O que está por trás do rompimento de Fundão?

"Para entendermos as causas do rompimento da Barragem de Fundão, precisamos olhar o que acontecia no cenário econômico internacional antes do trágico 5 de novembro de 2015. Decisões tomadas pela alta cúpula da empresa formam o pano de fundo do crime ambiental da Samarco."

As commodities são itens vendidos em seu estado bruto no mercado internacional. O minério de ferro é um dos principais exemplos. Entre 2003 e 2013, houve um “boom” no comércio desses produtos gerando lucros históricos para as empresas. Muitas delas aproveitaram o momento de alta para investir em novos locais de exploração, aumentar as estruturas já existentes e reestruturar as antigas. Porém, em 2013, com a queda do preço do Minério de Ferro, o ritmo desses investimentos diminuiu, já que as empresas começaram a sentir no bolso a diferença do preço.

A Samarco foi uma dessas empresas que, aproveitando-se do momento positivo para a economia mundial, investiu pesado em expansão. Isso levou a empresa a fazer algumas apostas para tentar melhorar sua situação financeira, como o Projeto Quarta Pelotização (P4P). Esse projeto consiste na construção de uma estrutura para transformar em esferas de ferro o minério que era transportado “em pó”, o que diminuiria os gastos da empresa, já que esse serviço era terceirizado devido à necessidade desse “acabamento” para a venda. No fim do “boom”, a desvalorização do minério de ferro coincidiu com o momento em que a Samarco estava terminando a construção da Barragem de Fundão, dentro do Complexo Minerário de Germano, barragem essa que foi construída justamente para possibilitar o aumento da produção. Especula-se que é devido a essas dívidas que o descaso com a segurança dos trabalhadores e da própria estrutura foi se instalando na rotina da empresa.

Mas o rompimento de Fundão não é algo isolado no “mundo” das barragens brasileiras. Há uma história triste relacionada a isso em nosso passado enquanto nação, com oito rompimentos ocorridos desde 2000, um número triste e alarmante para o Brasil. Isso mostra que nossos meios de monitoramento das barragens são ineficazes. Claro que todos esses erros têm algo em comum: a insuficiência dos estudos de prevenção de risco, de impacto ambiental e da própria legislação.

Dentro disso, para podermos entender melhor o rompimento da barragem de Fundão, vamos precisar conhecer alguns detalhes. A empresa estava em processo de renovar a licença da barragem. Seu EIA (um relatório que avalia de forma ampla e completa os impactos ambientais de um empreendimento) foi problemático, e a análise de risco do empreendimento relatou que a chance de um rompimento era improvável. Esses estudos ignoraram todo o histórico de rompimento de barragens no Brasil e em Minas Gerais, unidade da federação que se destaca no assunto, tendo ocorrido dentro do estado um total de quatro rompimentos desde 2000. Também foi mostrado pelo EIA que não houve a intenção de tratar e gerir melhor os rejeitos que iam sendo gerados, mesmo já existindo formas eficazes de se fazer isso na época.

Essa foto foi tirada próximo à Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, já no curso do Rio Doce, e, por ela, pode-se ter uma noção de como ficou o rio. Nela vemos uma série de materiais diversos na água, além da própria água que adquiriu uma coloração amarronzada devido à lama que desceu da barragem. Fonte: Força tarefa do Minas de Lama.

Tudo isso denota a negligência da Samarco para com o ambiente em que sua barragem estava inserida, tanto no contexto físico, quanto no biótico e social. Não houve seriedade ao se preverem os possíveis riscos. Além disso, a população não recebeu o treinamento adequado para reagir a eventuais rompimentos, mesmo com a empresa já tendo conhecimento de que havia a possibilidade real de rompimento da barragem. Também podemos apontar como displicência o fato da mineradora não ter instalado na região sequer sinais sonoros e visuais ativos. Os estudos de impactos e riscos contratados pela Samarco eram tão ineficazes, que não conseguiram estimar que, se a barragem se rompesse, a lama alcançaria a foz do Rio Doce, já que a área de abrangência desses documentos se limitava ao povoado de Bento Rodrigues e às imediações do complexo minerário.

Todos esses erros, somados à negligência da Samarco com a estrutura da barragem, geraram um conjunto de danos socioambientais que se estenderam por mais de 600 quilômetros passando pelos rios Gualaxo do Norte e Carmo até chegar ao Rio Doce. Foram contabilizadas 19 mortes por influência direta do rompimento, 1200 pessoas desabrigadas e 1469 hectares de terras devastados (contando áreas de preservação e unidades de conservação espalhadas pela região). A lama que foi despejada no rio contém muitos metais pesados, contaminando a água. Graças a isso, todos os solos ao redor do Rio Doce também estão propensos a serem contaminados.

No Brasil, a indústria mineradora aparentemente sofre de uma “dependência das barragens”, e depender de algo tão perigoso não é a mais interessante das opções. Enquanto isso, o setor em si continua com sua prática padrão de reduzir os custos “assumindo” os riscos, o que não ocorreria caso o Marco Regulatório de Barragens do Brasil e de Minas Gerais fosse eficiente, atualizado e tivesse realmente um papel fundamental dentro dos órgãos reguladores, evitando muitos rompimentos futuros.

Esse mapa nos mostra o trajeto que a lama percorreu desde o Complexo Minerador da Samarco, até a foz do Rio Doce, em Regência-ES. Indicando algumas das cidades que foram atingidas pela lama. Fonte: Wanderley, Luiz et al. (2016)

Diante de tudo isso, é inegável que houve sim um descaso por parte da Samarco para com a população que estava próxima a sua barragem. Isso se comprova no fato de que os estudos sobre os possíveis danos não eram abrangentes o suficiente, que a técnica usada para se construir a barragem não era a mais segura e que o controle e monitoramento dos riscos foi ineficaz. Somado a isso, há um descaso estrutural da parte do governo, que mantém uma má estrutura nos órgãos de fiscalização, fornecendo espaço para que situações como essas continuem acontecendo em um ciclo constante de tragédia.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:
WANDERLEY, Luiz Jardim; MANSUR, Maíra Sertã; MILANEZ, Bruno and PINTO, Raquel Giffoni. Desastre da Samarco/Vale/BHP no Vale do Rio Doce: aspectos econômicos, políticos e socio ambientais. Cienc. Cult. [online]. 2016, vol.68, n.3 http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000300011.