Fissuras no muro das leis:

o veredicto nas mãos do réu

Por: Augusto de Castro Reis - 25/03/2021Orientação: Bruno MilanezRevisão: Olden Hugo Silva Farias

A ideia da assinatura de acordos envolvendo a reparação para as pessoas atingidas se baseia no discurso de rapidez e de igualdade para a resolução do crime de Mariana. Na realidade, as decisões sobre o crime ficam nas mãos do culpado.

Os rompimentos de barragem, entendidos como crimes contra as mais diversas esferas da sociedade e do meio ambiente, acabam por gerar uma infinidade de queixas e ações judiciais contra os atores responsáveis. Pensando nisso, pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo procuraram entender como as queixas, reclamações e argumentos das ações coletivas foram enquadrados no aporte legal existente, ou seja, como os diversos problemas gerados para as vítimas podem ser localizados sob as leis, os direitos e demais instrumentos legais atuais, após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana. É importante lembrar que essas ações coletivas foram movidas a partir de movimentos sociais promovidos por grupos específicos, por exemplo, que contavam com o auxílio das instituições de justiça (defensores públicos, promotores etc.).


As ações civis públicas e coletivas se encaixam no enquadramento legal através do uso da legislação vigente na legitimação de suas queixas. Essas ações, por representarem infrações causadas na realidade das mais distintas pessoas, também podem contribuir para a adequação do cenário legal, modificando as bases de novas argumentações e flexibilizando suas possibilidades. Isso é de extrema importância, visto que a legislação vigente, por mais complexa que seja, muitas vezes não é suficiente para solucionar os conflitos existentes nos contextos diversos do Brasil, enquanto país diverso e desigual.


Dentre os 40 processos judiciais em análise, os principais agentes de acusação são a Defensoria Pública, o Ministério Público Federal, associações civis de menor porte, entre outras tantas defensorias estaduais e prefeituras municipais, que moveram, em sua maioria, ações civis públicas e coletivas. Os principais acusados são as empresas, com destaque para a Samarco, que aparece em todos os 40 processos, e para a Vale e a BHP Billiton. Um nome que chama atenção na lista de acusados é o da Fundação Renova, fato que evidencia a insuficiência dos primeiros acordos de conciliação assinados, que foram, inclusive, os responsáveis pela criação de tal fundação. Esses acordos já foram detalhados por outro texto aqui do site. Outros nomes que aparecem como acusados são órgãos do próprio governo. Uma observação interessante é que os processos mais recentes possuem um número mais diverso de acusados, demonstrando que, ao longo do tempo, com a complexidade do crime se tornando cada vez mais evidente, mais atores sociais foram envolvidos. Através da participação ativa, pôde-se perceber que as pessoas atingidas não estavam satisfeitas com os processos encaminhados pelas Defensorias Públicas e pelo Ministério Público Federal.

Imagem 1: A imagem apresenta os principais termos contidos na formulação das queixas nas ações públicas analisadas.
Fonte: LOSEKANN et. al. 2020.

Fazendo uma análise mais profunda de 12 desses 40 processos, foi possível entender quais eram as temáticas centrais presentes nas queixas, além de tentar compreender como era construída uma relação de complementaridade entre fatores naturais e sociais em questões centrais, consequências do rompimento.

A palavra mais citada dentre as queixas detalhadas nas ações foi “água”, um elemento essencial para a manutenção da sociedade, da economia e também, é claro, dos ecossistemas do entorno, incluindo flora, fauna, relevo etc. Esse vínculo com a água ocorre associado a diferentes fatores, seja pela proibição da pesca, pela falta de confiança nas empresas que tratam e abastecem as áreas urbanas e, ainda, pelos danos no rio em si, enquanto patrimônio natural a ser preservado pela União.

É importante deixar claro que a forte presença do termo "água" já evidencia a indispensabilidade de se trabalhar natureza e sociedade de forma conjunta. O fator água ainda gera muitos debates, já que mesmo após a publicação de relatórios e pronunciamentos acerca da potabilidade da água, a população não acredita que seja seguro continuar com o seu consumo. Isso é alimentado pelo senso comum, mas também pela falta de confiança tanto em órgãos de caráter técnico-científico como em órgãos políticos, uma vez que vários relatórios contratados pelas empresas pavimentaram a desconfiança da população.

Outro destaque em meio ao conteúdo presente nas queixas é a recorrência de questionamentos acerca do reconhecimento (identificação, quantificação, distribuição etc.) dos danos causados pelo crime. Isso aparece não somente no sentido de reparar os danos existentes, mas também de responsabilizar os culpados sobre danos, que podem ser identificados no futuro a partir de um desdobramento do rompimento da barragem de Fundão. Por fim, uma parte considerável das queixas cita o nome da Fundação Renova e suas formas de ação. Isso acontece porque a população não concorda com as ações propostas pela fundação, que é administrada e controlada por apenas uma das partes desse conflito. A preocupação sobre o papel da Renova se deu mais fortemente com relação à “definição do atingido”, ou seja, o órgão que diz quem é ou não é atingido pelo rompimento é inteiramente controlado pelas empresas criminosas. Fica óbvio que o discurso de imparcialidade da Fundação Renova não passa disso, um discurso.

Essas queixas se traduzem legalmente através do uso de diversos princípios, presentes ou não na legislação brasileira. As ações coletivas abertas procuram prevenir, minimizar e reparar os danos sofridos após o crime e possuem tendência ao uso de instrumentos legais mais amplos e flexíveis, que acabam se adequando e modificando conforme as necessidades de cada caso. Um dos princípios utilizados é o da Responsabilidade Civil que permite incluir queixas sobre várias esferas e tem o intuito de responsabilizar os sujeitos culpados, como mostrado em um exemplo, incluído nas ações, de um rompimento que aconteceu em 2007 e que havia usado esse princípio no registro de suas queixas. Outro princípio é o do Risco Integral, que responsabiliza o empreendimento poluidor pelos danos causados, sejam eles ilegais ou não, além de cobrir danos indiretos e que se desdobrem no futuro. Vale lembrar que nenhum instrumento ou princípio consegue compreender toda a multiplicidade e complexidade deste caso e, por isso, devem ser passíveis de modificação.

Os danos ambientais estavam constantemente atrelados à incapacidade de uma indenização monetária reparar efetivamente esses danos, quando o correto seria a coordenação de projetos práticos para, de fato, restabelecer a ordem dos ecossistemas. Os danos morais foram subdivididos através dos danos causados sobre as comunidades como um todo e os danos ambientais que causavam inseguranças e incertezas na população.

Através dos princípios de precaução, de reparação integral e de dignidade humana, fundamentais para toda a legislação brasileira, o enquadramento legal ambiental conseguiu englobar fatores relevantes para a disputa pelos direitos humanos. As argumentações foram delimitadas pela obrigatoriedade de pagamento pelos empreendimentos poluidores, originada na legislação internacional, que, somada ao princípio de reparação integral, compromete as empresas a pagarem por todo e qualquer dano causado, hoje e no futuro. Vale lembrar que, na prática, é quase impossível pagar por todos os danos causados pelo rompimento, embora seja algo previsto pela legislação brasileira e seus princípios fundamentais.

Imagem 2: A imagem mostra uma manifestação pública contra a assinatura de mais um acordo que reforçava a assimetria de poderes.
Fonte: Registro de Lidyane Ponciano / https://mab.org.br/2018/06/28/em-novo-acordo-sobre-crime-em-mariana-empresas-criminosas-seguem-mandando/

Os acordos assinados pelas empresas, frente aos órgãos públicos da justiça, tinham o objetivo de debater os conflitos e os manter longe de uma judicialização formalizada para que, argumentava-se, as resoluções pudessem ser alcançadas de forma mais rápida. A assimetria entre os diferentes atores desse conflito foi responsável por causar uma insatisfação popular generalizada, de um povo que não era ouvido durante a elaboração dos acordos. Isso acabou por gerar uma multiplicação de ações e processos que, por fim, resultaram em uma infinidade de ações judiciais, inclusive contra as decisões tomadas na elaboração desses acordos, como a criação da Fundação Renova, consumindo ainda mais tempo e atrasando a efetivação da justiça.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:

LOSEKANN, Cristiana; DIAS, Thais Henrique; CAMARGO, Ana Valéria Magalhães. The Rio Doce mining disaster: Legal framing in the Brazilian justice system. The Extractive Industries and Society, n. 7, p. 199 – 208, 2020.