Sofrimento social e a perda de território: consequências de um desastre ambiental

Como você se sentiria se tivesse que ser retirado de forma violenta de dentro da sua casa e ainda ser impedido de retornar? Foi exatamente isso o que aconteceu com várias famílias após o rompimento da barragem do Fundão. Quais seriam as consequências desse processo para a vida da população atingida?

O estado de Minas Gerais, historicamente, tem sua economia fortemente marcada pela mineração, trazendo com isso os benefícios e prejuízos dessa atividade tão presente no território. Consequentemente, também tem vivenciado cenários de desastres ambientais devido a rompimentos de barragens, principalmente ao longo dos últimos anos.

O rompimento da barragem da Vale, em Mariana, obrigou cerca de 300 famílias que moravam em Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo a abandonarem seus territórios. A população foi deslocada de forma violenta da zona rural para a área urbana de Mariana, passando por um processo de desterritorialização. A partir deste quadro, pesquisadores da Universidade Federal de Ouro Preto e Instituto René Rachou decidiram investigar esse processo e seus impactos sobre a população atingida. A partir do conhecimento gerado poderíamos embasar ações e desenvolver políticas públicas de saúde mais eficazes visando estes grupos.

Figura 1: Bento Rodrigues destruída pelo rejeito de mineração forçando a população a deixar seu território / Fonte: Romerito Pontes/ Wikimedia.

Para realizar as investigações, os pesquisadores observaram as famílias atingidas durante dois anos nos serviços de saúde, espaços comunitários e coletivos construídos pela própria população durante esse tempo. Esse tipo de trabalho de campo é importante, pois faz com que o pesquisador se aproxime da realidade vivenciada pelo sujeito de estudo (neste caso, os atingidos pelo rompimento da barragem de mineração). É uma forma do pesquisador se colocar no lugar do outro e assim pode-se chegar a percepções e conclusões mais próximas da realidade. Além disso, foram feitas entrevistas buscando compreender o real significado das mudanças a partir do desastre e principalmente sobre a perda do território e suas consequências para a população.

O conceito e importância do território é maior do que imaginamos. Ele é entendido não somente como um recorte qualquer do espaço geográfico, mas também como possuidor de valor existencial. É onde se vive e cria relações políticas, sociais, históricas e afetivas. Sob o olhar das famílias, é um campo da segurança e proteção, que nos protege do caos e está diretamente associado ao sentimento de pertencimento. Logo, quando se é retirado do seu território de forma abrupta e violenta, também ocorre uma ruptura dos modos de vida, das relações pessoais, dos grupos sociais e políticos, o que configura o que chamamos de desterritorialização.

O contexto de rompimento de barragens é um gerador de sofrimento para os grupos atingidos que tem seus modos de vida e territórios completamente alterados. Os pesquisadores perceberam que muitos dos atingidos viviam no mesmo local desde seus nascimentos e ali decidiram permanecer e constituir família. Isso revela o forte vínculo entre os moradores de Bento Rodrigues e Paracatu de baixo com suas terras.

Figura 02: Raimundo Alves; o atingido plantava de tudo em Bento Rodrigues antes do rompimento da barragem / Fonte: Tainara Torres/Jornal A Sirene.

Além disso, ao serem deslocados para a zona urbana de Mariana, pode-se perceber que os atingidos sentiam muita insegurança com relação ao novo território. Antes do desastre, viviam em um ambiente rural e amigável em que todos se conheciam. As pessoas novas que chegavam logo eram inseridas na dinâmica comunitária. Atualmente, morando em Mariana, existe um distanciamento social muito grande, já que vizinhos e parentes foram separados nesse novo território. Pessoas que se viam todos os dias agora ficam semanas sem se ver. Com isso, a rede de suporte social foi danificada e vínculos afetivos foram quebrados, gerando assim a insegurança. A zona urbana também é um ambiente de maior exposição às violências e assim, os atingidos também se tornam mais vulneráveis e são inseridos em um cenário de maior desigualdade social.

Ao mesmo tempo, a população atingida passa por um processo de reconhecimento da área urbana e pela necessidade de reconstrução de uma nova organização social. É um processo de adaptação a um novo território. Percebe-se em suas falas, os agradecimentos constantes pela vida, principalmente por quem passou por momentos de quase morte no rompimento da barragem. Porém, eles não se sentem pertencentes ao novo lugar em que se encontram. Alguns entrevistados relatam que a impressão é de que suas casas não são suas. Além disso, com a nova dinâmica instaurada, muitas pessoas perderam atividades de trabalho, lazer e subsistência. Por exemplo, quem plantava, não possuía mais quintal ou lote vago na vizinhança para exercer tal função. Da mesma forma, aqueles que tinham animais de criação, não mais os têm. Isso gerou sentimentos como ociosidade, tristeza e ansiedade.

Também vale ressaltar que a população atingida ainda passará por um novo processo de troca de território, pois não vão permanecer na zona urbana de Mariana. A mineradora, através da Fundação Renova, foi obrigada pela justiça a construir um novo assentamento para a população se estabelecer. “Novo Bento” ou “Nova Paracatu” serão territórios destinados aos atingidos para que eles finalmente possam restabelecer sua cultura e identidades.

Até o momento deste trabalho a população atingida ainda permanece em Mariana e está à espera da construção do novo assentamento destinado a ela. Seria uma área mais próxima da zona rural em que a população poderia instituir seu antigo modo de vida tranquilo, com a criação de animais e com áreas agriculturáveis. Porém, essa espera tem sido um fator de grande ansiedade. Já são mais de quatro anos após o rompimento da barragem e ainda assim, nenhuma nova casa foi construída. Nesse sentido é importante observar a saúde mental da população atingida e interpretar seus sintomas de forma integrada com as questões socioambientais e políticas.

Por fim, podemos dizer que além dos óbitos provenientes do rompimento da barragem, existe uma espécie de morte social dos sobreviventes. Entendemos que os impactos gerados pelo rompimento da barragem perpassam várias dimensões do ser humano e do tempo. Conhecer esses impactos pode nos conduzir a melhores tomadas de decisões, pois servirão de base para o desenvolvimento de políticas públicas e ações. Por exemplo, pensemos na melhoria da qualidade de vida da população atingida. Fica evidente a necessidade da construção do novo assentamento para a mesma, pois a falta de território é um grande fator de ansiedade. Sabendo disso, é eficaz pensar ações com a finalidade de pressionar a mineradora para a construção do novo assentamento e aos órgãos públicos para a fiscalização da mesma. Assim podemos lutar pelos direitos e saúde dos atingidos de forma que suas necessidades reais sejam colocadas em pauta.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:

SANTOS, Marcela Alves de Lima; SOL, Núncio Antônio Araújo; MODENA, Celina Maria. Território e desterritorialização: o sofrimento social por desastre ambiental decorrente do rompimento de barragens de mineração. Saúde em Debate, v. 44, p. 262-271, 2021.