Desastre após desastre, as posturas da Vale não mudam

O que precisa mudar para que os funcionários da Vale percebam os riscos operacionais de suas barragens – um problema individual ou estrutural?

Acompanhando o aumento na demanda global por metais em diversos setores de produção e construção, as empresas minerárias tendem a procurar novos espaços para a extração de minérios. Essa procura, muitas vezes, acaba sobrecarregando as infraestruturas já existentes na busca por uma maior produtividade. Ter esse lucrativo aumento de produtividade como meta pode gerar uma concentração de esforços administrativos voltados a esse objetivo central, enquanto outras questões inerentes ao processo de extração, principalmente aos riscos que envolvem uma maior pressão sobre a produção, permanecem em segundo plano. No meio disso, a proteção social e ambiental dos espaços ocupados por esses grandes empreendimentos torna-se uma preocupação ainda menor.

Tais fatores estão diretamente relacionados à ocorrência de desastres, na medida em que, enquanto as equipes de engenharia e administração se voltam para o crescimento da lucratividade, uma série de erros são cometidos e falhas fatais acontecem. Pensando nisso, uma parceria entre pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo e da Universidade Federal Fluminense se formou para entender a situação ao redor do desastre ocorrido em Brumadinho no ano de 2019. Os pesquisadores procuravam entender possíveis mudanças de comportamento da empresa após o rompimento da barragem em Mariana, em 2015, visto que parte de suas estruturas administrativas internas foram modificadas. Além disso, investigaram como diferentes percepções de risco podem influenciar diferentes formas de lidar com a segurança da barragem, do meio ambiente e das comunidades próximas à área de mineração.

A partir daí, o objetivo central da pesquisa foi entender por que a Vale não conseguiu perceber os riscos iminentes de rompimento e, assim, trabalhar para impedir sua concretização, mesmo após a movimentação social e midiática derivada do rompimento da barragem em Mariana, poucos anos antes. Para isso, foram propostas revisões de bibliografia sobre o assunto e de documentos relacionados à empresa antes e depois do rompimento, entre os quais: relatórios gerais e de sustentabilidade entre 2015 e 2019; apresentações de executivos da Vale a investidores, no mesmo período; e o texto das investigações acerca do rompimento em Brumadinho, já em 2019.

A literatura que trata sobre o conceito de risco aponta que é arriscado considerar apenas uma ou outra concepção deste termo, visto que a realidade é composta por diversos elementos e que, dependendo da magnitude de um desastre, vários deles podem ser afetados. Por exemplo, não podemos considerar apenas o risco ambiental e esquecer o risco social ou, então, lembrar dos riscos financeiros e ignorar os limites da tecnologia utilizada. Assim, considerar uma e não outras formas de risco é ignorar a potencialidade de destruição da atividade em questão e suas reais consequências para a região em que atua.

Entretanto, a ideologia que tem prevalecido em meio às grandes corporações prioriza a garantia do lucro e da segurança de investimento de seus acionistas – estratégia que tende a atrair cada vez mais investimento para as empresas – enquanto o ganho social é percebido não como objetivo, mas como consequência do ganho econômico. Ou seja, quando as empresas "administram o risco" elas estão garantindo a segurança de suas ações e de seus investidores e apenas gerenciando o risco de um potencial rompimento de barragem. Geralmente, quando se referem ao risco social acabam se limitando a organizar reuniões com a população local, antes da construção dos empreendimentos, onde pedem a aprovação de comunidades que não possuem os meios para realmente compreender esses riscos e são convencidas por uma promessa de maior oferta de emprego e melhora de vida.

Figura 1: a imagem de satélite acima, antes do rompimento, apresenta a área ocupada pela lama da barragem, em vermelho. Os pontos amarelos são as construções da própria Vale e os pontos verdes são casas. Fonte: ATIF et. al., 2020

Ao longo da análise dos documentos citados anteriormente, alguns trechos chamaram atenção por fazerem referência a riscos, segurança e estabilidade. O primeiro apresenta o risco de queda dos preços no mercado global, em um período de desvalorização do Real e baixa nos preços do minério. As apresentações dos executivos da Vale frente aos possíveis investidores procuravam reforçar a busca de estabilidade e segurança financeira pela empresa, em prol de diminuir os riscos monetários - não citam a segurança e a estabilidade das barragens ou riscos operacionais. Já o segundo ponto de destaque fazia referência ao risco de interferência do Estado brasileiro, algo cada vez menos provável, uma vez que, em 2017, a Vale propôs uma votação entre seus acionistas que resultou numa menor participação da esfera pública no funcionamento interno da empresa. O terceiro trecho falava de fato sobre a segurança das barragens, mas apontava o rompimento em Mariana como um caso único e sem possibilidade de se repetir. A crença de que o desastre de 2015 havia sido um acontecimento isolado contribuiu para a estagnação das políticas de segurança internas, sendo que as únicas mudanças postas em prática foram consequência de imposições da Agência Nacional de Mineração.

O último ponto de destaque faz referência às divergências na percepção de risco dos profissionais da Vale e de especialistas externos. Os depoimentos recolhidos através das investigações sobre o rompimento tornam evidente que a equipe da mineradora confiava cegamente na infraestrutura das barragens e na ideologia da empresa. Essa fé na empresa era tão intensa que os profissionais deixavam de lado seu conhecimento técnico e suas percepções mais racionais sobre a barragem e a conduta geral da Vale. Assim, entende-se que mesmo após o rompimento em Mariana, a equipe de engenheiros não enxergava quaisquer problemas na localização das instalações do complexo, logo abaixo da barragem, apesar do avanço nos debates entre especialistas no meio acadêmico acerca do fenômeno de liquefação, dificilmente previsível. Além disso, é importante recordar que a primeira empresa contratada para assinar o relatório de segurança da barragem rompida em 2019, a Tractebel, atestou que o fator de segurança mínimo não havia sido alcançado e, por isso, não o assinou, enquanto a Vale optou por contratar outra empresa que considerasse um menor fator de segurança mínimo, a Tüv Süd.

Com o andamento das investigações, concluíram que as condições de segurança e as medidas preventivas tomadas pela Vale frente aos possíveis riscos operacionais eram insuficientes ou inadequadas. O rompimento foi considerado como o resultado de uma omissão consciente e involuntária dos engenheiros e executivos da empresa, sem considerar os efeitos da ideologia da empresa sobre a racionalidade de seus funcionários, uma vez que eles deveriam possuir os conhecimentos técnicos para perceber os riscos operacionais. Fica evidente que quando as prioridades das grandes corporações são a maximização de lucros e a proteção de seus acionistas, riscos socioambientais próprios do funcionamento da barragem são postos em segundo plano e pouco considerados no planejamento da empresa.

A prisão de alguns funcionários mostra que o poder público não alcançou o centro da questão: as percepções de risco restritas e enviesadas da Vale. A priorização sistemática do lucro como principal ideologia pode transformar a mentalidade dos profissionais, que acabam ficando cegos para as problemáticas da corporação em que trabalham. Esse tópico de debate está longe de ser concluído. Há aqueles que entendem como os funcionários podem ter sua racionalidade limitada pela cultura da Vale. Ao mesmo tempo, há quem defenda que o conhecimento técnico dos engenheiros contratados deveria ter sido utilizado para criticar e transformar o comportamento da mineradora frente aos riscos socioambientais. Os enquadramentos legais do país também podem ser transformados para que busquem uma transformação do setor produtivo brasileiro, onde todos os grandes empreendimentos priorizem seus riscos operacionais e não os riscos financeiros, objetivando uma sociedade mais consciente e justa.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:

SAES, Beatriz Macchione; MURADIAN, Roldan. What misguides environmental risk perception in corporations? Explaining the failure of Vale to prevent the two largest mining disasters in Brazil. Resources Policy, 72. 2021.