O rio é doce, e a Vale o amarga

"É comum que os canais fluviais que cortam áreas minerárias apresentem alta concentração de determinados elementos químicos. Mas e no caso do rompimento de uma barragem que joga milhões de metros cúbicos de rejeitos em um rio?"

No Brasil, os rios são os principais mananciais para o abastecimento público de cidades, para o uso e produção industrial e para a agricultura. Porém, existem alguns requisitos físicos e químicos que essas águas precisam atender, para que as comunidades possam usá-las com segurança. Nas áreas onde há atividade minerária, parte do que é extraído e não é comercializado acaba caindo nos canais fluviais mais próximos e pode contaminar a água que, posteriormente, será usada pelas pessoas que estão rio-abaixo.

O rompimento da barragem de Fundão jogou aproximadamente 40 milhões de metros cúbicos de rejeito e minério de ferro nos córregos do Fundão e Santarém e nos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce. Parte da lama se misturou com a água desses canais fluviais e desceu com a correnteza, outra parte foi depositada nas margens dos rios, alterando as características físicas e químicas de suas águas e sedimentos. Um dos resultados disso foi que várias comunidades ficaram sem água apropriada para as mais diversas finalidades.

Um ano após o rompimento da barragem, um estudante de engenharia geológica da Universidade Federal de Ouro Preto, desenvolveu um estudo buscando compreender as modificações geoquímicas nos sedimentos e na água dos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce. Para a realização do estudo foram feitas coletas de amostras de sedimentos e água no trecho dos rios entre Barra Longa- MG e Rio Doce- MG, no período chuvoso e no período de seca. Em seguida, as amostras foram levadas para análises laboratoriais.

A área onde aconteceu o rompimento faz parte do Quadrilátero Ferrífero de Minas Gerais, um grande compartimento geológico com rochas ricas em minério de ferro. Estudos realizados antes do rompimento mostram que os canais fluviais já apresentavam alta concentração de alguns elementos químicos prejudiciais à saúde. Parte disso é creditada às rochas encontradas naturalmente na região, outra parte se deve à atividade intensa de extração mineral que ocorre há séculos na cabeceira dos rios.

Imagem do remanso da UHE Risoleta Neves, no Rio Doce, após o rompimento da Barragem de Fundão, com muito galhos e com a cor da água avermelhada.Foto: Alfredo Costa - Expedição do Rio Doce 2015

As águas dos rios Gualaxo do Norte e Carmo, de acordo com a resolução 357/05 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), estão classificadas como de Classe II, pois são utilizadas para o abastecimento doméstico e para a agricultura. Um dos pontos amostrados por esse estudo da UFOP, localizado em Barra Longa- MG, antes da confluência do rio do Carmo com o rio Gualaxo do Norte, durante período chuvoso, apresentou valores de concentração de alumínio e ferro nas águas acima do recomendado pelo CONAMA. O mesmo ponto, no período seco, apresentou também, concentração de cobre e níquel acima do recomendado. Esse ponto do rio do Carmo não foi atingido diretamente pelos rejeitos, pois está localizado antes da confluência do rio do Carmo com o Gualaxo do Norte, e assim o autor do trabalho defende que esses elementos químicos dissolvidos nas águas não apresentam ligação com o rompimento da barragem de Fundão, mas, sim, com a formação geológica de sua cabeceira e com as atividades que são desenvolvidas a montante.

Os sedimentos em suspensão (que são o material fino, transportado “flutuando” nas águas dos rios) foram encontrados em grande quantidade no período chuvoso, em concentrações muito acima do que é encontrado geralmente neste trecho, evidenciando um ligação direta com o rompimento da barragem. Esses materiais apresentaram concentração de arsênio, cromo e níquel acima do recomendado no rio do Carmo e na represa da usina hidrelétrica Risoleta Neves. Essa concentração na represa ocorreu por causa dos rejeitos que foram retidos por esse barramento. Ainda foi encontrada uma alta concentração de ferro nos sedimentos em suspensão, que também é um reflexo do rompimento da barragem de Fundão.

Animal bebendo água no Rio Gualaxo do Norte após o rompimento da Barragem de Fundão. Fonte: Wikimedia< https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Dois_anos_da_trag%C3%A9dia_de_Mariana_(MG)_(37434059824).jpg>

As análises realizadas nos sedimentos de corrente (que são aqueles que ficam depositados no fundo do canal fluvial) mostram que nenhum dos elementos químicos avaliados ultrapassou o limite indicado na legislação. Porém, as concentrações de alumínio, ferro, manganês, arsênio e bário ficaram acima dos valores usados como referência para a região (chamado “background”), apresentados em estudos feitos antes do rompimento da barragem de Fundão. Isso mostra que as elevações nas concentrações desses elementos se deve ao rompimento da barragem de Fundão e às atividades minerárias realizadas nas cabeceiras desses rios.

Por fim, é inegável que os altos teores de determinados elementos químicos nas águas e sedimentos dos rios afetados possui relação com a mineração, seja pelo histórico dessa atividade na bacia, seja pelo rompimento da barragem de Fundão. Essas alterações geoquímicas afetam diretamente fauna e flora, levando ao desequilíbrio dos ecossistemas fluviais. Obviamente, as comunidades que vivem às margens do rio também foram profundamente afetadas, já que os sedimentos finos foram depositados nas margens dos rios, sobre plantações, praças e ruas. Essa “lama”, quando seca, é levada pelos ventos, podendo ser facilmente inalada pela população. Além disso, o consumo e uso dessa água pode gerar, em longo prazo, vários tipos de problemas de saúde.

Todo esse cenário traz alguns questionamentos: o que foi feito e está sendo feito para que a população não sofra mais com os danos desse crime? Há alguma maneira de reduzir essas alterações e até recuperar esses rios, sua fauna e flora? Será que as comunidades terão que conviver e sobreviver, por décadas, com a água, as plantas e peixes contaminados pela lama da Samarco?

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:
ARAÚJO, Gustavo Simões de. ANÁLISE GEOQUÍMICA DE SEDIMENTOS E ÁGUAS NA BACIA DO RIO DO CARMO E SUB-BACIA DO RIO GUALAXO DO NORTE, PÓS-ROMPIMENTO DA BARRAGEM DE REJEITOS DO FUNDÃO, LESTE DO QUADRILÁTERO FERRÍFERO, MG. 2018. 146 f. TCC (Graduação) - Curso de Engenharia Geológica, Departamento de Geologia, Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2018.