As atingidas pelos rompimentos de barragens:

o que as mulheres têm a dizer?

Por: Sheila Sousa de Jesus Peixoto - 25/03/2022Orientação: Alfredo Costa

Os impactos dos rompimentos de barragens de mineração podem afetar as pessoas de forma diferente devido às particularidades de raça, gênero, classe e sexualidade. O que será que as mulheres atingidas têm a dizer sobre isso?

O projeto de mundo atual, de muitas maneiras, ainda é pautado no capitalismo e no patriarcado, apesar de todas as conquistas sociais das últimas décadas. Estes são sistemas baseados em uma cultura, estrutura e relações que favorecem os homens. Além dos desdobramentos de gênero, existem outras camadas sociais definidas a partir de critérios como raça, sexualidade e classe, que também se submetem a um sistema complexo de opressões. Por exemplo, potencialmente uma mulher branca sofre opressões que se diferenciam das violências sofridas pela mulher negra. Essa, além de gênero, sofre preconceitos com relação a raça e dessa forma, as opressões são intensificadas.

O sistema minerário brasileiro é fruto desse projeto de mundo. Ele se caracteriza por uma exploração voraz dos recursos naturais e humanos em diferentes porções do território. Para isso, utiliza intenso conhecimento científico e tecnológico alinhado aos interesses internacionais. E é esse sistema que, nos últimos quinze anos, não para de se expandir, ao mesmo tempo em que apresenta média de um grande desastre ambiental a cada dois anos. Dentre esses desastres, podemos citar os rompimentos das barragens em Mariana (2015) e Brumadinho (2019).

Figura 1: Cenário de devastação decorrente do rompimento de barragem em Brumadinho / Fonte: Douglas Magno/AFP.

Ao pensar nesse contexto, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (RJ) decidiram dar foco às mulheres atingidas pelos rompimentos das barragens de Fundão (Mariana) e Córrego do Feijão (Brumadinho). O trabalho baseia-se no entendimento de que permanece muito comum que as vozes de mulheres sejam silenciadas, principalmente a da negra e pobre. Logo, a motivação deste trabalho foi dar força ao discurso dessas pessoas e colaborar com a rede de solidariedade e de luta por seus direitos. Segundo pesquisadores, as mulheres atingidas são as que mais cuidam para que seu cotidiano e modos de vida sejam reconstruídos, mesmo que ainda inseridas em uma posição social e econômica desvantajosa. Dessa forma, estão na linha de frente da luta contra o descaso das mineradoras.

Para a realização desse trabalho, os pesquisadores fizeram um levantamento de documentos, entrevistas feitas através de pesquisa de campo e análise de discurso baseado nas publicações do Jornal A Sirene. Este jornal é uma mídia aderente aos movimentos dos atingidos, ou seja, mídia que reconhece e valoriza a singularidade da vida humana. Alguns dos integrantes e participantes do conselho editorial do jornal são pessoas que sofreram diretamente com os desastres ambientais. Dessa forma, fica assegurado que o olhar analisado e ressaltado é o dos atingidos. Após a leitura das 59 edições do Jornal A Sirene (2016 a 2021), foram selecionadas 19 que abordavam questões sobre as mulheres atingidas.

As análises demonstraram que as mulheres sofreram com a falta de reconhecimento nos processos de reparação dos desastres ambientais. Por exemplo, citamos os casos da Fundação Renova, financiada pelas mineradoras Samarco, Vale e BHP, criada para reparar os danos do desastre ambiental de Mariana. A Fundação ofereceu indenização para os atingidos, mas para isso é preciso fazer o cadastro para análise do perfil. Em muitos casos, mulheres não conseguiram obter essa reparação por serem consideradas dependentes de seus maridos, apesar de trabalharem junto com eles. Dessa forma, elas tiveram sua individualidade e independência contestada.

Além da falta de reconhecimento como trabalhadoras e independentes, as mulheres também sofreram com assédio dos homens contratados de empresas terceirizadas para atuarem nas comunidades. Ou seja, além de seu cotidiano alterado, a chegada desses homens trouxe novos problemas. Mesmo com essas dificuldades, as mulheres atingidas ainda tomaram as frentes de resistência participando de todas as questões e atividades relacionadas aos desastres envolvendo o rompimento das barragens de mineração. As mulheres atingidas, além de trabalharem para sustentar a si mesmas e cuidarem das famílias, passaram a lutar pelos direitos das comunidades atingidas. Com isso, podemos considerar que elas passaram a ter uma jornada tripla de trabalho (ou mais, se ponderarmos o cuidar da família como atividades do lar e educação dos filhos) e, dessa forma, existe um desgaste maior por serem responsáveis por tantas atribuições.

Diante deste quadro, os autores ainda perceberam a condição de “sofrimento social” por parte das atingidas. Este processo engloba experiências de dor, trauma e distúrbios que afetam toda a comunidade analisada. Por exemplo, questões como transtorno de ansiedade, depressão, insônia, estresse, doenças respiratórias, alergias derivadas da contaminação dos rios e solo e dentre outras, passaram a ser presentes na vida das mulheres atingidas. Marlene, uma das entrevistadas, relatou viver sob estresse, ter a necessidade de acompanhamento psicológico, falta de tempo com o marido e filho, além de emagrecimento. Mesmo frente às dificuldades, Marlene também diz que não desistirá do seu objetivo, que é correr atrás dos direitos de sua família assim como dos direitos da comunidade em que vive. Ela ainda participa da comissão dos atingidos e é promotora popular de defesa comunitária.

Figura 2: Atingidas por barragens realizam encontro em Brumadinho para elaborar estratégias de luta / Foto: Comunicação MAB

Além disso, também foi ressaltado neste trabalho que a maior violação de direitos dessas mulheres atingidas pelo rompimento das barragens foi a falta de representação adequada nas instâncias de poder. Sabemos da importância da variedade de pontos de vista e da representatividade ao se pensar em políticas públicas para o coletivo. Neste caso do rompimento de barragens de mineração, por exemplo, é importante que pessoas que foram afetadas diretamente tenham voz e poder de decisão sobre as compensações, afinal elas sentiram na pele o desastre ocorrido.

Por fim, é citada a falta de responsabilização dos poderes públicos que deram muitos poderes à Fundação Renova. Um exemplo foi a criação do Museu em Mariana, por esta Fundação, que conta de forma detalhada sua versão do crime ambiental e ainda é responsável por realizar ações educativas para crianças e jovens sobre a temática (lembrando que a Fundação é financiada pelas mineradoras). Dessa forma, acredita-se que as mineradoras, além de responsáveis pelos desastres ambientais, também puderam dominar o discurso, o território e os corpos das atingidas e dos atingidos, suas histórias e suas dores. Essa dominação só reforça o projeto de mundo injusto e desigual. Trata-se de um modelo que gera e mantém as desigualdades sociais e, assim, a voz das mulheres atingidas são cada vez mais silenciadas. Por isso a importância de mídias que deem espaço para que as minorias possam se fazer ouvidas. A partir da escuta ativa e empática podemos pensar e desenvolver formas mais juntas de sociedade.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:

OLIVEIRA, Simone Santos; PORTELLA, Sergio; KATONA, Laura Luna. Interseccionalidade e rupturas dos modos de vida pelos rompimentos de barragem: reflexões a partir de uma mídia em aderência. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, v. 15, n. 2, 2021.