O passado nos serve de lição

A cada notícia sobre a mineração brasileira, todos os debates construídos em 2015 e ampliados em 2019 voltam à tona a partir de um sentimento de impunidade, guiados pelas narrativas que se repetem e não recebem solução.

A cobertura jornalística sobre os grandes desastres da mineração que ocorreram em Minas Gerais nos últimos anos tem sido bastante ampla, atingindo uma vasta repercussão nacional nos meses em que ocorreram, promovendo, inclusive, doações e o deslocamento de voluntários em direção aos municípios mais gravemente atingidos. Dessa forma, Marta Regina Maia, professora do Departamento de Ciências Sociais, Jornalismo e Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto, propôs um estudo para analisar como as manchetes das notícias foram construídas e se fizeram uso crítico da memória em seu conteúdo, dando destaque para as associações buscadas entre o crime de Mariana em 2015 e o crime de janeiro de 2019, em Brumadinho.


O crime em Brumadinho é contextualizado após certo afrouxamento legislativo na operação da Mina do Córrego do Feijão, já que o complexo havia conseguido uma licença de ampliação pouco antes do rompimento. Quando percebemos isso, nos parece um absurdo que essa licença tenha sido alcançada, mas já era um momento em que a grande mídia sequer lembrava o crime da Samarco na bacia do Rio Doce, os debates já começavam a esfriar, e a questão da mineração brasileira não era tão discutida. Quando a barragem da Vale em Brumadinho se rompe, todos os debates criados a partir de Mariana voltam à mídia nacional com força total, reverberando ainda mais, já que as problemáticas de ambos os casos se somam e ampliam a noção da sociedade civil acerca da impunidade das grandes corporações da mineração, uma vez que que os problemas gerados em 2015, em Mariana, ainda não tinham sido solucionados em 2019, mais de 3 anos depois.

Após o segundo desastre, a mídia foi obrigada a tomar uma postura mais crítica, buscando não apenas entender quais seriam as consequências socioambientais da lama, mas também quais seriam as causas desses rompimentos e por que voltavam a acontecer em outras minas. Ou seja, se perguntavam por que o acontecido em Mariana não havia servido como lição definitiva para sanar o problema.

As matérias jornalísticas passaram a ter o sentimento de impunidade como foco, denunciando as questões que ainda não possuíam solução e o descaso com as ações preventivas em Brumadinho. Fica claro que o segundo crime tem um importante papel de manter a discussão em andamento, de movimentar as lutas que cresceram desde 2015 e cobrar uma melhor postura do poder público e das empresas para ambos os casos.

Imagem 1: na época do rompimento em Brumadinho, era extremamente comum a citação ao crime anterior, como forma de relacioná-los sob uma mesma problemática através da impunidade que se acumulava. Fonte: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/01/25/tragedia-em-brumadinho-acontece-tres-anos-apos-desastre-ambiental-em-mariana.ghtml

As narrativas jornalísticas utilizaram-se, então, das experiências passadas para explicar e contextualizar o presente, mas também para estabelecer as expectativas para o futuro. Por exemplo, o que podemos esperar para as demais barragens de alto risco se tomarmos como base nossas experiências (sejam de pesquisa ou de vivência) com Mariana e Brumadinho? A expectativa que se cria não é animadora. Por outro lado, as experiências passadas reforçam a necessidade de lutar por um cenário da mineração nacional que não ponha nosso povo e nossas terras em risco. Além disso, contribuem para problematizar a mineração em si e não apenas casos isolados, esclarecendo que o problema não era apenas em Mariana ou Brumadinho, mas está num âmbito muito mais geral.

Para melhor entender o posicionamento da mídia, foram avaliados, entre os dias 25 de janeiro e 7 de fevereiro de 2019, as manchetes dos jornais Folha de São Paulo, O Globo e Estado de S. Paulo (Estadão), escolhidos por sua maior abrangência. Ao todo, foram encontradas 764 matérias sobre rompimento em Brumadinho, mas apenas 48 (7%) estabeleciam alguma relação com o crime da Samarco, em Mariana. Essas relações foram estabelecidas com base no uso crítico da memória e classificadas entre uma minoria, que se utilizou da memória dos atingidos (“sujeitos”) e a maioria, que se apoiou em fontes dos poderes Judiciário e Executivo (“fenômenos”).


Imagem 2: Fica evidente que a mídia ainda conversa pouco com os atingidos para entender como suas experiências passadas ajudam a construir uma expectativa futura no ramo da mineração brasileira. Fonte: MAIA, 2020.

Vale citar que o sentimento geral dessas reportagens é de reprovação em relação aos dois acontecimentos, visto que palavras como “acidente”, muito usadas para naturalizar os crimes aparecem apenas uma vez em 48 matérias. O jornalista acaba surgindo como uma testemunha desses crimes, pois está em contato direto com as problemáticas envolvidas e com as pessoas atingidas. Por fim, os três jornais não diferem muito em suas perspectivas e narram esses rompimentos como um processo ainda em curso, através da lembrança do passado e também das consequências mal resolvidas, caracterizando os sujeitos como diariamente atingidos. A experiência dos atingidos, tanto na bacia do rio Doce como na bacia do rio Paraopeba, pode gerar uma luta nacional preventiva contra o atual modelo minerário do país.

Não podemos afirmar que a mídia vem propondo um debate profundamente crítico, mas certos questionamentos já representam uma evolução se comparados às simples descrições de consequências (que são importantes, mas não movimentam qualquer debate social, político e econômico). A mídia brasileira também é administrada por grandes corporações capitalistas, algo que as inclui diretamente numa disputa de interesses conflituosa acerca dos rompimentos. A narrativa criada após Brumadinho ressignifica o crime de Mariana, pois o contextualiza num cenário mais amplo e impõe questões e fatores não considerados na cobertura midiática efetuada em 2015. Essa ressignificação é constante: a cada momento o passado se apresenta de uma forma diferente e mais complexa, conforme temos maior conhecimento sobre os rompimentos criminosos. É aqui, inclusive, que temos que reforçar a importância de anualmente relembrar ambos os desastres, uma estratégia para manter os debates e cobrar posicionamentos do poder público e das empresas envolvidas, além de impedir qualquer esquecimento por parte da sociedade civil nacional.

Esse é um texto de divulgação científica do PROGRAMA MINAS DE LAMA, da Universidade Federal de Juiz de Fora, elaborado com base no artigo:
MAIA, Marta Regina. O uso crítico da memória nas narrativas jornalísticas sobre o rompimento da barragem da Vale. Revista FAMECOS, v. 27, p. 1 – 13. Porto Alegre, 2020.