Cenas que antecederam o desastre em Brumadinho: uma busca por respostas

Por: Diogo Parreira Lapa - 24/04/2021Orientação: Sérgio Lana Morais Revisão: Olden Hugo Silva Farias

Como uma barragem classificada como de “baixo risco” resulta em 270 vítimas fatais (11 continuam desaparecidas) e degrada quilômetros rio abaixo? E isso tudo enquanto estava desativada. Seria consequência da falta de monitoramento efetivo e de precaução por parte das mineradoras? São essas perguntas a que o texto busca responder.

O desastre ambiental causado pela mineradora Samarco S.A., no ano de 2015, foi algo sem precedentes na história do Brasil e, por isso, se tornou objeto de estudo de inúmeros pesquisadores, com uma busca por respostas sobre as causas e consequências, para que, em um futuro, situações semelhantes jamais se repitam. Com o rompimento da barragem de Fundão no município de Mariana/MG, foram liberados aproximadamente 43 milhões de m³ de lama-rejeito em um dos mais importantes rios do Brasil, o Rio Doce, afetando as comunidades que se estabeleceram próximas dele e que dependem do mesmo de alguma forma para sua subsistência e/ou para seu uso. O impacto causado foi tamanho que os rejeitos degradaram para além do ecossistema do próprio rio, atingindo o oceano Atlântico e trazendo consequências socioambientais negativas para pescadores de localidades próximas à foz do Rio Doce e ameaçando santuários de preservação da vida marinha (Parque Nacional Marinho dos Abrolhos). É necessário evidenciar que, devido a esse desastre, 19 vidas foram perdidas e 1 permanece desaparecida até a presente data.

Apenas 3 anos depois do crime da Samarco em Mariana, no ano de 2019, uma nova barragem, desta vez localizada em Brumadinho/MG e operada pela Vale S.A., a barragem B1 da Mina do Córrego do Feijão, se rompeu ocasionando um intenso processo de degradação socioambiental na região, destruindo tudo no caminho dos rejeitos liberados até chegar ao rio Paraopeba (importante manancial para o abastecimento de alguns municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte e afluente do rio São Francisco). Esse desastre em particular teve uma proporção espacial menor que o de Fundão em Mariana, mas resultou em perda de vidas humanas muito maior já que, infelizmente, foram contabilizadas 270 vítimas fatais pela onda de lama-rejeito proveniente da instalação (considerando que 11 vítimas continuam desaparecidas mesmo após dois anos de buscas), um número quase 15 vezes maior que o registrado no crime da Samarco. Devido a essa proporção e por ser uma espécie de reincidência em Minas Gerais, a barragem do Córrego do Feijão foi escolhida como conteúdo principal deste texto.

Pensando em esclarecer algumas das possíveis causas do rompimento e impactos gerados por ele, um grupo de pesquisadores da UNESP e de outras instituições internacionais se uniram em busca de informações sobre a barragem, iniciando as análises a partir do ano de 2011 até o ano de 2019, dias antes do rompimento. Segundo dados da Vale S.A., ainda existem em Minas Gerais 105 barragens de minério de ferro, embora algumas estejam passando por descomissionamento, que é o processo de retirar, tratar e dispor adequadamente os rejeitos. Algumas dessas estruturas representam risco em potencial para moradores de diversas regiões do Estado, sendo a maioria localizada na província geológica do Quadrilátero Ferrífero, um local marcado pela mineração desde o século XVIII, com destaque para o minério de ferro.

As barragens potencialmente mais perigosas foram construídas utilizando o método de construção denominado de alteamento a montante. Esse método é muito utilizado pela Vale e por outras mineradoras na construção de estruturas de preservação devido ao seu baixo custo, à simplicidade do licenciamento para a construção e à necessidade de diminuta área ocupada. Além disso, o próprio rejeito minerário é utilizado na construção dos diques que são edificados sobre o material que fora recentemente depositado. No entanto, estruturas edificadas com alteamento a montante são consideradas pelos pesquisadores de alto risco, porque a estabilidade da barragem tende a colapsar, uma vez que ela é desativada, devido ao fato dos rejeitos continuarem a “descer” em um movimento constante que, somado à infiltração da água e à falta de um acompanhamento sistemático, pode influenciar negativamente na eficiência estrutural do aterro. Por esse motivo, as barragens exigem um contínuo monitoramento.

Figura 1: Mapa de localização do complexo minerário em Brumadinho, que compreende a barragem do Córrego do Feijão e o Rio Paraopeba.

Fonte: L. H. Silva Rotta et al. (2020), p.3.

Logo após o encerramento da disposição de rejeitos na barragem, no ano de 2015, ocorreu uma série de avaliações positivas de consultores especializados “independentes” nesse tipo de estrutura, atestando que a mesma estava segura e adequada para ser desativada. Porém, essa situação contradiz estudos geotécnicos obtidos pelo monitoramento sistemático, conflitando com a noção inicial de que tais estruturas ficariam mais estáveis com o passar dos anos, algo que não estava acontecendo com a barragem B1 da Mina do Córrego do Feijão e que culminou no desastre em Brumadinho. Para conseguir analisar melhor a estrutura e os motivos da instabilidade, foram obtidas imagens orbitais entre os anos de 2011 a 2019, para verificar se existia alguma mudança externa à barragem que pudesse ser a causa dessa instabilidade.

As análises das imagens orbitais por meio de técnicas de sensoriamento remoto demonstraram que houve um acúmulo de água na parte superior da estrutura, água essa que chegava ao local por um evento desconhecido para além das chuvas. Com a presença dela, foi observada uma alteração no seu volume presente no topo da barragem, em alguns momentos em maior quantidade e, em outros, em menor, e isso levantou uma série de suspeitas para os pesquisadores sobre o destino dessa água. Será que ela evaporou? Ou será que realmente ela estava se infiltrando pela estrutura? Com essas indagações como referência, os autores identificaram que no ano de 2018, mais especificamente na última imagem obtida, não havia mais a presença de água no topo, pois ela havia se infiltrado em sua totalidade para o interior da estrutura.

Segundo os autores do artigo, essa infiltração da água culminou na erosão da barragem de dentro para fora, devido a um processo geológico conhecido como “piping”, que é basicamente a formação de pequenos canais dentro da barragem ou em estruturas semelhantes que favorecem a erosão causada pela água, afinal, a lama originada dos rejeitos de mineração não tem a heterogeneidade como característica, possuindo componentes diferentes e com diferentes tamanhos, ficando, dessa forma, mais propícios à remoção do material. Finalmente, os autores concluíram que a estrutura também sofreu alterações físicas antes do rompimento, que foram identificadas por meio do uso de imagens de satélite e que evidenciaram uma alteração de aproximadamente 25 centímetros para “fora” do maciço, indicando uma dilatação da mesma internamente devido à saturação (processo em que há uma grande quantidade de água no material) causado por um fenômeno conhecido como liquefação, isto é, quando os materiais sólidos perdem sua resistência mecânica e apresentam um comportamento fluidal, que resultou no catastrófico colapso estrutural.

Figura 2: mostra Linha do tempo elaborada a partir de imagens orbitais entre 2011 e 2018 evidenciando a infiltração de água represada. Segundo os autores, tal dinâmica parece ter contribuído para a remoção de material sólido do interior da barragem.

Fonte: L. H. Silva Rotta et al. (2020), p.7.

Dando sequência às análises, os autores também analisaram a quantidade de cobertura vegetal que existia na região diretamente afetada pelo rompimento, em um comparativo realizado entre o pré e o pós-rompimento. Essa análise em particular mostrou que houve uma redução de quase 50% de área vegetada, causando perdas à biodiversidade local. Foi discutido também que, após o desastre, as condições de vida da população local foram de sobremaneira alteradas, devido à perda dos meios de subsistência, tais como as áreas destinadas à agricultura que tiveram o solo contaminado, além da própria pesca que foi impossibilitada devido à contaminação do rio e, consequentemente, dos peixes. Outro aspecto importante a ser mencionado é que, mesmo com o uso de imagens de satélites, foi muito difícil estimar quantas edificações sucumbiram em meio ao “Mar de Lama”.

Por fim, a pesquisa avaliou ainda a quantidade de sólidos em suspensão presentes no rio Paraopeba para verificar como se deu o fluxo da lama pelo canal de drenagem. Para conseguir quantificar esse parâmetro, os autores analisaram uma determinada área entre os municípios de Brumadinho e Juatuba com uma extensão aproximada de 60 km por meio de imagens de satélites obtidas no pré e pós-rompimento. Com isso, foram encontrados, por todo o trecho, sedimentos em suspensão que vieram junto com a lama. E foi visto que, quanto mais próximo do local do rompimento, maior era a quantidade de sedimentos encontrada e que, à medida que o leito do rio se tornava mais amplo e a velocidade do fluxo da água diminuía, os sólidos em suspensão acabavam por sedimentar. Os autores alertam que a situação pode ser modificada em períodos de maiores índices pluviométricos em função da ressuspensão do material depositado no leito do Paraopeba.

Quando falamos do desastre, muitas vezes focamos no rompimento e no meio ambiente afetado, no entanto é urgente dar vez e voz aos atingidos. E, nesse aspecto, o rompimento da Barragem B-1 da Mina do Córrego do Feijão em Brumadinho, infelizmente, se destaca pela área atingida (10 quilômetros completamente degradados entre o Córrego Ferro-Carvão e uma parte do Rio Paraopeba) e pela quantidade de vidas que foram tomadas pela onda de lama. Isso tudo, somado, trouxe consequências inimagináveis para muitas famílias, que perderam entes queridos, os seus meios de subsistência e os seus lugares de vivência, que agora, mesmo após a remoção da lama, possivelmente não retornarão ao normal pelo fato de a água e dos solos estarem contaminados.

Quando somados todos esses efeitos gerados pelo rompimento, enxergamos que o despreparo na desativação da barragem, com um monitoramento ineficaz da infiltração da água, produziu um efeito que, além das perdas humanas, desencadeou danos psicológicos nos sobreviventes do rompimento devido ao trauma a que foram expostos e causou significativa degradação no ambiente local. Isso reforça a ideia de que, para as grandes empresas, o lucro vale mais que a vida. Os estudos realizados comprovaram que houve falha no monitoramento da barragem por parte da mineradora, e podemos concluir que a negligência humana desencadeou todo o evento. Dessa forma, esperamos que os recentes desastres em Minas Gerais contribuam para a consolidação de uma cultura de valorização da vida das comunidades que habitam o entorno dessas estruturas e que novas falhas não se repitam em nenhum outro local.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:

ROTTA, Luiz Henrique Silva; ALCÂNTARA, Enner; PARK, Edward; NEGRI, Rogério Galante; LIN, Yunung Nina; BERNARDO, Nariane; MENDES, Tatiana Sussel Gonçalves; SOUZA FILHO, Carlos Roberto. The 2019 Brumadinho tailings dam collapse: possible cause and impacts of the worst human and environmental disaster in brazil. International Journal Of Applied Earth Observation And Geoinformation, [S.L.], v. 90, ago. 2020. Elsevier BV. http://dx.doi.org/10.1016/j.jag.2020.102119.