidades, com o intuito de identificar materiais na lama que tivessem a capacidade de modificar a estrutura das células e seu processo de reprodução, que passa pela multiplicação de todo o seu material genético e a criação de uma nova estrutura celular, o que é chamado de citogenotoxicidade. Essa investigação tem grande relevância, pois isso é algo que pode resultar em processos cancerígenos, já que uma das formas de câncer é justamente o crescimento e multiplicação exagerada de uma célula que sofreu mutação.

Além da grande interrogação acerca dos reais danos provocados pelo crime ambiental da Samarco, a motivação da pesquisa surgiu a partir de dados sobre a alta mortalidade de peixes que vinha ocorrendo em áreas afetadas pela lama. Além disso, é conhecido na literatura acadêmica o grande potencial citogenotóxico de elementos como o ferro, o alumínio e o manganês, já encontrados no rejeito por pesquisas feitas anteriormente. Dentre as universidades que participaram dessa iniciativa, estão a Universidade Federal de Juiz de Fora, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Universidade Federal de Lavras, a Universidade Federal do Espírito Santo e, por fim, a Cornell University, nos Estados Unidos, todas participando de alguma forma para que a pesquisa conseguisse ser bem-sucedida.

No mapa acima, aparecem a bacia do Rio Doce e a localização dos três pontos de coleta, Ipatinga (1) e Governador Valadares (2) ainda no estado de Minas Gerais e Linhares (3) no litoral do estado de Espírito Santo. Quadra, 2018.

A citogenotoxicidade foi estudada pelo seu potencial de impedir o crescimento e a sobrevivência de organismos o que, em médio prazo, pode interferir em todo o funcionamento da cadeia alimentar, afetando todo o ecossistema. Além disso, o estudo é fundamental para compreender os efeitos celulares e genéticos do desastre em longas distâncias, já que os três pontos de estudo se localizam a 250, 365 e 620 quilômetros de distância da barragem. As amostras foram coletadas 10 dias após o desastre e se localizam nos municípios de Ipatinga-MG, Governador Valadares-MG e Linhares-ES, respectivamente. Nos pontos 1 e 2 (Ipatinga e Governador Valadares), as amostras de água foram retiradas por volta de 24 horas após a chegada da lama. Já no ponto 3, foram coletadas antes do contato com a lama.

As amostras foram preparadas e filtradas para a análise e tiveram seus principais elementos químicos quantificados, tanto em sua forma dissolvida como em sua forma particulada, para depois passar pelos testes de citogenotoxicidade. Assim, o teste feito em seguida usava sementes de cebola, que tinham o crescimento de suas raízes estimulado com água destilada e, posteriormente, eram expostas à água contaminada do Rio Doce em cada um dos pontos de coleta. A água do rio sem qualquer mistura foi usada para o cultivo das cebolas, mas também foi usada de forma diluída para que os pesquisadores soubessem os efeitos de cada uma das possíveis concentrações para as células. Dessa forma, as amostras usadas no experimento possuíam 20, 40, 60, 80 e 100% de água do rio em água destilada. A intenção era analisar, a partir de células capazes de se reproduzir (conhecidas como células meristemáticas), como a água do rio influenciava nessa reprodução celular e em cada uma das quatro diferentes fases desse processo, além de identificar a frequência de possíveis aberrações dos cromossomos multiplicados durante esse mesmo processo.

Em todas as análises, as quantidades de cádmio, chumbo e arsênio estavam abaixo de um valor preocupante, mas o mesmo não aconteceu com outros elementos químicos. Na análise dos elementos dissolvidos na água, o ponto em Governador Valadares chamou atenção, já que diferentemente dos demais, as quantidades de ferro, alumínio e manganês estavam muito acima do aceitável, inclusive segundo a legislação brasileira. Já a análise dos sedimentos particulados apontou que, tanto no ponto de Ipatinga como em Governador Valadares, as quantidades desses três elementos chegavam a ser centenas de vezes maiores se comparadas à composição da água de Linhares (que ainda não tinha sido impactada no dia da coleta e foi usado como um “controle” pelos pesquisadores). O processo de reprodução celular foi alterado na maior parte das amostras, sendo que todas aquelas que possuíam mais de 40% de água do rio diminuíram a frequência dessa reprodução, alterando e influenciando cada uma das fases desse processo. Além disso, a frequência das alterações nos cromossomos (que são moléculas de DNA das células) sofreu um acréscimo relevante.

Aqui aparecem seis tipos de alterações que podem acontecer no processo de reprodução celular que foram testadas nas cinco diferentes concentrações com a água do rio (20, 40, 60, 80 e 100%). A linha pontilhada representa os valores padrões e as barras marcadas com asterisco (*) são as mais preocupantes. Quadra, 2018.

Com base nesse e em outros estudos, podemos afirmar que, no geral, a concentração de manganês na água pode causar efeitos citogenotóxicos ou até mesmo letais para diversas espécies de peixes e também, caso acabe se concentrando ainda mais, pode aumentar a mortalidade de crustáceos e outros pequenos seres vivos. É fundamental entender esse impacto, já que afeta diretamente organismos que estão na base da cadeia alimentar, podendo transmitir possíveis efeitos para outras espécies e para as gerações seguintes, causando um verdadeiro caos em todo o ecossistema local, e que tende a durar ainda muito tempo após o desastre. Um dos pontos centrais do estudo, que era a validação dos efeitos em longas distâncias, pôde ser confirmado, pois impactos severos foram registrados a mais de 350 quilômetros de distância da barragem de Fundão.

Resta saber como poderia ser o comportamento das mais diversas espécies por todo o caminho que a lama seguiu até a foz do rio e além desta, considerando que esses elementos já se encontram no Oceano Atlântico nos dias atuais. A pesquisa foi importante para comprovar que os elementos químicos presentes na lama podem afetar o funcionamento da reprodução celular, com destaque para uma série de aberrações que podem ocorrer durante esse processo, mas foi perceptível que essa reprodução não atingiu grande aumento, como é esperado em células cancerígenas. É preciso, ainda, conhecer as consequências das aberrações apontadas em diferentes tipos de organismos e em diferentes pontos afetados pela lama.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:
QUADRA, G. R.; ROLAND,F.; BARROS, N.; MALM, O.; LINO, A. S.; AZEVEDO, G. M.; THOMAZ, J. R.; ANDRADE-VIEIRA, L. F.; PRAÇA-FONTES, M. M.; ALMEIDA, R. M.; MENDONÇA, R. F.; CARDOSO, S. J.; GUIDA, Y. S.; CAMPOS, J. M. S. Far-reaching cytogenotoxic effects of mine waste from the Fundão dam disaster in Brazil. Chemosphere, 2018. doi: 10.1016/j.chemosphere.2018.10.104