Exploração e preservação: uma contradição ou uma possibilidade?
"Após um desastre como o rompimento da barragem de Fundão, esperamos posicionamentos éticos e responsáveis das instituições envolvidas. Mas quando isso não acontece, nos perguntamos: será que essas instituições realmente se importaram com o ocorrido?"
Dentro do que nós conhecemos como ciência, existem muitas subdivisões, as quais foram ganhando diferentes nomes de acordo com as suas funções e temas de estudo. Uma dessas áreas do conhecimento científico é a das Geociências. Essa divisão engloba tudo que estuda diretamente o nosso planeta Terra. A Geologia é um campo do saber dentro das Geociências, que estuda as rochas, os minerais, a estrutura e a história do planeta Terra. Possui um papel fundamental na nossa sociedade, mas que é distorcido por alguns , fazendo com que ela seja compreendida apenas pela exploração dos recursos naturais. Outros, porém, defendem a importância de um panorama socioambiental na Geologia, que tenha a finalidade de proteger e cuidar do ambiente de forma geral.
Vendo esse questionamento se tornar cada dia mais importante, sobretudo após o rompimento da barragem de Fundão, pesquisadores da Universidade Federal de Ouro Preto e da Universidade Federal de Minas Gerais se uniram com o propósito de tentar evidenciar a importância do ecossistema na tomada de decisão por parte dos geólogos, mostrando que antes de começar a explorar uma área para se extrair algum minério, deve-se interpretar todo o ambiente que está ao redor da área de exploração.
A forma que esses pesquisadores escolheram para abordar esse assunto um tanto polêmico, foi selecionar pronunciamentos feitos por instituições relacionadas à geologia enquanto prática profissional e discutir o posicionamento dessas manifestações antes e depois do rompimento da barragem de Fundão. Das instituições que tiveram seus posicionamentos estudados, temos duas de engenharia que trabalham ativamente com geólogos: a Associação Brasileira de Mecânica dos Solos e de Engenharia Geotécnica (ABMS) e a Associação Brasileira de Geologia de Engenharia e Ambiental (ABGE); e duas ligadas de forma mais geral às geociências: a Sociedade Brasileira de Geologia (SBG) e a Sociedade Brasileira de Ciência do Solo (SBCS).
Logo após o desastre, a ABMS teve dois de seus especialistas ouvidos em rede nacional, falando sobre as condições geotécnicas (de estabilidade do material) que levaram ao rompimento da barragem de Fundão. Logo ao final do mês de novembro de 2015, a ABMS propôs a criação de uma comissão técnica para avaliar as causas do rompimento, dizendo ainda que seria necessário rever nossos padrões de engenharia de barragens. Por sua vez, a ABGE organizou, no ano de 2016, uma mesa redonda para falar sobre a gestão de segurança e risco que existem nas barragens de mineração em 2016. Essa ação da ABGE, dentro de todo o contexto do desastre, foi considerada insuficiente, afinal, por mais que o debate em uma mesa redonda gere frutos, ele não reflete a importância do tema.
A SBG, uma sociedade que nasceu com o propósito de defender a utilização sustentável dos recursos naturais, seguindo a linha do desenvolvimento sustentável, não se pronunciou no tocante ao desastre de Fundão em nenhuma mídia ou por meio de nenhum boletim informativo, apenas organizou uma mesa redonda no seu congresso bianual, realizado em 2016. Já a SBCS se manifestou publicando um boletim sobre os depósitos de lama pelos rios e como poderia ser feita a restauração da vegetação perdida. Todavia, não demonstrou a devida preocupação social que o caso exigia. Diante dessas manifestações, percebemos que, das quatro instituições acompanhadas pela pesquisa, apenas uma delas se colocou enquanto o rompimento ainda era recente (ainda que somente acerca do parecer técnico estrutural da barragem). Dessa forma, pode-se notar que não houve a necessária preocupação para com o desastre, afinal, os discursos não se aprofundaram. De um modo geral, eles se encerravam ao reforçar que a barragem era problemática, que necessitava de reajustes e que estudos futuros deveriam ser focados na abordagem estrutural das barragens e no riscos a elas associados.
Isso mostra um surpreendente descaso com a temática ambiental por parte das instituições que representam os profissionais das Geociências. Esse cenário reflete que falta algo na formação dos profissionais que atuam nesse campo do conhecimento. Há uma carência de uma perspectiva mais humana, que, ao mesmo tempo, estimule esses profissionais a pensarem o todo ao invés de pensarem apenas nas questões técnicas imediatas. A geoética (que pode ser considerada uma temática das Geociências) propõe esse diálogo entre o lado técnico, que pensa nas formas eficientes de explorar uma região, e o lado ambiental, que pensa em formas de conservar a natureza. Essa dualidade de ideias é algo muito importante e não pode ser vista como contraditória quando se pensa na formação profissional das pessoas que atuarão na mineração.
Uma necessária forma de se incutir essa ideia nos profissionais seria fomentar a discussão da geoética nas universidades, focando as questões socioambientais. Assim, os alunos de hoje se tornariam profissionais mais conscientes amanhã, refletindo e tomando consciência de que um desastre, como o da Samarco, não se encerra nos erros técnicos, mas abrange também questões humanas, associadas à falta de preocupação com o entorno da barragem, além do descaso em tratar do assunto após o rompimento.
Entretanto, essa mudança de concepção não pode se ater apenas aos profissionais da Geologia, afinal muitos deles apenas “cumprem ordens”. É algo que deve ser passado àqueles que têm poder de decisão dentro das grandes mineradoras e corporações empresariais. Precisa estar claro para todos os envolvidos na cadeia produtiva (da pesquisa ao beneficiamento), o papel social que desempenham e precisam desempenhar na sociedade, pois o meio ambiente e a saúde da população têm preço e, por isso, devem ser preservados e protegidos sempre.
CASTRO, Paulo de Tarso A.; RUCHKYS, Úrsula; MANINI, Rafael Tertolino. A sociedade civil organizada e o rompimento da Barragem de Fundão, Mariana (MG): porque é preciso difundir a geoética. Terræ Didatica, Campinas, v. 4, n. 14, p. 439-444, 07 dez. 2018. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/td/issue/view/1567. Acesso em: 2 jun. 2020.