Muito além de Mariana: o desastre ao longo do vale do rio Doce

"A barragem se rompeu. Dizem que o Rio Doce morreu. Mas quais locais foram atingidos? O rompimento da Barragem de Fundão mudou no cotidiano dos moradores da bacia do Rio Doce, mas precisamos entender que o desastre se manifesta de modo distinto em cada localidade afetada."

O dique da barragem de Fundão se rompeu, e um mar de lama passou em inúmeras cidades e áreas rurais, carregando tudo o que estava em sua frente, deixando um rastro de destruição e morte. Porém todos os holofotes estavam voltados para as cidades consideradas as “mais atingidas”: Mariana, Barra Longa e Governador Valadares. Esses municípios receberam maior atenção das mídias e, consequentemente, da Samarco. Mariana e Barra Longa, pela perda material e de vidas; Governador Valadares, por ser a maior cidade da bacia e por perder seu manancial de abastecimento hídrico. No entanto, muitas outras localidades ao longo do corredor fluvial foram também atingidas, e, de acordo com os relatos dos moradores, essas localidades foram pouco assistidas, recebendo menor (ou até nenhuma) atenção por parte dos órgãos públicos e da empresa.

Buscando compreender os danos causados pela tragédia ao longo do Rio Doce pela fala dos atingidos, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora e Universidade Federal de Minas Gerais realizaram uma expedição de campo 12 dias após o rompimento. A visita foi iniciada em Regência-ES, onde as águas do Rio Doce se encontram com o Oceano Atlântico, e percorreu rio acima até Barra Longa-MG (limite do acesso rodoviário naquele momento). A intenção da expedição era chegar a Regência antes da lama e ir subindo ao longo do Rio Doce, observando suas margens, parando em cidades atingidas para fazer coleta de água e rejeito e conversar com a população local.

Pescadores de Regência-ES auxiliando as empresas responsáveis na tentativa de contenção dos rejeitos na Foz do Rio Doce, dias após o rompimento.Fonte: FELIPPE et al (2016)

A expedição e os relatos da população deixam claro que a população não tinha e nem recebia informações confiáveis sobre o rompimento da barragem, sobre a qualidade da água e afins; que a população culpava a Samarco/Vale/BHP e os órgãos de fiscalização e controle ambiental; que a população rural atingida e de cidades menores estavam praticamente invisíveis para o poder público e para a empresa; e que pairava um sentimento de que o Rio Doce estava morto, mas ainda havia a esperança de que o poder público exigisse da Samarco a “limpeza” do rio.

O rompimento da barragem de fundão foi um grande desastre e causou muitas perdas por onde passou, porém cada cidade/localidade sentiu seus reflexos de maneiras diferentes. Uma grande tragédia que se desdobrou em vários e diferentes danos ao longo da bacia do Rio doce. Cada cidade foi afetada de uma forma, e, em cada localidade, as pessoas atingidas foram reagindo de maneiras diferentes diante da realidade apresentada naquele momento. Algumas comunidades ficaram sem o abastecimento de água, outras foram soterradas pela lama, outras tiveram suas atividades econômicas (como pesca e turismo) prejudicadas com a chegada do rejeito.

O desastre da Samarco foi divulgado amplamente pela grande mídia minutos após seu acontecimento, assim parte da população atingida recebeu as primeiras informações sobre o rompimento da barragem por meio da TV e das redes sociais. Porém, algumas dessas informações não eram confiáveis, pois a grande mídia, ao mesmo tempo que divulgava a tragédia, também tentava suavizar os danos causados pela mesma, acatando o discurso da negligente empresa. Os relatos mostram que em algumas localidades que estavam no trajeto da lama, as pessoas nem mesmo acreditavam que seriam atingidas até verem os rejeitos chegando. Isso porque a grande mídia havia divulgado que as barragens que existem ao longo do Rio Doce iriam conter os rejeitos. Havia muita coisa sendo falada, mas com o excesso de notícias havia também muita desinformação e informações desconexas, e a falta de posicionamento e de resposta imediata da Samarco e dos órgãos públicos potencializou as dúvidas e incertezas da população atingida, trazendo um sentimento de “Em que confiar?”.

A população ainda demonstrava uma grande insatisfação com o poder público, pois não parecia haver uma mobilização por parte do governo em relação aos atingidos para além de Mariana e Barra Longa. Também não agradava a população o posicionamento dos seus governantes em relação à investigação do desastre e à ineficiência do Estado em fiscalizar e punir os culpados, evidentemente a Samarco/Vale/BH.

Para além dos danos materiais observados, havia também uma discrepância no trato e na assistência dada à população atingida. Algumas localidades receberam mais atenção por estarem com todos os holofotes voltados para elas. A Samarco e os órgãos públicos precisavam mostrar para o Brasil e para o mundo que estavam trabalhando e dando assistência àqueles que foram fortemente atingidos com o rompimento da barragem. Isso era notório dentro de um mesmo município; em Barra Longa, por exemplo, enquanto a área urbana recebia atenção e auxílio do Estado, da empresa e de ONGs, na área rural, moradores e pequenos produtores rurais ficaram sem água e sem recursos para manter seus animais e a sua produção agrícola. Esse cenário se repetiu ao longo do corredor hídrico fazendo com que pescadores, sitiantes e pequenos produtores rurais não tivessem mais de onde tirar seu sustento, pois o rio estava contaminado com os rejeitos.

Mapa da Bacia do Rio Doce com algumas das localidades visitadas pela expedição.Fonte: FELIPPE et al (2016).

Os desdobramentos e danos da tragédia do rompimento da barragem de Fundão teve grande repercussão mundial e ficou marcado com um dos grandes crimes socioambientais da história, mas a realidade é que para a população atingida não foi apenas uma “tragédia”, um “desastre” ou um “crime”, foi o fim de todo um modo de vida, com a perda de familiares, de animais, de bens materiais e a perda do rio que fazia parte de seus cotidianos. Mas ainda assim, havia pessoas que mostravam ter esperanças de que suas vidas e o rio voltassem ao normal, esperanças de que o estado exigisse da Samarco a recuperação do Rio Doce, que naquele momento estava morto, cheio de “veneno” (termo usado por morador de Periquito-MG). Foi uma grande tragédia que se desmembrou em vários desastres, cada cidade e comunidade atingida foi afetada de uma maneira, cada pessoa atingida viveu e sentiu esse crime de uma forma, e nem todas essas localidades e pessoas tiveram suas vozes ouvidas.

As histórias contadas e os relatos ouvidos nessa expedição trazem que um só acontecimento pode apresentar as mais diversas versões e visões, que pessoas da mesma localidade podem ter sentimentos e impressões diferentes. Fica evidente, então, que, para solucionar e compreender quais foram os danos causados por uma tragédia, é necessário, antes de mais nada, ouvir quem foi atingido.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:
FELIPPE, Miguel Fernandes; COSTA, Alfredo; FRANCO, Roberto; MATOS, Ralfo (2016). A tragédia do Rio Doce: A lama, o povo e a água. Relatório de Campo e Interpretações preliminares Sobre as Consequências do Rompimento da Barragem de Rejeitos de Fundão (Samarco/Vale/Bhp). Revista Geografias, p. 63-94, 2016.