Representatividade popular em meio à lama: conhecimento e posicionamento

Após o rompimento da barragem de rejeitos da Samarco, teve início um amplo e difícil movimento de negociação entre Estado, empresa e população materializado em inúmeras reuniões para definir acordos e formas de contenção dos danos. É importante refletir se houve uma participação efetiva dos atingidos nesse processo.

O rompimento da barragem da mineradora Samarco, em Mariana, liberou na calha dos rios da bacia do Doce uma onda de lama que se estendeu por aproximadamente 660 km, do interior do estado de Minas Gerais até o Oceano Atlântico. Muitos danos foram percebidos, direta e indiretamente, no próprio rio, em suas margens, na vegetação ao redor, nos animais ali presentes e nos seres humanos. A intensidade desses danos varia entre eventos leves e outros, extremamente radicais e destruidores da paisagem.


Nesse contexto de destruição e desastre, as quatro autoras do artigo “Práticas de ser, conhecer, pensar e escrever: incertezas e disputas sobre as condições das águas na foz do rio doce no pós-rompimento da barragem de rejeitos de mineração da Samarco” acompanharam três reuniões e assembleias envolvendo os atingidos, os órgãos reguladores e representantes da própria mineradora; reuniões essas que tiveram por motivo principal explicar a situação das águas e firmar um acordo entre as partes envolvidas (a população e a mineradora). Esse acompanhamento foi todo feito de forma integral, ou seja, elas estavam presentes nas três situações que foram analisadas a fundo pelo artigo, demonstrando a veracidade das informações analisadas.

Imagem: Mostra a foz do rio Doce no momento em que a lama chegou ao mar, em fevereiro de 2016, o que ocorreu no município de Regência-ES. Fonte: Cassiano De Luca / Divulgação

As interpretações das autoras consideraram o rompimento da barragem como um evento crítico, algo que tem potencial de evoluir com o tempo caso não haja uma intervenção adequada. O efeito causado pode ser entendido melhor na fala dos pescadores em uma das reuniões, em que afirmaram que a coloração da água sempre retorna ao laranja com as chuvas, mostrando que os sedimentos continuam se acumulando na região e assim sendo consumidos pelos peixes e demais animais aquáticos, o que impacta o sustento dos pescadores da região.

A primeira reunião acompanhada, ocorreu entre o comitê responsável por gerenciar o desastre na foz do Rio Doce e os pescadores locais, na qual foram expostas restrições ambientais feitas sobre a pesca na região, motivadas e embasadas em questões de saúde, como uma tentativa de prevenir uma possível contaminação via alimentação. Nesse contexto, foi mostrado que os rejeitos atingiram 20 metros de profundidade dentro d’água, o que traz um risco devido ao modelo de pesca muito praticado na região (a pesca de arrasto), que tenta capturar camarões próximos ao leito do rio. Foram discutidos também pontos sobre o auxílio que os pescadores receberiam durante o período em que não poderiam trabalhar. A principal reclamação dos pescadores era que o valor proposto não fazia jus à realidade, de forma que não supria todas as necessidades deles.

O segundo acompanhamento foi de uma assembleia muito maior que a primeira, envolvendo representantes de todas as áreas atingidas no decorrer do Rio Doce, representantes do governo e da mineradora, além de populares atingidos. Um ponto fortemente discutido foi que, na realidade, não houve um desastre ali e sim um crime de proporções inéditas no Brasil, com alegações de que a mineradora tinha conhecimento das falhas técnicas presentes no contexto da barragem, argumentos esses que são confirmados pelas análises feitas pós-rompimento. Debateu-se, ainda, o perfil das pessoas que iriam receber o auxílio da mineradora, sendo que algumas dessas pessoas, que foram atingidas indiretamente, não estavam na lista para receber o auxílio, mesmo sendo afetadas de forma tão grave quanto os que dependem diretamente dele.

Imagem: Pescadores da foz do Rio Doce em assembleia com prefeitos da região, e membros da comissão feita para buscar alternativa para as demissões em massa feitas pela Vale, buscando melhores acordos entre as partes.

Fonte: Reinaldo Carvalho / Divulgação - ALES

Na terceira reunião vemos um contexto muito parecido com o da segunda, onde um dos grandes pontos debatidos foi o acordo entre as partes (os atingidos e a mineradora), porém com a participação de um cientista representando o governo, trazendo dados sobre a composição química dos rejeitos que atingiram o rio e sobre a propagação dela no período pós-rompimento. Todas as três reuniões citadas têm uma marca em comum, o conflito entre os atingidos e a mineradora. De um lado, essas situações trazem toda a questão de vivência na região, um aspecto real sobre os efeitos do rompimento e, do outro, elas claramente transformam todo o ocorrido em números, na intenção de facilitar o processo conforme seus próprios interesses. Mas, no geral, essa dualidade nas opiniões se fez presente por todo o processo real, seja nas assembleias, reuniões, nos tribunais ou no cotidiano das pessoas.


Em todo o contexto apresentado, podemos ver a população lutando por seus direitos e defendendo a sua casa, o lugar de onde eles podiam tirar sua renda e morar tranquilamente. O fato de estarem sempre presentes indicando melhorias, opinando e participando da construção das medidas mitigadoras é um avanço, afinal eles estão vivenciando tudo e, por conhecerem como ninguém o rio e suas redondezas, são as pessoas mais indicadas para auxiliarem nesse sentido e quem de fato deve ter voz.


Apesar de tudo isso, pode-se reparar que estão sendo tomadas poucas medidas de recuperação do rio, como os monitoramentos para determinar melhor o alcance da onda de lama e seus danos, coisas essas que visam melhorar a curto/longo prazo a qualidade da vida da população ribeirinha, seja ela a que trabalha diretamente com o rio ou não. Afinal, o dano causado pode parecer irreparável, mas sempre existe uma forma de superar isso e a união entre as pessoas atingidas em busca de direitos é uma delas.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:
CREADO, Eliana Santos Junqueira; SILVA, Bianca Jesus; VICENTE, Aline Trigueiro; LEONARDO, Flávia Amboss Merçon. Práticas de ser, conhecer, pensar e escrever: incertezas e disputas sobre as condições das águas na foz do rio doce no pós-rompimento da barragem de rejeitos de mineração da Samarco. VI Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia, Campinas, v. 3, n. 3, p. 246-275, 12 nov. 2007.