Uma ameaça que não pode ser vista: a escala do gene

Grande parte do caos causado pelos rompimentos de barragem fica evidente através do recobrimento dos rejeitos na paisagem. Porém, consequências que não são “visíveis” devem ser estudadas, visto que são determinantes para a saúde das pessoas. Entre essas consequências, estão as bactérias.

Os rompimentos de barragem de mineração afetam as mais diversas escalas e esferas, o que justifica o interesse de todas as áreas do conhecimento nesse tipo de crime, procurando entender melhor as possíveis consequências da lama e descobrir quais efeitos ela tem sobre as pessoas, a água, o solo e os animais. Um exemplo disso é o estudo proposto por um grupo do Departamento de Análises Clínicas, Toxicológicas e Bromatológicas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP, Ribeirão Preto), que procura estudar a quantidade, variedade e distribuição de “genes de resistência antimicrobiana” e suas implicações para a saúde humana, após o rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho. Esses genes são responsáveis por gerar uma modificação no DNA de bactérias, tornando-as mais resistentes aos antimicrobianos.

Foram analisadas amostras de solo, de sedimento e de água de 10 lugares diferentes, desde a cidade de São Gonçalo do Abaeté, ainda na bacia do São Francisco, até o entorno de Brumadinho, já no rio Paraopeba. Os quatro primeiros pontos de coleta estão em áreas onde a lama da mineração ainda não tinha sido verificada, enquanto os outros seis já haviam sido comprovadamente atingidos. Isso é importante, pois possibilita um comparativo entre as áreas afetadas e as não afetadas, ou seja, é um meio de entender quais as consequências do rompimento nas características físicas do meio ambiente.

Os parâmetros analisados nas amostras de água foram a temperatura, a acidez, a condutividade elétrica e a turbidez, assim como a presença de alguns metais como o ferro, o alumínio, o cobre e tantos outros. Por fim, seguindo o objetivo principal da pesquisa, foram identificadas a quantidade e a diversidade de genes de resistência antimicrobiana na água, no solo e nos sedimentos de todos os 10 pontos.

Figura: mapa da região estudada e a distribuição dos pontos de coleta de amostras pelos rios Paraopeba e São Francisco.

Fonte: FURLAN et. al. 2020.

Todos os parâmetros medidos estavam mais altos nos pontos afetados pela lama, mas a turbidez merece certo destaque, já que estava 9 vezes mais alta do que o valor estipulado pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) para a água de rios como o Paraopeba. Por isso, foi usada nesta pesquisa, inclusive, para determinar o que caracteriza o local como “afetado”. Os principais metais encontrados também estavam com taxas várias vezes mais altas do que o limite da legislação brasileira, com destaque para o manganês, o ferro, o alumínio e o cobre na água, com o acréscimo do cádmio nas amostras de sedimento e solo. Dentre o material genético encontrado nas amostras, existiam genes de resistência a dezenas de antimicrobianos, mas o que de fato chamou a atenção é que, mesmo nos pontos não afetados, a quantidade desses genes era muito maior do que o normal, embora não fosse tão grande quanto nos pontos afetados.

Figura: ponto do rio Paraopeba, onde pode-se observar uma água bastante turva e uma grossa camada de sedimentos de rejeito nas margens do rio.

Fonte: Acervo próprio, Rebeka Knop em 11 de Outubro de 2019.

Sabendo-se que os antibióticos são de extrema importância para a regulação dos ecossistemas e da saúde humana, o aumento e a diversidade de genes de resistência antimicrobiana podem representar uma mutação decisiva em sua eficácia. Além disso, esses genes resistentes podem gerar bactérias mais difíceis de serem combatidas por antibióticos, ou seja, quando contaminam os seres humanos, essas bactérias podem resistir à ação dos medicamentos convencionais, como se fossem “superbactérias”. Essa situação contribui para um cenário alarmante: se considerarmos que essa água é utilizada para consumo direto e sem muito tratamento e que o solo e os sedimentos podem vir a ser usados para o plantio de alimentos, a ingestão dessas bactérias super-resistentes é muito possível. Isso se acentua se levarmos em conta que, mesmo onde a água apresenta menores valores de turbidez, as taxas dos genes resistentes também são altas, ou seja, mesmo onde a água está mais clara (translúcida), ela pode não estar “limpa”.

Olhando a paisagem recriada pelo rompimento em Brumadinho, pode-se perceber que muitas de suas consequências são evidentes, visto que casas foram destruídas, vastas áreas sem vida foram criadas, a água apresenta uma coloração diferente, árvores foram arrancadas etc. Conversando com as pessoas e observando com maior cuidado, outras consequências podem ser descobertas, como o sentimento de angústia e o abatimento da economia local. Porém, existem consequências do crime aqui retratado que requerem um nível de análise extremamente profundo, a partir de trabalhos laboratoriais que desvendam questões inimagináveis a quem observa a região devastada. Isso reforça que grande parte dos perigos criados pelo rompimento em Brumadinho são invisíveis e que o nível de cautela ao utilizar a água e o solo, mesmo nas áreas em que a água parece limpa, deve ser redobrado.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:
FURLAN, João Pedro Rueda; SANTOS, Lucas David Rodrigues dos; MORETTO, Jéssica Aparecida Silva; RAMOS, Micaela Santana; GALLO, Inara Fernanda Lage; ALVES, Georgia de Assis Dias; PAULELLI, Ana Carolina; ROCHA, Cecilia Cristina de Souza; CESILA, Cibele Aparecida; GALLIMBERTI, Matheus; CEVÓZ, Paula Pícoli; BARBOSA JÚNIOR, Fernando; STEHLING, Eliana Guedes. Occurrence and abundance of clinically relevant antimicrobial resistance genes in environmental samples after the Brumadinho dam disaster, Brazil. Science of the Total Environment. 726, 2020.