Narrando a perspectiva do atingido: o medo, a dor e a perda
Uma mesma história, várias narrativas. Então, qual o papel da mídia? Um evento como o desastre da Samarco, na bacia do Rio Doce, pode ser contado de diversas formas. Não há discurso imparcial, por isso é importante saber como o desastre e suas consequências têm sido narrados para o público.
Após o rompimento da barragem de Fundão, um cenário do trauma foi criado por um evento rápido que havia sido presenciado apenas pelos moradores locais. O jornal laboratório “Lampião”, do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), buscou essas testemunhas e relatou suas experiências. Quais seriam, então, as estratégias utilizadas pelo jornal para narrar os acontecimentos do crime da Samarco, baseando-se nas falas dos moradores de Bento Rodrigues, o subdistrito de Mariana que mais foi devastado?
O trabalho feito pelo jornal é de extrema importância, já que narrar os acontecimentos pela perspectiva dos atingidos leva o público externo e distante a entender o que aconteceu após o rompimento. Porém, é necessário que o trabalho jornalístico seja feito com cuidado nesses casos, uma vez que a população entrevistada está sensível aos acontecimentos e pode se confundir ao longo das falas. Então, cabe ao entrevistador se sensibilizar e interpretar cada um dos sujeitos, driblando os possíveis erros e irrealidades. Além disso, vale enfatizar que a mídia local de Bento Rodrigues não é muito desenvolta, visto que a maior parte dos meios de comunicação é administrada por grupos específicos, que possuem seus próprios interesses sobre o que é divulgado ou não (realidade não muito distante dos grandes grupos de comunicação do Brasil, que praticamente monopolizam o jornalismo). Assim, o “Lampião” é o único jornal independente e sem relação direta com grupos locais, mesmo que possua apenas duas edições por semestre.
A experiência de quase morte, tão característica do trauma e, de fato, vivenciada pela população de Bento Rodrigues, pode deixar as vítimas confusas em relação ao acontecimento, que se mistura à dor e ao medo envolvidos neste. Mas, mesmo assim, por mais que não sejam falas totalmente fiéis ao ocorrido, cada relato tem sua importância, mostrando a perspectiva do traumatizado em relação ao desastre e traduzindo a imagem e a sensação de ver o espaço de sua vivência ser devastado pela lama da mineração. Os atingidos “são portadores de verdades, únicas para cada um”, e constroem, assim, uma narrativa.
Essa narrativa ajuda a não nos esquecermos de tudo o que ocorreu, mantém viva uma memória do passado, trazendo-a para o presente ao mesmo tempo em que torna tudo mais real com a verbalização das sensações e lembranças. Uma tarefa dos jornalistas era traduzir o que os moradores relataram em uma textualidade mais clara, porque os relatos, por si sós, não constituíam uma narrativa estruturada e contínua. Assim, optaram por fazer uso dos relatos apenas em passagens específicas, enquanto o narrador geral era onisciente, mesmo que construído indiretamente a partir das falas. Um obstáculo encontrado pelos jornalistas foi, na tentativa de narrar o trauma, perceber que Bento Rodrigues não era alvo das narrativas jornalísticas cotidianas, ou seja, não havia como comparar a situação “normal” do povoado com o cenário catastrófico da lama, posteriormente ao rompimento. Outro desafio era escapar da “espetacularização” do desastre, o acontecimento não é uma ficção ou uma história a ser contada, ao mesmo tempo que havia a tentativa de não cair num jornalismo puramente informativo.
Lendo algumas passagens do jornal, é possível perceber como essa narrativa foi sendo criada a partir dos relatos, por exemplo: “Na tarde do dia 5, Maria se preparava para descansar no sofá da sala quando a filha lhe avisou que a barragem tinha se rompido. A aposentada só teve tempo de chamar a amiga e fugir. ‘Entrei no ônibus da linha que estava passando, ia em direção a Santa Rita, mas a lama cortou o caminho. O ônibus recuou e nos deixou no pé do morro. Lá de cima eu só via tudo sendo levado'”. Nesses relatos, é possível perceber que era mais um dia comum na vida daquelas pessoas, elas saíam para trabalhar, estudar, fazer compras, entre outras atividades cotidianas.
Ao todo, 13 conteúdos do jornal foram avaliados, considerando que cada um deles tem um papel na construção dessa narrativa, mostrando diversos pontos de vista, tanto a partir dos relatos dos moradores, como a partir de uma narração jornalística onisciente. Pode-se dizer que as estratégias utilizadas pelo jornal foram moderadas em relação ao uso das falas de cada morador, visto que, em seus discursos, a construção de uma narrativa linear e clara é muito mais difícil de alcançar. Ou seja, as falas foram usadas indiretamente para construir a narrativa aparecendo de forma mais direta em um ou outro trecho do jornal com o recurso da citação. É válido pontuar que, em certos momentos, elementos irreais aparecem nos relatos, mais um motivo para os jornalistas priorizarem a criação de uma narrativa a partir dos relatos e não somente o uso direto destes.
Contando o desastre com a ajuda de cada um dos relatos, a “narrativa do trauma” surge. O sentimento de perda dos moradores e sua proximidade com a morte fazem com que os leitores entendam um pouco a sensação dessas vítimas na hora do rompimento, de ver vidas, bens e lembranças sendo levados pela lama, como quando o jornal cita um dos entrevistados: “No momento em que a barragem rompeu, José trabalhava na venda que construiu há 25 anos. Ao ouvir de longe o barulho, pensou que fosse poeira no vendaval. Quando viu o mar marrom, a correnteza trazia também uma escola inteira, e estava a 30 metros de atingi-lo [...] ‘Matou meu povo tudo. Andei até de passos. Não adiantava correr. Aquela lama poderia me lamber, já tinha lambido meu povo mesmo’”. Os relatos ainda contribuem para uma imagem comparativa entre as rotinas antes e depois do acidente, num momento presente marcado por uma rotina conturbada com uma linearidade temporal confusa, que persiste em se firmar no passado. É possível afirmar que essa recorrência do passado é própria dos eventos traumáticos e das rotinas pós-trauma.
Podemos concluir que essa narrativa construída pela perspectiva do atingido segue uma tendência do jornalismo contemporâneo que prioriza certa compaixão pelos sujeitos envolvidos, chamada de “política da vítima”, trazendo o nome e uma identidade para cada um dos entrevistados, além de sua visão sobre seu lugar de vivência, guardado agora apenas na memória. Esse modelo jornalístico aparece em contraponto à mídia de massa que, por participar de um contexto econômico e informacional na escala nacional, acaba se aliando às grandes empresas e apresentando a sua versão dos fatos, citando os atingidos de forma impessoal ou sensacionalista, criando uma narrativa para a Samarco ou para o próprio governo. O papel do “Lampião” de trazer essa identidade é trazer também o lugar, uma vez que este fez parte da construção dessa identidade, seja ela individual ou coletiva. Por fim, pôde-se perceber que a descrição do desastre não estava tão presente no jornal, que fez a opção de dar protagonismo para à experiência vivida pelos sujeitos do trauma, uma narrativa baseada em suas falas.
BARBOSA, Karina Gomes; CARVALHO, André Luís. Narrativas do trauma no jornalismo local: o rompimento da barragem da Samarco em Mariana. Estudos em Jornalismo e Mídia, v. 13, n. 2, p. 19-33, 2016. DOI: https://doi.org/10.5007/1984-6924.2016v13n2p19