Negligência: o que isso tem a ver com a mineração brasileira?

Por: Sheila Sousa de Jesus Peixoto - 16/12/2021Orientação: Alfredo Costa

É cada vez mais comum ouvirmos falar sobre desastres ambientais envolvendo rompimentos de barragem de mineração. Mas você já se perguntou por que esses casos continuam acontecendo? Por que demoramos tanto a aprender com os erros?

O número de desastres ambientais envolvendo reservatórios de rejeitos de mineração tem aumentado tanto no Brasil quanto em escala global. Desde 1986, só no Brasil, ocorreram dez colapsos de barragens, sendo que nos últimos seis anos a média foi de um colapso por ano. O Brasil é o segundo maior produtor de minérios do mundo e, por essa razão, apresenta em seu território aproximadamente seiscentas barragens de rejeito, muitas das quais com elementos tóxicos.

Figura 1: Distribuição de todas as barragens de rejeitos ao longo do território brasileiro. Pontos vermelhos: falhas em barragens de rejeitos; Pontos pretos: barragens de rejeitos. Fonte: Agência Nacional de Mineração (ANM).

Se fosse considerado um olhar puramente econômico, o Brasil estaria em uma posição de destaque no mercado global de minérios, porém esses dados são preocupantes pelo viés socioambiental. A mineração é uma atividade que traz consigo uma série de problemas ao longo de toda sua cadeia produtiva. Dentre esses, estão aqueles associados às barragens de rejeitos que, quando se rompem, geram perdas e problemas incalculáveis em curto, médio e longo prazo. Entre os problemas podem ser citados, por exemplo: a morte da biodiversidade local; a toxicidade dos corpos hídricos (água e sedimento), ou seja, o quanto os rios e riachos contaminados por rejeito podem ser prejudiciais à saúde; os problemas econômicos e sociais; o comprometimento do abastecimento das cidades; as potenciais desterritorializações - saída forçada da população atingida - ; morte de pessoas e entre outros.

É importante analisarmos o contexto da mineração no Brasil para se entender o porquê da maior frequência dos desastres ambientais relacionados a esses empreendimentos. A partir da identificação dos erros poderemos definir ações efetivas para que esse padrão não se repita. Nesse sentido, um grupo de pesquisadores brasileiros fez um levantamento sobre a temática, trazendo uma perspectiva política sobre a mineração e os problemas ambientais brasileiros. Além disso, sugeriram estratégias para que o desenvolvimento de atividades mineradoras sejam menos nocivas.

O Brasil é um dos 193 países signatários da Agenda 2030 que define dezessete Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) (Figura 02). Os ODS são um apelo à tomada de ações globais para se acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade (para mais informações acesse o site: https://www.unicef.org/brazil/objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel). A dimensão dos impactos ambientais decorrentes da mineração é tão grande que pode afetar a qualidade da água, a vida aquática, a forma como se consome e produz bens e a qualidade de vida dos trabalhadores envolvidos com a mineração. Dessa forma esses empreendimentos têm se mostrado em oposição ao desenvolvimento sustentável e para que esse quadro possa ser modificado é necessário que as mineradoras se atentem aos ODS (em especial aos objetivos: 6- Água limpa e Saneamento; 8- Trabalho Decente; 12- Consumo e produção responsáveis; 14 – Vida Abaixo da Água) e busquem aprimorar suas tecnologias, cadeia produtiva e reduzam seus impactos.

Figura 02: Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Fonte: Agenda 2030

Mesmo assumindo o compromisso com o desenvolvimento sustentável, os desastres ambientais brasileiros relacionados à mineração estão cada vez mais frequentes. O rompimento da barragem do Fundão em Mariana foi considerado um dos maiores desastres ambientais do mundo devido a grande quantidade de rejeito liberado e a consequente extensão dos impactos socioambientais. Aproximadamente três anos depois, ocorreu o rompimento da barragem do Feijão em Brumadinho, que comprometeu a bacia do rio Paraopeba. Além do despejo de 12 milhões de metros cúbicos de rejeito, 270 pessoas foram mortas e nove ainda estão desaparecidas, sendo este desastre considerado uma das piores tragédias do mundo em termos de vidas perdidas. Apesar disso, segundo os autores, pouco tem sido feito para minimizar os danos ambientais causados e prevenir futuros desastres. Por exemplo, a Fundação Renova, entidade criada pela mineradora Samarco para investigar os impactos socioambientais e propor soluções, não gerou informações e dados profundos sobre o tema.

Figura 3: Caminho dos resíduos de minério de ferro ao longo da bacia do Rio Paraopeba após o rompimento da barragem B1 no município de Brumadinho, Minas Gerais, Brasil. Fonte: Salvador et. al., 2020.

Os rompimentos das barragens em Mariana e Brumadinho não foram suficientes para gerar discussões amplas e profundas - a despeito do que é feito nas universidades - sobre os impactos causados pelo processo produtivo de minérios. As problematizações são superficiais e giram basicamente em torno do descomissionamento (desativação) das barragens. Isso acontece porque no Brasil a mineração tem força política. Embora a legislação ambiental brasileira seja considerada uma das mais avançadas do mundo, ela vem sendo enfraquecida pelos nossos poderes executivo e legislativo através da proposição de medidas que flexibilizam o licenciamento ambiental. Por exemplo, a medida provisória 790 (MP 790) em que se permite a mineração em áreas protegidas e territórios indígenas e quilombolas. A MP 790 foi colocada em prática por 120 dias e expirou em 2018. Porém, atualmente, não apenas o presidente da república, mas também outros representantes do poder legislativo são amplamente favoráveis à reedição dessa medida provisória. Se implementada ela abrirá caminhos para que a exploração de recursos naturais aconteça sem as devidas responsabilidades socioambientais, o que pode ser considerado como negligência por parte de nossos representantes políticos.

Além disso, temos os processos de redução do poder do Conselho Nacional de Meio Ambiente - CONAMA. Este é o órgão consultivo e deliberativo que existe para assessorar, estudar e propor ao Governo as direções que se devem tomar as políticas para a exploração e preservação do meio ambiente e dos recursos naturais. Com o CONAMA enfraquecido, perde-se um importante direcionador das políticas públicas.

Da mesma forma, as agências ambientais brasileiras - como o IBAMA - não conseguem fiscalizar os empreendimentos de forma adequada principalmente pelo tamanho reduzido das equipes de servidores públicos especializados, sendo que os que já exercem função estão sobrecarregados. Além disso, historicamente, percebe-se um processo de privatização dos poderes regulatórios do setor ambiental. Por exemplo, temos os processos de licenciamento, monitoramento e avaliação da recuperação ambiental que, após os desastres ambientais, passam a ser conduzidos pelas próprias empresas causadoras dos impactos, sendo inegável a existência de conflitos de interesse. Nesse sentido, os pesquisadores citam novamente, as ações da Fundação Renova. Para eles, apesar dos valores investidos, grande parte dos relatórios disponibilizados no site da fundação não trazem conteúdo profundo ou, por vezes, se parecem com propaganda para a empresa Samarco, deixando dúvidas sobre sua independência da mineradora. Isso também remete a um caráter de negligência por parte dos envolvidos.

Por fim, os pesquisadores nos levam a refletir sobre dois cenários futuros. No primeiro, o meio ambiente deve ser entendido como algo tão importante quanto a economia. Dessa forma devemos usar as lições do passado para nos aprimorarmos em busca do desenvolvimento sustentável. No segundo, a economia prevalece sobre o meio ambiente, e se foca em reduzir os custos operacionais das mineradoras mesmo que isso leve a impactos socioambientais. Ou seja, se seguirmos este segundo caminho as chances de que novos desastres aconteçam é alta.

Através da publicação científica que deu origem a esse texto, podemos perceber que, para nos alinharmos aos objetivos de desenvolvimento sustentável, é necessário o aprimoramento das ferramentas de fiscalização ambiental do governo e a garantia da sua independência com relação às empresas causadoras dos impactos/danos. Dessa forma, uma potencial negligência poderia ser sanada e os órgãos ambientais poderiam agir de forma adequada e sem a influência, neste caso, das mineradoras.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:

SALVADOR, G. N. et al. Mining activity in Brazil and negligence in action. Perspectives in Ecology and Conservation, v. 18, n. 2, p. 139-144, 2020.