A sinuosidade do desastre: os danos nas formas dos rios
A capacidade técnica dos seres humanos tem sido responsável por grandes mudanças na paisagem. Com o rompimento da barragem de Fundão, um novo relevo se estabeleceu e o rejeito dominou o cenário, destruindo a morfologia original dos vales dos rios afetados.
No ano de 2015, o rompimento da barragem de Fundão, pertencente à Samarco S.A, liberou por volta de 50 milhões de litros de rejeito de mineração nos rios e córregos da bacia do rio Doce, deixando 19 mortos e centenas de desabrigados. O rejeito atingiu o córrego do Fundão, o córrego Santarém, o rio Gualaxo do Norte, o rio do Carmo e o Rio Doce, chegando depois ao Oceano Atlântico, na costa do estado do Espírito Santo.
Buscando compreender a dimensão do desastre sobre os rios, pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora investigaram as transformações que os vales fluviais sofreram a partir do recobrimento dos leitos dos rios pelos rejeitos. A pesquisa focou na bacia hidrográfica do rio do Carmo, que abarca a área mais afetada pelo desastre.
Imagem 1: Mapa mostrando a Bacia do rio do Carmo, com os cursos d’água e municípios afetados direta e indiretamente pela onda de rejeito.
O primeiro passo da pesquisa foi compreender a paisagem original e o comportamento dos rios da bacia do rio do Carmo, a partir de uma vasta revisão bibliográfica e cartográfica. Após isso, foi realizado um trabalho de campo com o objetivo de analisar as alterações na área afetada no âmbito da geomorfologia (ciência que estuda as formas da superfície terrestre), vendo como as formas de relevo e a paisagem foram alteradas. Posteriormente, foi feito um reconhecimento da área utilizando imagens de satélite e do Google Earth, para o mapeamento das formas fluviais nos fundos de vale pré e pós rompimento. Com essas análises, foi possível entender como os rios se configuravam e como foram modificados.
O corredor hídrico formado pelos vales do córrego do Fundão, córrego Santarém, rio Gualaxo do Norte e rio do Carmo (que juntos totalizam 104,5 km de extensão) tiveram 17 km² de áreas marginais recobertas por rejeitos. A geomorfologia do fundo dos vales afetados era marcada originalmente pela presença constante de ilhas, barras, lagoas e meandros abandonados. Essas feições naturais agora se misturam com as feições chamadas de tecnogênicas, ou seja, que foram criadas ou modificadas pela ação humana a partir do rompimento da barragem. Com o fluxo de rejeitos, a paisagem do local foi modificada. Dessa forma, muitas feições naturais foram descaracterizadas ou até mesmo destruídas pelo rompimento; outras, porém, foram criadas pelo acúmulo dos rejeitos.
Imagem 2: Mostra a localização das feições tecnogênicas e o desenho da área estudada pré-rompimento, com destaque para as localidades atingidas (em verde).
Dentre as principais mudanças percebidas, o córrego Santarém, por exemplo, se deslocou 100 metros para a direita devido ao rejeito que se depositou em sua calha, assoreando o mesmo e o “expulsando” de dentro do seu canal. O assoreamento também foi notado no rio do Carmo, que demonstrou alterações significativas em certas áreas do seu curso, como o desaparecimento de ilhas de tamanho considerável. Os autores também relataram o refluxo do rejeito, que ocorre quando os rejeitos "sobem o rio”, contra a gravidade. É um fenômeno incomum, mas que ocorreu em alguns afluentes do rio Gualaxo do Norte e do córrego Santarém.
Mesmo anos após o rompimento da barragem e o depósito dos rejeitos nos rios e suas margens, mudanças forçadas irão continuar nos corpos hídricos atingidos. A natureza precisa se adaptar à nova realidade e isso levará tempo. Dessa forma, podemos afirmar que toda a dinâmica da bacia do Carmo precisa ser estudada de forma contínua, visando compreender melhor como o meio ambiente irá contornar o ônus do rompimento. Esses estudos serão necessários para que novas discussões diante do constante cenário de risco de rompimentos de outras barragens de rejeitos de mineração, ofertando a população de todo o país, o embasamento necessário para o diálogo pela elaboração de planos de recuperação ambiental e social adequados para mitigar os danos de futuros rompimentos.
MENDES, Laís Carneiro; FELIPPE, Miguel Fernandes. ALTERAÇÕES GEOMORFOLÓGICAS DE FUNDO DE VALE NA BACIA DO RIO DO CARMO (MG) DECORRENTES DO ROMPIMENTO DA BARRAGEM DE FUNDÃO. Caminhos de Geografia, v. 20, n. 69, p. 237–252-237–252, 2019.