Antes e depois: o descaso e a poluição em longo prazo.

Na tentativa de comparar a poluição histórica na bacia do Rio do Carmo com a realidade trágica do rompimento, esse estudo mistura vasta revisão bibliográfica com análises de campo e laboratório.

A Universidade Federal de Ouro Preto possui, desde as últimas décadas do século passado, uma série de estudos voltados para a área de Recursos Hídricos na bacia do Rio do Carmo. Quando a barragem de Fundão se rompeu, os estudos prosseguiram com ainda mais vigor e essencialidade, já que cada um dos impactos precisava ser estudado, compreendido e mitigado, no contexto desse crime ambiental. Assim, uma mestranda da universidade propôs como dissertação, para finalizar seu curso, uma análise sobre a presença de metais e metalóides e da qualidade da água nas bacias do rio Gualaxo do Norte, Gualaxo do Sul e do Carmo, caracterizando cada uma delas. A pesquisa se baseou numa vasta revisão bibliográfica acerca do histórico da bacia hidrográfica e do rompimento em si, além de amostras, coletadas pela própria autora, de antes e depois do rompimento. Uma das motivações da autora foi testemunhar o descaso com que Samarco e Estado encaravam as consequências do crime, deixando a população à mercê tanto naquela época, como ainda tem deixado.

A área estudada se localiza no Quadrilátero Ferrífero, em Minas Gerais, e apresenta diversas modificações do seu bioma original. A Mata Atlântica se apresenta de forma muito degradada devido à mineração e, principalmente, pela excessiva criação de gado e a necessidade de pastos, substituindo as árvores por gramas e capins exóticos. Dentre as outras atividades comuns nessas bacias estão: a plantação de eucalipto que, assim como o pasto, é inserido no lugar da mata própria da região; a presença de pequenas centrais hidrelétricas; a construção de edificações e de agricultura familiar próxima às margens dos rios, com acessos precários e não pavimentados; a mineração de areia; o garimpo do ouro, em atividade na bacia do alto Rio do Carmo desde o século XVIII; e, é claro, as três grandes minas de ferro (Timbopeba, Alegria e Germano) e seus complexos minerários presentes na bacia do rio Gualaxo do Norte.

Imagem 1: Mapa que mostra os elementos presentes nas rochas da região, que estão naturalmente do ambiente, mas que tem sua remoção acelerada por processos e atividades humanas. Fonte: FERNANDES, 2017.

A maior parte das atividades humanas estabelecidas historicamente e em atividade por longos períodos, deixaram suas marcas sobre a bacia. Desta forma, deve-se considerar que alguns elementos químicos altamente tóxicos já eram presentes na região mesmo antes do rompimento. Por exemplo, o garimpo que é responsável pela liberação de grandes quantidades de mercúrio, cádmio e arsênio nos cursos d’água, ou a presença do despejo, sem tratamento, de efluentes domésticos e de agricultura, causadora de algumas concentrações de fósforo e enxofre, ou, até mesmo, a própria mineração que, mesmo com a construção das barragens, não consegue reter todos os metais. Além disso, é válido lembrar que as rochas possuem, naturalmente, esses metais misturados em diversas concentrações e que, ao longo do tempo, com a ação das águas, vão se soltando e se misturando aos rios aos poucos. Elementos como o ferro, o manganês, o magnésio, o cromo, o níquel etc. fazem parte das rochas da região.

Imagem 2: Trabalhadores do garimpo ainda em atividade no Alto Rio do Carmo em 2015. Fonte: FERNANDES, 2017.

Mesmo assim, o rompimento foi de grande impacto na área já que a maioria de elementos apresentou concentrações maiores, se comparadas às amostragens feitas antes de novembro de 2015. Dentre os diversos pontos de amostragem, todos aqueles que ficam no caminho do rejeito possuem pelo menos um metal em concentração acima dos limites propostos pela legislação vigente para o consumo humano, ou seja, todo e qualquer ponto do rio, usado para consumo, deveria receber um tratamento adequado, algo que não se encaixa na realidade local. Um caso curioso é o do elemento selênio, com concentrações crescentes após o rompimento no baixo Rio do Carmo, mas ainda sem sua origem descoberta, fato que pode vir a inspirar estudos específicos no futuro. Há também os casos de elementos que tiveram uma queda nas concentrações, o que pode ter sido causado por uma maior taxa de diluição ou podem ter sido empurrados rio abaixo pela força do fluxo de rejeitos.

Além disso, é preciso comentar que o Índice de Qualidade da Água, testado para a análise de concentrações no rejeito, não apresentou resultados satisfatórios, pois foi criado para a análise de coliformes fecais e não para a presença da diversidade de metais encontrada nos rios Gualaxo do Norte, Gualaxo do Sul e rio do Carmo.

Por fim, é inegável que o rompimento da barragem de Fundão tenha causado impactos profundos no contexto socioambiental de toda a bacia do Rio Doce, mas, ao mesmo tempo, deve-se compreender que o descaso com a região não é recente, já que uma boa parte das atividades em andamento na área degrada e polui o ecossistema local há muito tempo. As Unidades de Conservação e Áreas de Preservação Permanente da bacia tem sido largamente ocupadas, mas podem ser pontos chave num projeto de recuperação pós rompimento, caso as regras de ocupação passem a ser respeitadas.

Imagem 3: Lançamento de efluentes domésticos diretamente no Rio Gualaxo do Norte. Fonte: FERNANDES, 2017)

A autora propõe para a área uma nova perspectiva de sociedade, não somente designando o responsável pelo crime, mas também repensando as formas de ocupação e exploração dos meios social e ambiental, onde se possa “estruturar a população para alcançar condições de sobrevivência e progresso, ao invés de simplesmente atender às solicitações exógenas e alheias às especificidades e necessidades locais”.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:
FERNANDES, Kênia Nassau. Qualidade da águas nos rios Gualaxo do Norte, Gualaxo do Sul e do Carmo, afluentes do alto Rio Doce (WATU): metais, metalóides e índice de qualidade das águas antes e após o rompimento da barragem de rejeitos Fundão da Samarco/Vale/BHP Billiton, em Mariana, MG. Ouro Preto, 2017.