Se até direitos humanos são negados, como ter esperança?

Por: Diogo Parreira Lapa - 10/09/2021Orientação: Wagner Barbosa Batella

A contaminação da água que ocorreu no Córrego do Ferro-Carvão violou um dos mais fundamentais direitos inerentes ao homem, o direito à água de qualidade.

No mundo de hoje, a comercialização de produtos de origem agropecuária ou de extração mineral, em estado bruto ou pequeno grau de industrialização (as commodities) é necessária para a dinâmica econômica global. Dentre esses, temos os minerais representando uma parcela considerável dessa classe. No contexto do Brasil, eles ocupam o terceiro lugar na listagem dos mais vendidos, representando boa parte do dinheiro arrecadado com as vendas no país. A mineração é um dos setores que mais utiliza recursos naturais e ao mesmo tempo um dos que menos se preocupa com o tratamento e limpeza desses recursos. Assim é feito no caso da água, que após ser utilizada é despejada no ecossistema já contaminada e assim imprópria para o consumo humano ou animal. Devemos lembrar que as mineradoras utilizam grandes volumes de água, o que pode desequilibrar todo o ecossistema local, afetando o abastecimento de comunidades que dependem daquela fonte d'água, mesmo sem a ocorrência de desastres.

No ano de 2019 em Minas Gerais, ocorreu o rompimento da barragem do Córrego do Feijão em Brumadinho, que causou 270 mortes, liberou 13 milhões de m³ de rejeitos no ecossistema local e destruiu 10km do córrego do Ferro-Carvão até atingir o rio Paraopeba. Esse crime ambiental foi o gatilho para que pesquisadores do Instituto René-Rachou (FIOCRUZ-MG) refletissem sobre como as mineradoras afetam o consumo e utilização da água pela população, mesmo levando em conta situações de “não desastre”.

No Brasil, o monitoramento das barragens de rejeito de mineração é de responsabilidade da própria mineradora, que contrata uma empresa para realizá-lo. Se estivéssemos em um contexto onde as mineradoras têm sua gestão centrada no bem estar geral e não no lucro, essa atitude poderia ser interessante para todos, mas infelizmente isso não acontece. A falta de uma gestão apropriada acaba expondo a população a diversos riscos na construção da estrutura e na operação da mesma. Isso é ainda mais latente em Minas Gerais, onde, apesar de ter vivenciado desastres de grandes proporções, a legislação ambiental estadual vem sendo flexibilizada nos últimos anos, resultando na fragilização da fiscalização das mineradoras por parte do estado.

Imagem 1: Trajeto do rejeito desde a barragem até chegar no rio Paraopeba. A imagem ilustra a área afetada (em vermelho) para que possamos compreender melhor a proporção do desastre dentro da região do córrego Ferro-Carvão. Fonte: G1

O resultado dessa fragilização se manifestou em Brumadinho com o rompimento de uma barragem que estava inativa a alguns anos, mas que não tinha monitoramento adequado. Uma das consequências desse desastre foi que diversas comunidades tiveram sua fonte de água afetada pelos rejeitos. Esse caos causado pelo rompimento, fere um dos direitos essenciais ao ser humano: o Direito Humano à Água (DHA). O Direito Humano à Água foi definido pela ONU em 2010 e se apoia nos direitos de acesso à água e ao saneamento básico, defendendo que, mesmo com todo o apelo econômico por parte de empresas e afins, a qualidade da água deve ser mantida sempre pensando naqueles que dela sobrevivem.

Após a ONU ter reconhecido o Direito Humano à Água como sendo algo essencial e destinado para todos, passou a ser responsabilidade do Estado, enquanto instituição máxima, zelar por isso, e garantir que todos estejam tendo acesso à água. Esse marco se tornou uma importante ferramenta para referenciar e regulamentar o uso da água pelo mundo. Porém, na realidade, o uso indiscriminado da água ainda ocorre, principalmente junto às indústrias de base, que são as que tradicionalmente utilizam mais água (em conjunto com a agricultura), e isso ocorre devido às ‘facilidades’ para instalação de empresas dadas pelo governo, algo típico dos países em desenvolvimento para aumentar a capacidade de atrair essas empresas.

Isso reflete a inconsistência das leis brasileiras, que sempre se moldam em uma tentativa de beneficiar aqueles que possuem maiores riquezas e posses, sendo inclusive capaz de dificultar a culpabilização destes em eventuais crimes que venham a ocorrer. Essa impunidade reforça a desigualdade social, fazendo com que a população pague pelos erros cometidos por outros que nem diretamente afetados são.

Imagem 2: Retrato da água do rio Paraopeba no ano de 2020, mostrando a alteração de cor que ainda persiste em marcar presença na vida das pessoas da região. Fonte: Raquel Freitas/G1

Logo após o rompimento da barragem da Vale, as autoridades estaduais e federais indicaram que a água tanto do ribeirão Ferro-Carvão quanto do rio Paraopeba não eram indicadas para o consumo humano, animal ou para plantio. Assim, o rompimento colocou em xeque o Direito Humano à Água não só em Brumadinho, mas em outros 21 municípios que estão ao longo de 356 km de rios. Na época do rompimento, estudos também indicavam que apenas um pequeno contato com a lama já poderia levar a problemas de saúde em seres humanos adultos e que já estavam sendo vistas anomalias em peixes nativos da região.

As consequências do rompimento trouxeram desdobramentos jamais esperados para a os atingidos, em um cenário de extrema injustiça social. A população fica de fora das discussões sobre esses empreendimentos, nas quais deveria ser necessária a presença popular para que tais riscos e formas de mitigá-los sejam explanados. Dessa forma, a população teria o controle do seu direito à água, para se posicionar e decidir se quer ou não correr riscos a respeito dele, democratizando o debate a respeito da gestão das águas. Em suma, é necessário desconstruir o sistema vigente e gerar um debate crítico com o objetivo de democratizar a gestão, a regulação e a criação de políticas públicas que possam garantir o acesso à água não só durante a operação da empresa, mas também em situações de desastres tecnológicos.

Para concluir, o Direito Humano à Água deve ser um tema amplamente discutido e difundido. A população deve ser conscientizada de seus direitos e assim garantir sua participação na tomada de decisões que podem influenciar seu futuro, para que consigam analisar junto a seus pares e decidirem se um determinado empreendimento que vai os colocar em risco é ‘aceitável’ ou não. Dessa forma, a capacitação e o fortalecimento da frente popular na tomada de decisões é de suma importância para que a população não fique à mercê de governantes e empresários e consiga fazer valer suas opiniões e direitos.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:
NEVES-SILVA, Priscila; HELLER, Léo. Rompimento da barragem em Brumadinho e o acesso à água das comunidades atingidas: um caso de direitos humanos. Ciência e Cultura, v. 72, n. 2, p. 47-50, 2020.