A falta de governança das águas e o desastre na bacia do rio Doce: um plano de sociedade ou uma oportunidade para engrandecer o capital privado?

Quem está cuidando do Rio Doce após o rompimento da barragem de Fundão? Em um cenário político de assimetria de poderes e concessões a empresas privadas para explorar o território do país, falta um plano democrático e popular para pensar na recuperação dos danos ambientais e sociais do crime da Samarco.

Existe governança das águas no Brasil? Indo mais além, podemos falar em governança dos desastres tecnológicos da mineração em Minas Gerais? Não é novidade para ninguém que vivemos em uma sociedade extremamente desigual, na qual o dinheiro (e, consequentemente, o poder) está na mão de um pequeno grupo de pessoas representado por grandes corporações empresariais. Mas o que isso tem a ver com a recuperação ambiental e reestruturação social da bacia do Rio Doce?

Fotografia aérea da comunidade de Bento Rodrigues após o rompimento da Barragem. Fonte: Pinto-Coelho, 2015.

O conceito de governança é aqui fundamental. Ele se refere a um conjunto de ações políticas que visa ao melhor uso, à conservação e à distribuição das águas sem priorizar os fatores econômicos ou políticos em detrimento dos sociais e ambientais. Dessa forma, quando falamos em governança, falamos em decisões democráticas, participativas e, assim, não excludentes. A governança das águas possui grande importância, já que trata de um recurso de primeira necessidade para mover os mais variados setores da sociedade. Usa as noções de regulação e fiscalização, principalmente quando esse recurso comporta os interesses das grandes empresas, como é o caso da Samarco. Esse conceito se difere de “governo”, visto que este segundo comumente é relacionado à figura política que é eleita, o governante, com seus interesses partidários específicos e que se modificam durante cada mandato, sem necessariamente manter um dever social e de diminuição das desigualdades do país.

Tendo a governança das águas na bacia do Rio Doce após o rompimento da barragem de Fundão como foco, o estudo do Laboratório de Gestão Ambiental de Reservatórios da Universidade Federal de Minas Gerais nos ajuda a entender as possibilidades e impossibilidades de recuperação das águas na bacia. O trabalho publicado logo após o desastre utilizou dados secundários fornecidos por diversas fontes (sobretudo estatais). Ele procura entender os processos que envolveram a dispersão da lama e seus efeitos, esclarecendo também o contexto político e econômico no qual o desastre se processa. Também nos mostra que precisamos refletir quais eram os maiores interessados na mineração e no Rio Doce, e de que forma a governança das águas deixou de ser eficaz contra os interesses econômicos sem medida e excludentes.

Para compreendermos de uma forma mais próxima o crime, é preciso explicar de que maneira o desastre afeta diferentes trechos do rio. Os impactos não ocorreram da mesma forma em toda a bacia do Rio Doce. Enquanto nas áreas mais próximas da barragem a lama destruiu comunidades inteiras, em áreas mais distantes os impactos se relacionam mais fortemente com a qualidade da água e com a sobrevivência de animais e plantas. Não podemos esquecer também que em toda a área danos econômicos e sociais (materiais e imateriais) foram muito relevantes com a alteração dos modos de vida da população. Nesse ponto, é importante lembrarmos a importância do conceito de bacia hidrográfica e entendermos que fenômenos que acontecem nas áreas mais altas têm consequências sobre as áreas mais baixas.

Alguns dos danos causados às águas dos rios podem ser vistos a olho nu, mas outros precisam de análises laboratoriais para serem entendidos, já que os rejeitos da mineração são compostos por partículas de diversos tipos e tamanhos que não podem ser diferenciados nem vistos sem equipamentos específicos. Essa necessidade fica ainda mais evidente quando se fala em qualidade da água, principalmente se estiver relacionada ao consumo em atividades humanas. Em diversos pontos do rio, onde amostras de água foram coletadas depois da tragédia, foram encontradas substâncias químicas tóxicas à saúde (elementos como Manganês, Alumínio, Chumbo e outros), ultrapassando os limites de concentração permitidos pelas leis vigentes.

Um dos impactos do rompimento de Fundão que mais chama atenção de leigos e cientistas é a turbidez da água, que está relacionada à presença de partículas finas em suspensão nos rios. Sua influência para animais e plantas é severa. Na água turva, a luminosidade que entra é reduzida, e os processos de alimentação vegetal, responsáveis pela oxigenação da água e pela geração da energia das plantas, acabam sendo interrompidos. Com a diminuição do oxigênio na água, os peixes têm dificuldade para sobreviver, o que pode afetar toda a cadeia alimentar local e a subsistência das famílias que vivem da pesca.

Fica claro, então, que as águas dos rios estão impactadas e podem prejudicar toda a fauna e flora local, causando problemas sociais e econômicos, além de poder acarretar danos à saúde da população. A grande questão então é: como resolver o problema? A solução está para além da qualidade de água, ela se encontra na esfera política.

Vale propor uma reflexão acerca da governança das águas no Brasil, que deveria aliar as esferas econômica, social, política e ambiental; um sistema que deveria ser unificado frente às diversas escalas de poder. Isso favoreceria uma construção democrática das decisões e a universalização do acesso a esse bem. Em outras palavras, quem deve idealizar e decidir sobre as ações a serem tomadas na recuperação do Rio Doce são aqueles que mais o conhecem: os atingidos. Por esse motivo, é importante a existência de um plano de gestão das águas que favoreça a qualidade ambiental e os interesses da população como um todo e não de uma ideologia partidária que se alia aos interesses do capital, tanto nacional como internacional. Quando observamos o que tem sido feito no Rio Doce, fica claro que os objetivos de uma boa governança não têm sido alcançados, assim como em outros rompimentos de barragens, como em Itabirito-MG em 2014 e Brumadinho-MG em 2019, uma vez que a pressão do capital privado sobre o poder público e a sociedade é cada vez mais intensa.

Na imagem de satélite é possível localizar o complexo minerário de Germano, onde fica a barragem de Fundão. Também pode-se ver o subdistrito de Bento Rodrigues, o povoado mais atingido pela lama e o trajeto que esta teria percorrido rio abaixo. Fonte: Pinto-Coelho, 2015.

No caso do Rio Doce, a falta de governança se materializa principalmente pela não fiscalização do governo sobre a infraestrutura da mineradora e pela ausência de grupos minoritários na gestão local dos recursos hídricos. O primeiro ponto fica claro exatamente pelo rompimento em si, porque as estruturas administradas pela Samarco não estavam suficientemente seguras para operarem normalmente; a falta de fiscalização ou a omissão de denúncias é sinal de que os interesses de lucro da empresa estavam acima da segurança da população frente às ações do governo, o que também poderia sinalizar para interesses políticos do próprio governo envolvendo o lucro da empresa. O segundo ponto resume a importância de uma gestão participativa em casos como este, já que a população que tinha contato diário com o rio e depende dele até hoje para o abastecimento de suas cidades deveria direcionar as ações de recuperação ambiental, o que não vem acontecendo. A “participação” que tem sido proposta no pós-rompimento não é satisfatória. Mesmo sendo vítima desse enorme crime ambiental, a população atingida ainda não tem voz, fato que se confirma com a criação da Fundação Renova que, com o objetivo de manter a comunicação entre a Samarco e o Governo Federal, acaba excluindo os atingidos de uma participação efetiva nas decisões.

Por fim, é necessário citar a falta de uma noção de “bacia hidrográfica” na gestão das águas do Rio Doce, imprescindível sempre, sobretudo em casos como este. Cidades distantes são afetadas por irresponsabilidades propagadas nas áreas mais altas da bacia sem nem mesmo saber que estavam “no caminho da lama”. Uma falha infantil que fere o caráter integrador da governança das águas e nos explica por que ainda estamos muito longe de qualquer solução.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:
PINTO-COELHO, Ricardo Motta. Existe governança das águas no Brasil? Estudo de caso: O rompimento da Barragem de Fundão, Mariana (MG). Arquivos do Museu de História Natural e Jardim Botânico – UFMG, v.24, n.1. Belo Horizonte, 2015.