Um trauma que não se apaga: as estratégias usadas em Brumadinho para lidar com a saúde mental de seus habitantes

"Com a infinidade de impactos gerados por um desastre de tamanha violência, há o risco de que alguns assuntos sejam esquecidos, sobretudo aqueles menos “visíveis”. Vale perguntar: quais estratégias podem ser utilizadas para cuidar a saúde mental das pessoas que viram casas, pertences, amigos e familiares sendo arrastados pela lama?"

Entre as pesquisas produzidas acerca do crime ambiental ocorrido no município de Brumadinho, com o rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão, muito tem se falado sobre indenizações, perdas materiais e contaminação ambiental. Claro que esses são assuntos de extrema importância, fundamentais para um melhor entendimento de como as pessoas são atingidas após esse tipo de tragédia. No entanto, um fator pouco difundido e que também merece atenção é o estado de saúde mental dos moradores. Motivados por isso, diferentes pesquisadores se basearam em suas experiências com o desastre em Brumadinho para relatar como o tratamento da saúde mental foi dado à população nos meses que se seguiram ao rompimento da barragem. Para iniciar o debate, é válido lembrar que a mineração comandada pela Vale no Córrego do Feijão era a principal atividade produtiva do município, sustentando parte importante de sua economia e tendo algum tipo de relação com a maioria da população local.

Diversas questões podem influenciar a saúde mental da população local no período posterior ao rompimento, como a destruição de suas casas, ruas e praças, de seus espaços de vivência reduzidos à lama. Da mesma forma, influem negativamente a contaminação do rio, um elemento que faz parte do cotidiano dessas pessoas, a incerteza frente ao acontecido e, claro, a perda de familiares e amigos, vidas arrasadas pelo rejeito. Os impactos são diversos e levam em conta a proximidade dos indivíduos ao desastre e a influência que este teve sobre suas vidas. Vale lembrar que, além da população local, os trabalhadores e voluntários que ajudaram nos resgates, buscas e no auxílio à população, também sofrem um grande desgaste emocional e psicológico durante esse processo, por mais que eles não façam parte diretamente daquele cotidiano e do convívio das comunidades atingidas.

Devemos compreender que, com o desastre, todo o funcionamento do município foi alterado, então suas mais diversas esferas (política, econômica, cultural etc.) acabam sofrendo uma violenta ruptura. Frente a essa situação, o sistema de saúde deve se adaptar e buscar auxílio para que possa suprir as necessidades de sua população, tanto para as doenças causadas pelo contato com a lama, como para os impactos psicossociais. Com enfoque para estes últimos impactos, as estruturas de saúde devem estar cientes dos efeitos do desastre nas diferentes escalas temporais, desde horas após o acontecido até meses depois, passando pelas reações imediatas de medo, pânico e ansiedade, até os momentos de assimilação do rompimento e possíveis danos permanentes, como depressão, alcoolismo e outros transtornos comportamentais.

O quadro divulgado pelo programa Médicos sem Fronteiras nos permite entender quais são as reações esperadas em desastres dessa magnitude; desde logo após o acontecimento até meses posteriores a isso.

Para criar uma estratégia de ação, as equipes de saúde locais foram contabilizadas, resultando em 14 pontos da Estratégia Saúde da Família (ESF) e mais 22 pontos de apoio a essas ESFs. A eficiência dessa estrutura era de extrema importância, já que um dos desafios era criar um atendimento voltado para o desastre, mas sem deixar de executar seus atendimentos de rotina. Ainda existiam outros pontos, como clínicas e hospitais de menor complexidade, com destaque para a Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) que funciona 24h por dia. Nem todos esses postos de saúde possuíam uma equipe preparada para a ação no campo da saúde mental; algumas equipes mais completas chegavam a ter psiquiatras, psicólogos, fonoaudiólogos etc., mas não era um privilégio da maioria.

Assim, com base em marcos e políticas internacionais voltadas para o tratamento pós-traumático, profissionais do SUS foram sensibilizados e guiados para melhor tratar desse assunto ao atender a população, criando equipes para ajudar nos processos individuais de luto e de inserção numa nova realidade de cada morador. Os voluntários e funcionários transferidos de outras regiões foram incorporados a essas equipes, impondo uma melhor distribuição de pessoas capacitadas no assunto. Um mecanismo criado para facilitar o tratamento da saúde mental foi a organização de grupos para a troca de experiência e ferramentas socioculturais no enfrentamento dessa nova realidade do município, algo que pode ser de grande ajuda para a população.

O fortalecimento da sociedade local, na qualidade de grupo de apoio, deve ser cada vez mais buscado, mesmo em longo prazo, considerando que muitos problemas psicológicos podem não ser tão imediatos. É importante que as equipes de saúde do município de Brumadinho e sua Secretaria de Saúde incluam a análise dos aspectos culturais desses indivíduos, assim como seu papel na recuperação das esferas política e econômica, tão abaladas com o rompimento da barragem. Reforça-se o papel dos grupos de apoio e do fortalecimento social, pois o uso de remédios no tratamento dessas experiências pode ser perigoso, então seria preferível que as experiências fossem ouvidas e compartilhadas.

Foto: Adriano Machado/Reuters; fonte: https://www.huffpostbrasil.com/. Uma manifestação coletiva para a prestação de luto na cidade, processo que teve a participação de psicólogos e assistentes sociais, à procura de um ambiente de acolhimento e suporte coletivo.

A situação de Brumadinho é exemplo de como as iniciativas para o cuidado da saúde mental podem ser feitas num período pós-traumático, utilizando as equipes já atuantes no município e incluindo voluntários especializados. Não se pode dizer se essa estratégia foi capaz de acolher toda a população e diminuir os possíveis problemas psicológicos, mas é um parâmetro de como as ações foram guiadas após o desastre. Por fim, vale lembrar que, nesse caso de extrema emergência, foi o sistema de saúde pública o encarregado por suprir as necessidades da população, enquanto o sistema privado não teve qualquer ação efetiva. Isso só reforça a necessidade de valorizar as iniciativas públicas de cuidados com a saúde, já que são elas que podem socorrer comunidades que não conseguem pagar por consultas ou planos privados de saúde. Entendendo que a população mais pobre sempre será mais vulnerável aos riscos ambientais, como ocorreu no caso de Brumadinho, um sistema de saúde gratuito e de qualidade é fundamental para dar apoio a quem, de fato, precisa.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:
NOAL, D. S.; RABELO, I. V. M.; CHACHAMOVICH, E. O impacto na saúde mental dos afetados após o rompimento da barragem da Vale. Cadernos de Saúde Pública, 2019. doi: 10.1590/0102-311X00048419