A violação de direitos minando a capacidade de luta das pessoas atingidas

Por: Augusto de Castro Reis - 12/08/2021Orientação: Sérgio Lana Morais

Contraditoriamente, a “justiça” tem sido feita sem a participação ativa das pessoas atingidas, escolhendo caminhos injustos para solucionar os problemas criados pelas mineradoras.

Os processos judiciais envolvidos no crime do rompimento de barragem em Mariana são de extrema complexidade e já se estendem por anos, com diversos desdobramentos favoráveis ou não às pessoas atingidas. Partindo da indispensabilidade de se analisar esses processos e de melhor explorar a evidente necessidade de uma assessoria técnica independente, professoras da Universidade Federal de Ouro Preto discutiram o assunto. O artigo foi desenvolvido a partir das atividades de campo desenvolvidas pelo Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais em Barra Longa – MG, que vêm ocorrendo desde a época do rompimento, convivendo com a população local e apoiando sua luta cotidiana.

A necessidade de se incorporar assessoria jurídica aos processos que envolvem as empresas mineradoras e a população atingida, numa tentativa de defender de forma justa os direitos básicos dessa população, surgiu pouco tempo depois do rompimento da barragem de Fundão. Isso ocorreu porque tanto os moradores das áreas atingidas quanto os pesquisadores presentes envolvidos, começaram a perceber que a administração do desastre e as reparações que estavam sendo feitas em Barra Longa, por exemplo, não estavam incorporando as experiências e as necessidades das pessoas atingidas.

Imagem: escavadeira e homens tentando retirar a lama da entrada das casas Fonte: Antônio Cruz / Agência Brasil

Nesse contexto, vale lembrar que a pessoa atingida é aquela que sofre com os impactos da atividade mineradora e que, geralmente, tem sua capacidade de enfrentar essas ameaças e esses impactos reduzida. Ou seja, comumente, as pessoas atingidas possuem uma menor capacidade material de enfrentar as ameaças a seus direitos humanos e se veem em oposição a grandes empresas e seus mega empreendimentos, o que bem representa a sociedade desigual em que vivemos. Nessa relação de oposição, as empresas impõem suas necessidades de lucro, tentando reparar os danos causados por suas atividades com o menor custo possível, em prol da reparação de suas condições normais de funcionamento. Assim, é papel do Direito, enquanto campo do conhecimento e prática social, debater o estabelecimento de condições justas em disputas legais, sendo o direito à assessoria técnica independente uma das alternativas.

A legislação brasileira, no geral, deixa muito evidente as responsabilidades tanto para o violador de direitos humanos, como para o causador de danos ambientais. No primeiro caso, a reparação total desses direitos e a proteção dos cidadãos devem ser prioridades para que a violação dos direitos em questão não volte a acontecer; no segundo caso, através do princípio de reparação integral da responsabilidade civil por dano ambiental, o poluidor é obrigado a reparar danos de qualquer espécie (social, natural, material, etc.). Porém, mesmo com essas determinações legais, após o rompimento da barragem em Mariana, as empresas optaram por uma via mais fácil, iniciando negociações diretas com as pessoas atingidas, sem qualquer assistência jurídica. Assim sendo, as pessoas que negociavam com as empresas não tinham uma noção real acerca de seus direitos e da dimensão que os impactos causados pelo rompimento poderiam vir a gerar, nem possuíam pessoas capacitadas para ajudá-las a entender sua nova realidade.

Com o tempo, a assimetria nos processos de decisão acerca dos impactos do rompimento continuou presente, fato comprovado com a criação da Fundação Renova, onde as empresas e os governos da União e dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo decidiram o melhor caminho a ser tomado, excluindo completamente as pessoas atingidas e o Ministério Público. Assim, além da violação dos direitos mais básicos à vida causada pelo rompimento, os processos decisórios posteriores ainda agravavam a violação dos direitos de participação dos atingidos.

Nesse contexto, a assessoria técnica independente é uma das necessidades derivadas do rompimento, ou seja, seu custeio também é responsabilidade das empresas envolvidas e contribui para garantir uma disputa legal mais justa. Assim, neste caso, responsabilizar as defensorias públicas pela defesa das pessoas atingidas é tirar a obrigação das empresas de arcarem com esse dever. Desta forma, essas assessorias devem ser capacitadas para tratar de assuntos variados, abrangendo os mais diversos impactos decorrentes do rompimento, devem ser escolhidas a partir da confiança das pessoas atingidas e devem priorizar o interesse coletivo.

Além disso, as assessorias técnicas devem compreender que os impactos vão muito além da esfera técnica, estando diretamente relacionados com a esfera política da realidade, uma vez que o desastre tem sido administrado pela parte do poluidor, é o causador dos danos, com a permissão do poder público, quem determina as reparações que serão feitas, como exemplo.

Imagem: logo da Associação estadual de Defesa Ambiental e Social de Minas Gerais, instituição escolhida pelas pessoas atingidas de Barra Longa, como assessoria técnica independente.

Fonte: https://www.aedasmg.org/

O processo de questionamento de responsabilidades e disputa por decisões foi iniciado, em Barra Longa, logo após a passagem da lama pela cidade, visto que a falta de ação do poder público municipal deixou a população nas mãos da Vale e da BHP Billiton - através da Samarco. Com o início das reparações, o cotidiano se tornou conflituoso, visto que a população não era ouvida quando as equipes da Samarco recuperavam casas e ruas. Além disso, a chegada de dezenas de caminhões e funcionários da empresa causava grandes transtornos. As pessoas atingidas começaram a se organizar, pedindo tanto um espaço de conversa e coletividade, como respostas a suas dúvidas mais técnicas e específicas. Com o início das atividades da Fundação Renova, o sentimento de insatisfação foi ainda maior, uma vez que esta organização não contava com a participação da população. Desde então, a necessidade das assessorias técnicas ficou ainda mais evidente.

O rompimento de barragem que afetou Barra Longa e tantos outros municípios na bacia do Rio Doce destaca aquilo que se discute sob o campo da injustiça ambiental e do racismo ambiental. Isto é, esse é um desastre que atinge pessoas que, por vezes, já ocupam uma posição de vulnerabilidade em nossa sociedade e que não possuem os meios para defender seus direitos mais básicos, previstos pelo aparato legislativo nacional. O acesso às assessorias técnicas independentes é um direito fundamental na diminuição das assimetrias de poder frente aos processos judiciais abertos após o rompimento e, sem elas, a justiça pode acabar seguindo por vias injustas para a resolução dos danos causados pelo rompimento.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:
SOUZA, Tatiana Ribeiro de; CARNEIRO, Karine Gonçalves. O direito das “pessoas atingidas” à assessoria técnica independente: o caso de Barra Longa (MG). Revista Sapiência: Sociedade, Saberes e Práticas Educacionais, v. 8, n. 2, p. 187 – 209, Dossiê: Extrativismo mineral, conflitos e resistências no Sul Global, 2019.