O rompimento da barragem de Fundão e as assimetrias perante a lei

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade...” Art. 5º da Constituição do Brasil de 1988.

Uma equipe de pesquisadores associados ao Centro de Direitos Humanos e Empresas da Universidade Federal de Juiz de Fora (Homa) foi motivada a avaliar e entender um pouco melhor como o processo judicial envolvendo a Samarco e a população da Bacia do Rio Doce tem se desenvolvido após o rompimento da barragem de Fundão em Mariana/MG, ocorrido em novembro de 2015. O caso estudado pela equipe é de extrema complexidade e inclui uma diversidade de sujeitos entre as comunidades atingidas, as empresas mineradoras e os órgãos e instituições públicas. O caso de Fundão tem sido guiado por mecanismos de solução negociada em que as partes devem buscar o consenso, algo que merece discussão devido à gravidade dos crimes.

O primeiro passo para a judicialização do caso foi tomado a partir de uma ação civil pública aberta pelos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, ainda durante as investigações. Dada a complexidade do crime, era perceptível que todo o processo deveria ser conduzido de forma muito cuidadosa e detalhada, buscando uma melhor adequação à realidade das partes e a todos os tipos de impactos causados pelo rompimento. Sabendo-se que essa ação havia sido aberta ainda antes do fim das investigações, era claro que ela não seria suficiente para abarcar todos os pontos necessários. Mesmo assim, foi proposta a assinatura de um “Termo de Transação e Ajustamento de Conduta” em março de 2016, com o intuito de trazer maior rapidez e efetividade para a ação. Esse termo foi o responsável pela criação da Fundação Renova e do Comitê Interfederativo (com o objetivo de fiscalizar a Fundação), mas não demonstrava qualquer predisposição para lidar adequadamente com os atingidos, desde as propostas e a linguagem utilizada, até os falhos mecanismos de participação popular.

Essa primeira ação aberta recebia críticas tanto da sociedade civil como do Ministério Público, por dar às empresas o poder de influenciar nos acordos e proteger o seu próprio patrimônio. Esse termo acabou sendo suspenso. Em contrapartida, o Ministério Público Federal deu entrada em uma nova ação civil pública que, através de um “Termo de Ajustamento Preliminar” estabelecido em janeiro de 2017, tinha o intuito de contratar empresas privadas para auxiliar o MPF nos diagnósticos socioambientais e socioeconômicos, a ser pago pelas empresas rés. Além de procurar maior rapidez na resolução do processo, a escolha pela solução negociada ajudava a desenvolver uma discussão mais informal e fluida com as partes. Mesmo que demonstrasse algum avanço, Esse termo não incluía qualquer participação da população atingida, ou seja, não chegava perto de ser satisfatório à reparação dos danos e de direitos humanos. Assim, um “Termo Aditivo” foi assinado em novembro de 2017, objetivando a centralização das discussões nos atingidos e no respeito a suas coletividades e modos de vida, contratando instituições que tinham a confiança dessa população e que pudessem prestar o serviço de assistência judicial, nas audiências públicas e consultas preparatórias. Esse aditivo criou também o Fórum de Observadores, para melhor acompanhar as investigações.

O último termo a ser assinado entre as partes foi o “Termo de Ajustamento de Conduta – Governança”, com a intenção de englobar os itens que foram deixados de fora nos termos assinados anteriormente. Dessa forma, procuravam reestruturar a Fundação Renova com uma participação efetiva das atingidas e atingidos; e a criação de Comissões Locais pelas assessorias técnicas para que a população pudesse opinar e ajudar na gestão da bacia.

Por fim, foram criadas as Câmaras Regionais como espaços de diálogo com a Renova. Vale ressaltar o papel do Fórum de Observadores, que estabelecia um meio de comunicação entre os atingidos, comunidades tradicionais, centros acadêmicos e a sociedade no geral. Esse termo também destaca a importância de se considerar a singularidade de comunidades indígenas e quilombolas, reforçando o respeito aos diferentes modos de vida afetados pelo rompimento da barragem.

Imagem 1: Acima, os logos das duas criações do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta, de 2016. Objeto de muitos de bates e questionamentos acerca de sua efetividade na reconstituição dos direitos violados pelo rompimento da barragem de Fundão.Fonte: fundacaorenova.org

Em contrapartida, é válido questionar até que ponto a participação dessa população tem sido efetiva, já que, desde o momento da redação dos termos em si, os atingidos não estiveram presentes, mesmo que os representantes das mineradoras estivessem. Ainda, a proporção de indicados em fundações como a Renova sempre se mostra assimétrica (seis indicados pelas empresas e somente dois pelas Câmaras Regionais). Outro ponto é o valor total de indenizações a ser pago pela Samarco que, por fim, foi de R$ 2,2 bilhões, muito abaixo dos R$ 155 bilhões pedidos pelo MPF na abertura da segunda ação.

Imagem 2: Alguns dos principais movimentos sociais que lutam cotidianamente contra os abusos da exploração mineraria e da construção de barragens. Assim como determinado pela proibição jurídica, grupos como esses não podem mais compor as equipes de assistência técnica para os atingidos e atingidas. Fontes: mab.org.br e mamnacional.org.br

A sentença dada pelo juizado após todo o debate também é bastante representativa dessa assimetria entre as partes; o TAC Governança foi aprovado, mas o Aditivo ao TAP sofreu modificações severas, ignorando todo o processo de construção do termo: o juizado estabeleceu a proibição de se contratar assessorias técnicas que tivessem qualquer vínculo com partidos políticos, movimentos sociais, organizações não governamentais (as ONGs) ou entidades religiosas. Essa proibição é uma clara violação aos direitos de livre expressão de preferências, ainda mais grave se considerarmos que esses grupos foram os primeiros a ir ao auxílio da população atingida, dando-lhe e consciência social acerca de seus direitos, ou seja, grupos que já têm uma relação próxima de confiança e conforto com cada um dos atingidos e atingidas. Por fim, apontamos que qualquer tentativa de comunicação entre atingidos e o juiz foi ignorada.

A estratégia de fazer uso das soluções negociadas tinha o intuito de acelerar o processo e dispensar formalidades que não condiziam com os costumes dos atingidos, trazendo, em contrapartida, rapidez e fluidez para o andamento das ações. Essa é uma estratégia que nasce da necessidade de acelerar o processo jurídico no contexto brasileiro, e está muito atrelada à lógica de produtividade e supressão de demandas. No caso do rompimento da barragem, ela não tem efeito satisfatório, já que lida com interesses contrários de complexa conciliação, o que gera, em muitos casos, a impunidade dos réus e a perda de direitos das vítimas, perpetuando livremente uma lógica perversa de exploração por trás do sistema econômico.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:
ROLAND, M. C.; FARIA JÚNIOR, L. C. S.; MANSOLDO, F. F.; SENRA, L. M.; FERREIRA, L. F. Negociação em contextos de violação de Direitos Humanos por empresas: Uma breve análise dos mecanismos de solução negociada à luz do caso do rompimento da barragem de Fundão. Versos, v. 2, n. 1, p. 3 – 25. 2018.