Como recuperar o que pra sempre se perdeu?

Por: Diogo Parreira Lapa- 15/06/2021Orientação: Wagner Batella

O que se perde após um desastre, como ocorrido em Fundão? Algo mais importante do que pensamos: a rotina da comunidade. Mas como se dá essa relação enquanto os moradores aguardam o processo de reassentamento?

Com o rompimento da barragem de Fundão, em 2015, a população do município de Paracatu de Baixo, Minas Gerais, viu tudo que eles haviam construído em suas vidas, seus locais de trabalho e suas plantações, serem levados pela lama. Esse acontecimento traumático mudou a rotina dessas pessoas; as perdas que aconteceram foram muito além de bens materiais e deixaram cicatrizes que ainda hoje trazem dor e deixam uma sensação ruim na lembrança.

Um artigo científico de uma pesquisadora da Universidade Federal de São Carlos teve como grande motivação entender melhor qual foi o impacto do rompimento da barragem de Fundão na vida da comunidade que morava em Paracatu de Baixo, bem como as condições que se instauraram depois dele. A autora descreveu detalhadamente sua experiência com a população e com as instituições que estavam trabalhando junto aos atingidos, levando em consideração sempre o sentimento dessas pessoas que agora estão fora de sua terra, em residências oferecidas pela Renova (uma organização privada que foi formada logo após o rompimento de Fundão para gerenciar a reparação dos atingidos).

Com esse processo de mudança para uma nova localidade, ainda no município de Mariana/MG, houve uma quebra na rotina e nos costumes dos atingidos enquanto comunidade e famílias. Essa quebra na rotina fez a população perder seus hábitos de acordar e ir para a lavoura e deixar as crianças brincando “soltas” na rua. Por mais triviais que pareçam, essas atividades eram fundamentais para o senso de comunidade. Essas perdas geraram na comunidade um impacto enorme, que eles explicam “como se o tempo não passasse”. Algo oposto do que ocorre com a parte da comunidade que participa diretamente da Comissão de Atingidos, pois estes sentem-se sobrecarregados devido à quantidade de eventos e reuniões que precisam organizar e participar. Tudo isso, em uma situação de constante medo, na insegurança de que seus pleitos sejam aceitos, mas também com a possibilidade de novos rompimentos ocorrerem.

Coincidentemente, no período em que a autora chegou ao local onde as famílias ocupam, ocorreu o rompimento de outra barragem em Brumadinho, e ao observar a reação das pessoas, ela pôde ver que muitas tinham um medo anormal de serem atingidas pela lama novamente, e estavam em estado de total alerta para possíveis anormalidades na região para conseguir evitar, ou mitigar, uma possível nova tragédia na área. O novo rompimento só reforçou o assédio de pesquisadores e jornalistas à população atingida de Paracatu de Baixo. Os profissionais frequentemente chegavam com suas perguntas indelicadas, ignorando o fato do rompimento de Fundão ser um trauma ainda vívido para a população. Esse fator gerou na população uma espécie de resistência para com pesquisadores em geral. Em função disso, a comunidade se fechou “em si própria”, em uma estratégia de melhorar e aprofundar os laços ainda existentes entre si, como uma espécie de mecanismo de defesa contra essas pessoas de fora.

Mas foi só após conversar com uma funcionária do Cáritas - organização que dá assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade social - que a autora conseguiu entender essa realidade dolorosa a qual a população era exposta, e que descobriu que a postura adotada pela população vinha também de uma instrução da Renova, para conter informações sobre o andamento do reassentamento deles.

Imagem 1: Mostrando como está sendo feito o processo de reassentamento na localidade de Paracatu de Baixo, foto indica também por meio de ícones onde estarão certas estruturas // Fonte: Portal da Cidade: Mariana - Reprodução

A população convive todos os dias com uma sensação de descaso: se encontram em uma casa que não lhes pertence, sem poder manter suas tradições e perdendo vínculos sociais que antes eram muito fortes. Outro agravante era o fato de terem que passar por simulações dos planos de evacuação após rompimento, algo que apenas fez com que a população tivesse medo de que a tragédia que viveram pudesse ocorrer novamente.

Uma situação que vem continuamente incomodando a comunidade é a demora em se ter posicionamentos por parte da Renova. Também o excesso de reuniões, que tendem a se repetir sem gerar avanços, mina aos poucos a força da população. Por outro lado, a Renova se sente no direito de pressionar os populares ou de fazer questionamentos extremamente importantes em momentos inadequados apenas para jogar nos atingidos a culpa pela demora e pelo atraso nos processos. Esses são exemplos de ocorridos que geram o sentimento de insegurança na população e que acabam desgastando a fé que eles tinham em uma recuperação de suas casas e relações. Essa situação, constante de reuniões e encontros, forçou a população a se adaptar para compreender melhor o que era dito, não deixando o diálogo com a empresa apenas para a Comissão dos Atingidos. A dificuldade de diálogo com a Samarco e a Renova levou a comunidade como um todo a criar estratégias de adaptação para conseguir conviver com as frequentes reuniões, com o clima que paira pela localidade que eles ocupam atualmente e com a lentidão que a justiça conduzia o caso.

Imagem 2: Missa sendo celebrada na Capela de Santo Antônio, em Paracatu, uma das poucas construções que permaneceram de pé com o rompimento, e mesmo assim a população não sente a mesma coisa que antes, sentem falta de seus amigos e demais elementos. Fonte: Arquidiocese de Mariana - Reprodução

Existe um consenso entre a população de que não vai ser possível recuperar a vida como ela era antes do rompimento, mesmo com o retorno às suas propriedades. Isso porque a terra não é mais a mesma, e para eles a terra é o mais importante, é a sua “paixão”. As indenizações e todos os processos que tentam mitigar o que ocorreu não pagam o dano psicológico e emocional. Assim, os moradores são forçados a aprender a serem atingidos, a reivindicarem seus direitos como atingidos e não se deixarem levar pelas diversas formas de coerção que estão à disposição das mineradoras para serem usadas. Caminhando sempre alinhado ao desejo da maioria, na certeza de estarem seguindo o caminho mais adequado para todos.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:

MARCURIO, Gabriela de Paula. A rotina extraordinária da comunidade de Paracatu de Baixo (MG) após o rompimento da barragem de Fundão. Equatorial–Revista do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, v. 7, n. 13, p. 25-25, 2020.