Os “sem rio”

A atividade mineradora atua nos territórios impondo sua lógica de produção e ignorando os modos de vida das populações tradicionais, gerando uma intensificação dos conflitos territoriais.

A atividade mineradora no Brasil sempre foi cercada de conflitos, pois ela “toma” várias áreas e impõe a sua lógica nesses territórios, modificando totalmente as paisagens e interferindo diretamente na vida das populações que habitam esses locais. Porém, essa é uma atividade importante para o setor econômico do país e tem forte apoio das instituições públicas. Pensando nisso, uma pesquisa da UNB (Universidade de Brasília), buscou investigar quais eram os principais conflitos relacionados às populações que foram atingidas pelo desastre que assolou toda a bacia do rio Doce.

Para entendermos esses conflitos, precisamos conhecer o conceito de território, que está fortemente relacionado com a noção de poder. É possível entender o território como uma arena em que há diversas disputas históricas e relações de conflito e compartilhamento entre a população, economia (grandes empresas) e política (o governo).

Na bacia do rio Doce, as populações tradicionais desenvolveram uma relação histórica com o rio e se enraizaram em diversos territórios. Por outro lado, a mineração no Quadrilátero Ferrífero começa no século XVII, e, no século XX, espalha sua rede produtiva para diversos pontos da bacia do rio Doce, com destaque para o “Vale do Aço”. O estabelecimento de grandes corporações (como as mineradoras) e suas atividades, que impõem suas “regras” e acabam por deixar em segundo plano as comunidades tradicionais da região, alterando completamente o modo de vida dessas pessoas. Então, novas formas de existência e relações no território são criadas a partir da atividade mineradora. Percebemos, então, que a formação territorial da bacia do rio Doce é resultado de um processo histórico, dos conflitos e acontecimentos que ocorreram ao longo do tempo.

É importante que saibamos que as relações entre a atividade mineradora e a população são muito complicadas. As partes mais frágeis acabam por renunciar seu território para as partes mais fortes, tornando-se reféns das grandes corporações. Isso é agravado pela falta de preocupação do poder público em envolver nas discussões sobre a atividade as populações vizinhas das mineradoras, já que serão atingidas pelas escolhas e ações do empreendimento. O nome que damos para isso é Fascismo Territorial, ou seja, a negligência da opinião dos moradores, ocultada pela força política e econômica que as grandes mineradoras têm, pois elas financiam campanhas políticas, o que acaba lhes assegurando vantagens e representação dentro do governo.

Ainda há outro fator que torna mais complexas as relações entre a mineradora e a população, que é o fato de parte da população estar integrada às atividades realizadas por essa empresa. Ou seja, parte dessas pessoas trabalham direta ou indiretamente na mineração. Isso acirra ainda mais os conflitos, pois ele é reforçado pelos próprios habitantes. Isso explica, por exemplo, por que em Mariana há aqueles que defendem a suspensão das atividades da Samarco (empresa responsável pela barragem que rompeu), mas também há aqueles que acreditam que isso apenas contribui para que os prejuízos sejam ainda maiores (pelo desemprego e estagnação econômica). Assim, parte da população fica subordinada ao empreendimento e o governo contribui com isso por meio de políticas públicas e leis.

Outra situação que não pode ser desprezada é como foi comprometida a história dos locais atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, o que influencia na perda da identificação do território pela população atingida. Os danos imateriais (inclusive emocionais) vêm da relação histórica com o território, já que as comunidades próximas à barragem possuíam cerca de 300 anos de existência.

Figura 1: Essa foto mostra o assoalho da capela de São Bento, em Bento Rodrigues, que tinha um importante papel cultural para a comunidade e valor histórico. E foi destruída em minutos pela lama da barragem. Fonte: NETO, 2020.

Tudo isso vêm à tona quando se conversa com os atingidos pelo rompimento da barragem da Samarco. Para quem vivia em uma relação íntima com o rio Doce, o derrame dos rejeitos os transformou nos “sem rio”. De acordo com o observado em entrevistas com as lideranças locais, um dos fatores que reforçam a desconfiança é o fato de que as cidades maiores têm recebido mais atenção do poder público e que pequenas comunidades (sobretudo a população rural) estão sendo deixadas de lado. Outra grande preocupação é que, com as trocas de governos e de equipes técnicas, as ações para a reparação de danos se demorem ainda mais.

Assim, há o medo do apagamento de localidades como Regência e Povoação (no Espírito Santo), que são habitadas por comunidades tradicionais de ribeirinhos e pescadores. A proibição da pesca prejudicou a economia de toda a população ribeirinha do rio Doce que realizava essa atividade. Esse receio é ressaltado pela mídia que se esquece desses territórios e chama o episódio de “Desastre de Mariana” e “Desastre da Samarco”.

Contudo, mesmo entre os chamados “sem rio”, permanece um sentimento de esperança, fundamentado em iniciativas independentes de saídas da crise. Para além do governo e das mineradoras, organizações civis e movimentos sociais têm ajudado as pessoas a encontrarem alternativas para retomar a economia. Sabemos que as indenizações nunca serão o suficiente para curar a ferida deixada naqueles que dependiam do rio Doce e tiveram a vida comprometida pela lama, porém a população não desistiu de criar uma nova relação com esse território, mesmo com as limitações que foram impostas.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:

ROCHA NETO, João Mendes da. OS "SEM RIO": populações desterritorializadas pelo desastre ambiental de Mariana. Revista Cerrados, Montes Claros, v. 18, n. 2, p. 152-182, jun. 2020.