Aberrações genéticas: o que isso tem a ver com a toxicidade do rio Paraopeba?

Os rejeitos de mineração podem conter metais pesados e elementos raros como: ferro, alumínio, urânio e muitos outros. Esses elementos em grandes quantidades podem causar impactos ambientais e problemas à saúde dos seres vivos. Após o rompimento da barragem da Vale, como estará o rio Paraopeba com relação à presença desses componentes tóxicos? E como investigar essa potencial toxicidade para com os seres vivos?

O rompimento da barragem da Vale liberou 12 milhões de m³ de rejeitos de mineração no ribeirão Ferro-Carvão, que, ao desaguar no rio Paraopeba, levou até ele grande parte desse material . Se você gosta de natação, saiba que isso equivale a 4.800 piscinas olímpicas sendo esvaziadas ao mesmo tempo. Devido a quantidade de rejeito que foi liberado no ecossistema, iremos lidar com altos níveis de contaminação e demais problemas que isso pode gerar a médio e longo prazo. O rejeito do córrego do Feijão é um material composto por partículas de silte e argila, com altos níveis de metais pesados como Ferro, Alumínio, Manganês e Titânio. Também apresenta traços de outros elementos tóxicos como Urânio, Cádmio, Mercúrio e outros. Diante disso, surge o questionamento sobre o que esses contaminantes podem causar nos seres vivos que dependem do rio.

Para isso, um grupo de pesquisadores de diferentes universidades brasileiras decidiu testar os possíveis efeitos tóxicos do sedimento e água do rio Paraopeba contaminados pelo rejeito de mineração. Para testar o quanto algo pode ser tóxico para os seres vivos, eles utilizaram como modelo biológico cebolas (pra quem gosta de nomes científicos, Allium cepa). Na verdade, é muito comum que pesquisadores utilizem cebolas para este tipo de estudo. Por mais que sejam um grupo biológico bem diferente dos humanos, em nível celular podemos observar respostas interessantes.

Mas afinal, como foi feito o experimento? Ao longo do Rio Paraopeba, em seis localidades diferentes, foram coletados água e sedimento (fundo do rio). O ponto 1 se localizava alguns quilômetros acima do ribeirão Ferro-Carvão, então não havia sido afetado diretamente pelo rompimento. O ponto 2 se situava em Brumadinho, sendo o ponto mais afetado pelo rompimento e os demais (3, 4, 5 e 6) foram coletados descendo o rio.

O material coletado foi levado para laboratório e colocado em contato com as cebolas para que elas desenvolvessem raízes. Foi através do estudo das células dessas raízes que foram observados os potenciais efeitos citogenotóxicos e como isso se dava ao longo do rio.

Locais de amostragem ao longo do rio Paraopeba sinalizados
Figura 1: locais de amostragem ao longo do rio Paraopeba sinalizados com setas azul: (S1) Moeda - 61,3 km a montante da área da falha e vermelhas: (S2) Brumadinho - 5,2 km, (S3) Juatuba - 48 Km, (S4) São José da Varginha - 111 km, (S5) Angueretá - 240 km e (S6) Retiro Baixo - 302 km a jusante da área de rompimento da barragem. Fonte: Adaptado de Vergilio et al. (2020).

O termo “citogenotóxico” pode gerar estranhamento, mas se nós o dividirmos em pedaços menores fica mais fácil entender. “Cito” significa célula, “geno” vêm de genética e “tóxico” é algo que é venenoso. Então um componente citogenotóxico é algo que é ruim para os organismos vivos em nível celular e com isso pode gerar problemas e aberrações genéticas como por exemplo, o aumento/diminuição da taxa de divisão celular e perda/alteração de material genético. Já pensou nos problemas que isso pode causar?! Imagine um tumor. Ele nada mais é do que um conjunto de células que têm uma taxa de divisão acima do normal causando problemas à saúde do indivíduo.

Ao analisar os dados, os pesquisadores chegaram nos seguintes resultados: a maioria dos elementos tóxicos foi encontrada em baixas concentrações no ponto 1 do rio Paraopeba (acima da barragem da Vale). Porém, a partir da barragem (ponto 2 em diante), a quantidade de elementos tóxicos aumentou significativamente, tendo o seu pico justamente neste mesmo ponto . Ao longo do rio os elementos vão se diluindo, porém ainda estão em concentrações muito mais altas do que o permitido pela legislação.

A água do ponto 1, que ficava acima da barragem, não foi tóxica para as cebolas. Em contrapartida, a partir do ponto 2, onde ocorreu a passagem e deposição dos rejeitos de mineração, a água do rio foi considerada tóxica e aumentou significativamente o número de aberrações celulares. Ou seja, todos os pontos por onde o rejeito passou estavam com a água tóxica em algum nível e isso gera preocupações sobre as consequências do contato com essa água.

Com relação ao sedimento, o ponto 1 (acima da barragem), mesmo não recebendo influência direta do rejeito, apresentava elementos tóxicos em sua composição. Tais dados evidenciam que antes do rompimento da barragem já haviam atividades antrópicas que causavam um enriquecimento de elementos químicos no Paraopeba, porém em condições muito menores que após o rompimento da barragem da Vale. Como se esperava, todos os pontos abaixo da barragem também apresentaram o sedimento tóxico para as cebolas. Isso foi percebido devido a visualização de aberrações genéticas nas células.

Células de cebola em diferentes fases de divisão celular

Imagem 2: Células de cebola em diferentes fases de divisão celular (fases normais: a, b, c, d, e; fases com ABERRAÇÕES GENÉTICAS sinalizadas em vermelho: a1, b1, c1, d1, e1).

Fonte: Adaptado de Vergilio et al. (2020).

Por fim, os pesquisadores perceberam que existe relação direta entre a quantidade de elementos tóxicos na água/sedimento e as alterações genéticas encontradas. Com isso, foi confirmado o potencial efeito citogenotóxico tanto da água quanto do sedimento do rio Paraopeba após o rompimento da barragem. Foi mostrada a existência de variação na quantidade de elementos tóxicos ao longo do rio e entre os compartimentos água e sedimento. Também foi verificado que os sedimentos apresentam a maior concentração dos contaminantes. Ao longo do tempo os elementos químicos podem ir se depositando no fundo dos corpos hídricos e assim se instalam no sedimento que pode funcionar como um reservatório de tóxicos.

Este artigo demonstra a necessidade do monitoramento de longo prazo da bacia do rio Paraopeba. Com isso, os estudos sobre a qualidade da água e sedimento, assim como testes toxicológicos com modelos biológicos devem continuar a fim de se entender os desdobramentos futuros deste desastre ambiental. Além disso, reforçamos a importância da conexão entre a população e os trabalhos científicos que estão sendo desenvolvidos sobre o tema. O conhecimento empodera a população e dessa forma pode-se tomar decisões mais conscientes frente aos problemas.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:

SOUZA, T. S.; BARONE, L. S. F., LACERDA, D.; VERGILIO, C. S.; OLIVEIRA, B. C. V.; ALMEIDA, M. G., THOMPSON, F.; REZENDE, C. E. Cytogenotoxicity of the water and sediment of the Paraopeba River immediately after the iron ore mining dam disaster (Brumadinho, Minas Gerais, Brazil). Science of The Total Environment, v. 775, p. 145193, 2021.